Pareceres do CRFaro

Parecer N.º 5/P/2006 (Conselho Distrital de Faro)

I

 

I.1.- A Sra. Dra. …, Ilustre Advogada com domicílio profissional em …, veio solicitar emissão de Parecer relativamente a conduta profissional que deve adoptar em face de situação com que foi confrontada em … de 2006.

 

I.2.- Relata aquela Ilustre Advogada, para o que ora releva, que:

a).- Foi contactada em … de 2006 pela sua Cliente Sociedade ... para elaborar um contrato promessa de compra e venda de um prédio misto, propriedade daquela sua cliente;

b).- Havia urgência na elaboração e celebração daquele pretendido contrato promessa uma vez que os promitentes compradores se ausentariam em breve para o estrangeiro;

c).- Os promitentes compradores sabiam que a parte urbana daquele prédio tinha sofrido alterações que não haviam sido licenciadas pela respectiva Câmara Municipal; sabiam também que sobre o prédio misto objecto da promessa de compra e venda incidiam penhoras fiscais;

d).- Ficou acordado entre a promitente vendedora e os promitentes compradores que as dívidas fiscais que haviam determinado aquela penhora seriam parcialmente pagas com o montante do sinal a entregar e a restante quantia exequenda seria deduzida do remanescente do preço e paga aquando da realização da escritura de compra e venda;

e).- Ficou também acordado que o montante do sinal seria transferido para a conta bancária da Sra. Dra. …, ficando esta incumbida de proceder à entrega do montante do sinal transferido no Serviço de Finanças de …, para liquidação parcial da dívida fiscal;

f).- O contrato promessa de compra e venda foi outorgado naquele dia … de 2006 e a Sra. Dra. … enviou para os promitentes vendedores, em … de 2006, uma tradução, em língua inglesa, de tal contrato;

g).- Bem assim, a Sra. Dra. … informou os promitentes compradores, por carta, não poder garantir a aprovação das alterações já efectuadas na parte urbana do prédio por parte da Câmara Municipal de … até … de 2006, data prevista contratualmente para outorga da escritura;

h).- Comunicou também aos promitentes compradores que a promitente vendedora sugeria a outorga da escritura sem a aprovação daquelas alterações, retendo aqueles uma importância, a acordar, do preço da compra, até a aprovação daquelas alterações;

i).- Informou igualmente os promitentes compradores que o assunto da dívida fiscal teria que ficar resolvido até final do mês de … de 2006, tendo estes pedido à Sra. Dra. … para atrasar o pagamento daquelas dívidas até decidirem o que fariam quanto à questão da legalização alterações efectuadas na parte urbana do prédio;

j).- Por telefonema de … de 2006 dirigido àquela Distinta Causídica o promitente vendedor informou-a pretender a restituição do montante entregue a título de sinal por já não pretender comprar o prédio;

k).- A Sra. Dra. …, perante essa pretensão do promitente comprador, confrontou-o com o facto de existir um contrato promessa outorgado pelo que não podia devolver o montante do sinal sem o acordo da promitente vendedora e/ou sem ser assinado por todos os contratantes um documento de revogação daquele contrato;

l).- A Sra. Dra. … informou a sua cliente da situação ocorrida e da pretensão dos promitentes compradores, tendo-lhe esta instruído para não devolver o montante do sinal até ser ressarcida de parte dos prejuízos que iria sofrer com a revogação do contrato posto que tinha preterido outros dois interessados na aquisição do prédio a favor daqueles promitentes compradores.

 

Ora, a Sra. Dra. …, perante esta situação e mantendo na sua conta-clientes o valor do sinal recebido, pretende seja dado um destino a tal depósito para que não lhe seja imputada, pelas partes em confronto, qualquer responsabilidade.

 

I.3.- A Sra. Dra. … juntou, com aquele seu pedido de parecer, cópia do contrato promessa de compra e venda outorgado em … de 2006 e fotocópias de carta e de fax que enviou aos promitentes compradores em … e em … de 2006.

 

 

II

 

II.1.- Mostra-se exarado na Cláusula 3ª do aludido contrato promessa que o preço da venda é de € 1.150.000,00, sendo pago pelos promitentes compradores da seguinte forma: como sinal e princípio de pagamento, até … de 2006, € 200.000,00 que deverão ser entregues à Fazenda Nacional por conta da quantia exequenda; o remanescente € 950.000,00 com a assinatura da escritura de compra e venda deduzidos todos os montantes desembolsados pelos promitentes compradores para cancelamento dos ónus e encargos do prédio.

 

Os ónus e encargos existentes sobre o prédio objecto da promessa de compra e venda (uma hipoteca voluntária e quatro penhoras) foram referidas naquele contrato promessa (Cláusula 2ª), tendo a promitente vendedora obrigado cancelá-los através do pagamento aos credores de molde a que o prédio fosse vendido livre de ónus e encargos.

 

Em nenhum ponto daquele contrato promessa se refere a constituição da Sra. Dra. … como depositária do montante do sinal e a pessoal incumbência de dar a tal montante o destino ali consignado (entrega “à Fazenda Nacional como pagamento por conta da quantia exequenda”).

 

II.2.- Flui do pedido da Sra. Dra. … e do fax e da carta com ele juntas que aquela Ilustre Advogada patrocinou a promitente vendedora, em nome e em representação de quem agiu, quer na elaboração do contrato, quer na tentativa de legalização das alterações efectuadas na parte urbana do prédio objecto da venda, quer no pretendido pagamento das dívidas fiscais da promitente vendedora. Aliás, pelo que ressalta do texto do próprio contrato promessa outorgado, era à promitente vendedora que cabia o pagamento daquelas dívidas e o atinente cancelamento da hipoteca e das penhoras que oneravam o prédio bem como a legalização das alterações efectuadas na parte urbana (cf. cláusulas 2ª, ns. 3 e 4, cláusula 3ª e cláusula 5ª).

 

II.3.- Deste modo é inquestionável que a cliente da Sra. Dra. … é a “...”, promitente vendedora naquela relação contratual, e não os promitentes compradores. Como é inquestionável que o montante do sinal pago o foi àquela promitente vendedora, que o terá feito seu, não obstante o destino que lhe foi fixado (pagamento da dívida fiscal).

 

II.4.- Se detentora desse montante, a promitente vendedora o confiou à sua advogada para efectuar o pagamento da referida dívida (tal como acordado contratualmente com os promitentes compradores), a relação profissional desta não se altera, encontrando-se vinculada às instruções desta sua cliente e não aos termos do contrato (do qual não é parte e onde não lhe é feita qualquer referência ou determinada nenhuma incumbência) e às instruções dos promitentes compradores, mormente quanto à restituição do montante daquele sinal.

 

 

III

 

III.1.- A relação do advogado com o cliente deve fundar-se na confiança recíproca, devendo aquele agir de forma a defender os interesses legítimos deste, sem prejuízo das normas legais e deontológicas – art. 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante, abreviadamente, E.O.A).

 

Nessa relação o advogado deve dar aplicação devida a valores que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores que deste tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência (art. 96º do E.O.A.), devendo depositar em conta-clientes os fundos que deles detiver para efectuar despesas por conta deles (art. 97º do E.O.A.).

 

III.2.- No caso em apreço – tal como foi relatado – o montante do sinal entregue por força do contrato promessa de compra e venda passou a ser quantia da promitente vendedora, cliente da Sra. Dra. …. Daí que a detenção desse valor por esta advogada, em conta-clientes, constitua um fundo de que ela é depositária e destinado à realização de despesas daquela cliente.

 

Assim, só pode legitimamente entender-se a incumbência de destinação desse fundo ao pagamento de uma dívida fiscal daquela cliente como determinada à Ilustre Advogada pela sua cliente, se bem que decorrente dos termos dum contrato por esta outorgado.

 

O sinal pago não constitui, à luz daquele contrato, qualquer “caução” ou específica afectação a determinado fim; é, por definição legal, uma antecipação do preço e constitui uma “receita” da promitente vendedora.

 

Deste modo, não é à Sra. Dra. … que, acima e alheada dos outorgantes, compete observar as cláusulas contratuais fixadas; àquela, como advogada, cabe-lhe, na defesa dos interesses da sua cliente, cumprir as instruções que esta lhe dá, designadamente quanto à utilização e aplicação dos fundos que pôs à sua guarda e depósito.

 

III.3.- Se os promitentes compradores, depois de celebrado o contrato promessa e pago o montante do sinal, entenderam desistir do compra e venda prometida, não podem exigir da Sra. Dra. … (que souberam ter sido incumbida de depositar aquele montante e utilizá-lo no pagamento da dívida fiscal) a restituição do mesmo, por tal montante não lhes pertencer e constituir um fundo da promitente vendedora (cliente daquela Distinta Advogada) e não deles.

 

A quantia em causa que a Dra. … dispõe como fundo em conta-clientes só pode ser por esta entregue ou à sua cliente (promitente vendedora) ou a quem esta indique.

 

 

Assim, somos do Parecer que bem andou a referida Ilustre Advogada ao recusar aos promitentes compradores a devolução do montante do sinal recebido para a sua cliente sem que desta obtivesse a respectiva e expressa autorização.

 

De igual modo, por não estar pessoalmente vinculada ao cumprimento do que se mostra estabelecido no contrato promessa de compra e venda, a Sra. Dra. … só deverá aplicar os fundos daquela sua cliente no pagamento da dívida fiscal se esta lhe der expressas indicações para tanto.

 

Por fim, não querendo manter na sua posse o montante do sinal em causa, só poderá a Sra. Dra. … extinguir aquele fundo conta-clientes com a entrega desse montante à sua cliente, a quem o pagamento do sinal se destinou.

 

 

Este é, s. m. o., o nosso Parecer.

 

 

Faro, 18 de Julho de 2006

António Cabrita

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