Pareceres do CRFaro

Parecer N.º 8/PP/2007 (Conselho Distrital de Faro)

I

            I.1.- O Exmo. Sr. Dr. …, Ilustre Advogado com domicílio profissional em …, solicita ao Conselho Distrital de Faro (CDF) da Ordem dos Advogados “se digne facultar informação e/ou orientação” sobre questões relacionadas coma abertura de correspondência que lhe é dirigida pelo … de … no âmbito da relação profissional que mantém com aquele estabelecimento de saúde.

 

            I.2.- Os factos que aquele Ilustre Advogado apresenta são os seguintes:

            a.- O Dr. … é mandatário do …, incumbindo-lhe a representação e o patrocínio judiciário daquela instituição dos diversos tribunais do País com vista à defesa dos direitos e dos seus legítimos interesses;

            b.- Aquele Ilustre Advogado exerce as suas funções no Gabinete Jurídico situado nas instalações do próprio …, e no qual ainda prestam serviço uma outra Ilustre Advogada e duas Dignas Juristas, sendo que uma destas – a Srª Drª … - foi nomeada, em …, Coordenadora do Gabinete Jurídico;

            c.- Esta Coordenadora pertence aos Quadros do …, não possui qualquer estágio de advocacia e entende que todas as comunicações (provindas dos Tribunais e/ou de outros Advogados) devem impreterivelmente, e antes do mais, passar por si antes de serem entregues aos advogados;

            d.- O procedimento supra aludido implica necessariamente que todas as notificações (judiciais ou extra-judiciais) só cheguem aos advogados destinatários passados alguns dias e só após despacho de encaminhamento exarado pela referida senhora Coordenadora do Gabinete Jurídico do …;

            e.- Em … de 2007 um Colega enviou ao Dr. … uma missiva contendo um requerimento que por este Ilustre Advogado deveria ser assinado e encaminhado para o Tribunal de …, requerimento que ficou inutilizado posto que, aberta a carta que o continha, a referida Srª Coordenadora colocou o carimbo do Gabinete Jurídico e um seu despacho no original daquele requerimento.

O Sr. Dr. … juntou este requerimento, com o carimbo do Gabinete Jurídico do … e o despacho da Srª Coordenadora, ao presente pedido.

 

            I.3.- Neste quadro fáctico apresentado, entende o Sr. Dr. … que o procedimento da Srª Coordenadora do Gabinete Jurídico é manifestamente atentatório da confidencialidade dos dados do advogado, da sua autonomia técnica e da sua independência.

 

 

II

            II.1.- O Sr. Dr. … exerce as suas funções profissionais de advogado no Gabinete Jurídico do … em instalações próprias deste estabelecimento de saúde.

           

II.2.- Ora, qualquer que seja a natureza do vínculo profissional estabelecido, quaisquer que possam ser os interesses e as pretensões do cliente a defender e a prosseguir, quaisquer que sejam as instruções recebidas do patrocinado, existe um conjunto de direitos e deveres (designadamente os consignados no EOA) que o advogado não pode deixar de observar, mesmo em caso de eventual colisão com a natureza daquele vínculo ou com os interesses, pretensões e instruções do cliente ou patrocinado.

 

 

III

            III.1.- Um desses direitos (ou, mais propriamente, um direito/dever) do advogado é o da sua plena independência e autonomia técnica, característica essencial da profissão, amplamente consagrada no nosso EOA (p. ex., arts. 76º e 84º) e reconhecida em muitos outros diplomas legais, maxime  na Constituição da República Portuguesa (art. 208º). Essa independência abrange seguramente os aspectos técnicos da actuação processual e profissional insusceptíveis de serem determinados, controlados, avaliados, limitados ou conformados pelo cliente ou por quem quer seja.

            Assim sendo – como, efectivamente, é – não pode o cliente do advogado, por si ou por designada pessoa, ter qualquer pretensão de ingerência na actividade concreta deste nem determinar-lhe ou controlar a sua actuação técnica, mesmo no âmbito de um mandato forense. Por tal independência técnica é que se mostra reconhecido o direito do cliente solicitar ao advogado a opinião sobre o merecimento do seu direito ou pretensão e o dever deste fornecê-

-la de forma conscienciosa e fundamentada (cf. alínea a. do nº 1 do art. 95º do EOA); o direito--dever do advogado recusar o patrocínio a questões que considere injustas e não advogar contra lei expressa (cf. alíneas a. e b. do art. 85º do EOA); o dever do advogado prestar ao cliente informação sobre o andamento das questões que lhe estão confiadas (cf. alínea a. do nº 1 do art. 95º do EOA).

 

            III.2.- No caso em apreço, e quanto à questão colocada pelo Sr. Dr. …, é inteiramente legítimo a Administração do … designar ou nomear quem muito bem entender para, preenchendo os requisitos legais para o efeito, ser o Coordenador do Gabinete Jurídico, bastando-se com a qualidade de jurista do nomeado. É um poder que não lhe pode ser retirado e sobre o qual nenhum comentário emitiremos sequer.

            Porém, nem a Administração do … nem a jurista nomeada Coordenadora do Gabinete Jurídico nomeada podem interferir ou ingerir-se na área de conhecimentos e de actuação concreta dos advogados que prestam serviço profissional ao … e/ou integram o seu Gabinete Jurídico. Mesmo possuindo a licenciatura em Direito (o que, só por si, não basta para se poder exercer a advocacia), não pode a Srª Coordenadora do Gabinete Jurídico do … determinar ao Sr. Dr. … formas de actuação concreta processual e profissional que não sejam meras orientações gerais quanto às pretensões do … nos diferentes processos em que intervém, distribuir processos pelos diferentes advogados daquele Gabinete, fornecer os elementos e documentos indispensáveis à instrução desses processos, decidir sobre propostas transaccionais apresentadas.

            A isenção e a independência que são elementos essenciais da profissão de advogado não permitem que ninguém – nem mesmo o cliente – se imiscua nas decisões, comportamentos e aspectos técnicos processuais e comportamentais concretos do advogado, no exercício da consulta jurídica e do patrocínio forense, actos exclusivos da advocacia.

            À Srª Coordenadora do Gabinete Jurídico do … assistirá o direito de colher dos advogados a opinião técnica sobre os assuntos que lhes forem distribuídos e confiados, opinião que estes devem prestar de forma conscienciosa e fundamentada, bem como a informação sobre o andamento e estado dos processos (art. 95º do EOA). Qualquer outra atitude de controlo ou pretensão de ingerência nos aspectos técnicos da profissão de advogado é ilegítima e inadmissível.

 

 

IV

            IV.1.- Pelo que vem relatado (e documentado), há correspondência provinda de Tribunais e de outros Advogados dirigida ao Sr. Dr. … que, de acordo com as instruções do …, devem passar previamente pela Srª Coordenadora do Gabinete Jurídico antes de serem entregues aos advogados destinatários.

            É contra todo o bom senso, cultura social e civilidade entender-se que, por se fazer eventualmente referência ao … (no que concerne à morada), qualquer dirigente ou funcionário desta instituição está legitimado a abrir e tomar conhecimento de correspondência que vem dirigida a um funcionário ou colaborador do …. Tal peregrino e viciado entendimento conduziria a que toda e qualquer carta dirigia, por exemplo, a um médico que aí prestasse serviço, nominando-o expressamente e contendo, v.g., um cheque ou um convite para Secretário de Estado da Saúde, pudesse ser aberta e devassada por quem a Administração nomeasse para o efeito, apenas com o absurdo argumento de que essa carta, não obstante a clara individualização do seu destinatário, havia sido dirigida para o …, ou de que, por aquele aí prestar serviço, havia sempre legitimação para abertura dessa correspondência...

            Diferente seria se a correspondência não se mostrasse pessoalizada; ou seja, se fosse dirigida ao “…”, ou ao “Gabinete Jurídico do …” ou aos “Serviços de Cardiologia do …”. Mas não é esta a situação, de em todo.

 

            IV.2.- A inviolabilidade de correspondência está consagrada constitucionalmente (art. 34º da Constituição da República Portuguesa). A violação da correspondência constitui crime, previsto e punido pelo art. 194º do Código Penal.

            Custa-nos, pois, aceitar a ideia de que alguém (ainda por cima jurista) tenha sido legitimado por terceiros (ou auto legitimado) para proceder à abertura da correspondência dirigida aos advogados que trabalham no …, apenas por ser tal correspondência dirigida para a morada do …. E custa-nos aceitar essa ideia pelo simples facto de ser tão gritante e grave tal intenção e comportamento que muito dificilmente se pode acreditar ter alguém determinado (ou auto-determinado) a prática tão evidente de um crime de violação de correspondência (art. 194º do Código Penal).

 

IV.3.- Determina o nº 1 do art. 194º do Código Penal que “Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido (...) é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.

Não só não podem ser abertas as cartas dirigidas ao Sr. Dr. …, enquanto advogado, como também não o poderão ser quaisquer outras cartas que, pese embora sejam dirigidas para o …, individualizem o seu destinatário.

 

 

V

            V.1.- À situação supra descrita acresce o facto do Sr. Dr. … ser advogado e, nessa sua actividade, prestar serviços ao …, no âmbito de consulta e patrocínio judiciário.

            Ora, como advogado, está aquele Ilustre Causídico obrigado a segredo profissional, ou seja, a não revelar factos relativos a assuntos profissionais que tenham sido conhecidos no exercício da profissão ou revelados pelo cliente, co-autor, co-réu, co-interessado do cliente ou pela parte contrária ou respectivos representantes e mandatários (art. 87º, nº 1, do EOA).

            Ao mesmo segredo estão vinculados os colegas, colaboradores ou funcionários do advogado depositário de tal segredo (nº 7 do art. 87º do EOA). Colegas, colaboradores e funcionários que, como não podia deixar de ser, são livremente escolhidos pelo advogado e em quem terá este, necessariamente, que depositar plena confiança. Se assim não fosse, não seria possível ao advogado controlar os detentores desse segredo, para efeitos de apuramento da fonte de eventual fuga ou revelação.

            Ora, se um desconhecido e indeterminado número de pessoas, à revelia do advogado, tiver acesso ao segredo de que este é depositário, acedendo, sem o seu conhecimento e/ou autorização, ao conteúdo da correspondência profissional trocada, dificilmente, em caso de revelação desse segredo, se poderá detectar a origem e fonte da mesma e desresponsabilizar o seu directo obrigado.

            E o sigilo profissional não constitui apenas um privilégio ou um direito dos advogados. Configura-se, sobretudo e antes do mais, como um dever de ordem pública, dado que o valor jurídico de tutela do segredo profissional é o interesse social e público da confiança, matiz de toda a relação advogado/cliente.

 

            V.2.- É notadamente provável que a maior parte da correspondência dirigida ao Sr. Dr. …, endereçada para o …, seja de índole profissional, dadas as funções que aquele aqui exerce. Nela estarão, seguramente, notificações judiciais de despachos e peças processuais; cartas de colegas patrocinando a parte contrária, com propostas de resolução dos litígios, revelando factos atinentes a transacções que se poderão concretizar ou malograr; comunicações de co-autores, co-réus ou co-interessados nos processos em que o … é parte, com revelação de factos acobertados por segredo profissional - e que o Dr. … está vinculado a não revelar e a não permitir sejam conhecidos (por vezes, até com impedimento de conhecimento do próprio cliente, por se poder tratar, porventura, de comentários de colegas sobre a actuação daquele cliente ou por estarem abrangidos pela absoluta confidencialidade prevista no art. 108º do EOA).

            Daí, não obstante ser o … cliente e patrocinado do Sr. Dr. …, não lhe ser, só por isso, ilimitado e absoluto o acesso aos factos que ao advogado seja dado conhecer. Fica na esfera decisória do advogado seleccionar, de acordo com os critérios legais e estatutários, o que deve dar a conhecer ao cliente, sem prejuízo de dever observar escrupulosamente as obrigações que lhe são impostas pelo art. 95º do EOA..

 

            V.3.- Para além do direito geral de inviolabilidade de correspondência alheia, impõe-se, no que ao advogado respeita, uma absoluta restrição de terceiros quanto ao conhecimento do conteúdo da correspondência que envia e que recebe, para eficaz observância e controle da obrigação de segredo profissional a que está adstrito. Restrição que só permite, sempre sob responsabilidade do advogado, seja este a decidir e definir quem, com ele colaborando, possa proceder à elaboração, envio, recepção e abertura da sua correspondência.

            Assim, não pode o …, nem nenhum seu funcionário, sem expressa autorização do Sr. Dr. …, proceder à abertura (ou cometê-la a terceiros) da correspondência dirigida àquele advogado, seleccioná-la, controlá-la, visá-la e despachá-la. Bem pelo contrário, para garantir a inviolabilidade dessa correspondência e tornar segura e eficaz a obrigação do segredo profissional do advogado que lhe presta serviço, tem o … o dever de criar os mecanismos adequados a tal fim e prevenir, reprimir e denunciar a violação daqueles direito à inviolabilidade e dever de segredo.

 

 

VI

            O presente parecer segue muito de perto o Parecer (e a orientação que firmou) produzido pelo Conselho Distrital de Faro em 2 de Julho de 2004 sobre idêntica questão já ocorrida no ….

 

 

Faro, 19 de Março de 2007

 

O Presidente do Conselho Distrital de Faro

António Cabrita

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