Pareceres do CRFaro

Parecer N.º 12/PP/2007 (Conselho Distrital de Faro)

Veio o requerente, …, solicitar parecer sobre as seguintes questões:

1. Existe incompatibilidade ou impedimento legal do Advogado para intervir, no mesmo processo, como Mandatário e como testemunha?; e,

2. É legítima a recusa, por parte do Advogado, em depor como testemunha, em autos nos quais se encontre constituído como mandatário?

 

A fim de permitir a prolação de parecer, alega o requerente que:

 

a) o pedido formulado tem, como causa, o facto de o requerente ter sido arrolado como testemunha, pela mandatária da Autora, num processo cível em que é Mandatário dos Réus, mais concretamente Acção Declarativa de Anulação de Deliberação Social, a correr termos sob o número …, do … Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de …;

 

b) O requerente foi arrolado como testemunha pela mandatária da Autora, tendo o rol sido admitido, acrescentado o despacho de admissão que o depoimento é aceite “sem prejuízo do Exmo. Mandatário da Ré prosseguir com os suas funções, caso em que estará, obviamente, presente em julgamento”.

 

c) Foi designado o dia … de … de … para realização de audiência de discussão e julgamento, tendo o requerente comparecido, e respondido à chamada apenas na sua qualidade de Mandatário, recusando a fazê-lo enquanto testemunha.

 

d) No decurso da audiência, o Mmo. Juiz do processo proferiu despacho no qual convidou os mandatários a pronunciarem-se sobre o arrolamento do requerente como testemunha, requerido pela Autora, e bem assim sobre a eventual incompatibilidade entre as posições processuais de testemunha e mandatário no âmbito do mesmo processo judicial, tendo o requerente pugnado pela inadmissibilidade de tal depoimento, e, como tal, pela sua rejeição, e a mandatária da Autora defendido a compatibilidade no depoimento e requerido “o levantamento do sigilo profissional (...) de forma a que o mesmo (o requerente) viesse a ser interrogado como testemunha sobre matéria por aquele coberto”.

 

O requerente alega ser incompatível a prestação de depoimento, como testemunha, nos mesmos autos em que se encontra constituído como Mandatário, com base em diversas questões convergentes:

 

a) a liberdade no exercício do mandato forense é incompatível com o estatuto processual de testemunha, atendendo à subordinação da mesma ao Tribunal, e aos deveres impostos, incompatíveis com o livre exercício do mandato;

 

b) atendendo ao facto de o Advogado não perder a qualidade de mandatário nos autos, e atendendo, ainda, aos efeitos decorrentes do exercício do mandato com representação (produção directa de efeitos na esfera jurídica do mandante), os efeitos da sua “actuação” como testemunha ficam associados à relação de representação estabelecida (vd. Artigos 1.178.º e 251.º, ambos do C.C., e ainda artigo 36.º do C.P.C.);

 

c) A liberdade do exercício do mandato forense se encontrar, ainda, acolhida na Lei 3/99, de 13 de Janeiro (L.O.T.J); e,

 

d) anterior prolação, pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados de Parecer (Parecer E-950), que considerou incompatível a intervenção processual de Advogado como testemunha e mandatário nos mesmos autos.

 

Somos do entender, s.m.o., que assiste razão ao Requerente.

 

Por uma questão de melhor explanação, iremos, primeiro, atentar na questão formulada acerca da incompatibilidade de prestação de depoimento (como testemunha) e exercício de mandato forense, nos mesmos autos.

 

A génese de toda esta questão localiza-se no omisso, ou seja, não se encontra explicitamente determinado pela legislação processual aplicável, maxime, Código de Processo Civil, que existe incompatibilidade, ou impedimento, na questão em causa.

 

Ao verificarmos o disposto quanto à prova testemunhal, à inabilidade para depor, e, mais concretamente, à capacidade (ou incapacidade), e impedimentos, verifica-se não existir impedimento legal declarado, quanto à questão em causa, nem, tão pouco, ser considerado incapaz para testemunhar o advogado que é, simultaneamente, Mandatário e Testemunha nos mesmos autos, partindo-se do princípio que este não preencha os requisitos do artigo 616.º/1 do C.P.C.

 

Resultará da omissão uma porta aberta, ou seja, uma permissão?

 

Bastará a análise dos dispositivos que regem a parte processual civil, para se aferir da existência, ou não, de incompatibilidade e impedimento?

 

Somos do entender que não.

 

No caso em análise, pretende-se a prestação de depoimento como testemunha, em processo que se encontra a decorrer e, em virtude do qual, se encontra estabelecida uma relação jurídico-processual do Advogado com alguma das partes do processo.

 

Poder-se-ia parafrasear o citado parecer da O.A., do seu Conselho Geral, datado de 22 de Setembro do ano 2005, e no qual foi considerado, em situação em tudo similar à descrita no presente que “há um impedimento absoluto, de interesse e ordem pública, a que o Advogado deponha como testemunha”.

 

Foi mais longe o dito parecer, ao estabelecer que “não é admissível que se acumule a qualidade de julgador com a de parte, a de autor ou queixoso, de réu ou de arguido, a de testemunha ou perito com a de parte. Inúmeros são os preceitos que procuram assegurar a concretização deste princípio”.

 

E mais… “princípio que é intuitivo, como o é a proibição do incesto nas sociedades humanas”.

 

Atendendo

 

1. à possibilidade de confusão entre as duas funções exercidas (mandato e testemunha);

 

2. à necessidade de cumprir o princípio geral da não promiscuidade;

 

3. atendendo à impossibilidade prática da prestação de um depoimento isento e objectivo (vital para uma testemunha);

 

4. atendendo aos deveres, legais e estatutários do advogado em

• manter sigilo profissional, sobre factos que conheceu;

• manter independência e isenção;

• manter, com o cliente, uma relação de lealdade e confiança, somos do entendimento que existe incompatibilidade no desempenho, simultâneo, nos mesmos autos, pelo Advogado, da dupla função de mandatário e testemunha.

 

E não se diga que aquilo que a Lei não proíbe, permite, pois, como infra se virá, a existência do sigilo profissional cede perante a lei processual civil, designadamente, perante o dever basilar do nosso ordenamento, que é o dever de cooperação para a descoberta da verdade.

 

Definida que se encontra a primeira situação, analisemos a segunda:

 

Será legítima a recusa em depor?

 

A resposta é, necessariamente, sim, não apenas atendendo a tudo quanto supra se verteu, mas, agora sim, por uma mera análise processual.

 

Vejamos a questão…

 

Supra já se analisou que a prestação de depoimento como testemunha em processo em que o Advogado é mandatário, incidiria, sempre, sobre factos de que o mesmo, porventura, teve conhecimento no exercício das suas funções, os quais se encontram a coberto do sigilo profissional… ou seja, o advogado teria de, necessariamente, violar o segredo profissional a que se encontra obrigado.

 

Dispõe o artigo 618.º/3 do C.P.C., sob a epígrafe “recusa legítima a depor” que se devem “escusar a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional (…) relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no n.º 4 do artigo 519.º”.

 

Dispõe o número 4 do citado artigo 519.º, que a recusa em depor é legítima se a obediência importar “c) violação do sigilo profissional (…).”

 

Assim, importa concluir que, no presente caso, a recusa em depor é legítima.

 

Em conclusão:

 

a) há um impedimento absoluto, de interesse e ordem pública, a que o Advogado deponha como testemunha nos mesmos autos em que é mandatário;

 

b) a recusa em depor, em tais circunstâncias, será legítima, se o depoimento obrigar à revelação de factos de que teve conhecimento no âmbito da relação profissional.

 

Esta é, s.m.o., a nossa opinião.

Gilda Barreto

Topo