Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 49/PP/2017-C

Processo de Parecer n.º 49/PP/2017-C

 

A Exma. Sra. Dra. FR (...), Advogada que usa o nome profissional de FR (...), dirigiu a este Conselho comunicação em que pretende colher parecer sobre a existência ou não de incompatibilidade entre a advocacia e outra actividade, que não classifica mas que proficientemente descreve e contextualiza.

Na verdade, afirma-se possuidora da capacidade de falar com o Além desde a idade de 9 (nove) anos, altura em que também se apercebeu da respectiva capacidade mediúnica; acrescenta, no entanto, que sempre ocultou tal dom receosa de opiniões eivadas de preconceito.

Mais refere que além de licenciada em Direito é detentora de vários cursos esotéricos e holísticos, onde avultam o curso de Reiki, o de Hipnose de Regressão das Vidas Passadas e o de Terapia Dimensional ou Cura do Coração – conhecimentos que, segundo diz, se baseiam na energia e Seres de Luz que, por isso, permitem tratamentos fora do alcance da medicina convencional. Esclarece, ainda, que o culto desses conhecimentos configura uma religião – o Espiritismo.

Ora, atenta a referida feição de religião (compatível com o catolicismo que também diz professar) pensa a Exma. Sra. Advogada que não há qualquer incompatibilidade com a advocacia “já que uma é uma actividade profissional baseada nas leis do Homem e a outra nas leis de Deus”, invocando, ainda, a liberdade religiosa de matriz constitucional.

Não obstante, pretende saber se pode continuar a exercer a advocacia se resolver exercer, em simultâneo, a prática holística que entende associada à Religião.

Apreciando:

 

Desde logo, importará assinalar que este Conselho Regional tem competência para a emissão do presente parecer, quer por se tratar de situação atinente à respectiva área de competência territorial (artigo 54º, 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados), quer porque consubstancia questão de carácter profissional relativamente à qual, nos termos do disposto na al. f) do sobredito inciso, lhe cabe pronunciar-se, sendo certo que, especificamente quanto a incompatibilidades, tal obrigação resulta reforçada pelo que vem estatuído no n.º 5, do artigo 81º, do mencionado diploma legal.

Ora, procurando ser claro e conciso, dir-se-á:

A Constituição da República Portuguesa assegura a liberdade de consciência e de culto (artigo 42º, 1), bem como a impossibilidade de resultar alguma repercussão no exercício de direitos motivado pelas confissões ou práticas religiosas adoptadas (n.º 2 do citado inciso constitucional).

Isto dito, evidente se torna que a um Estado, intrinsecamente laico como é a República Portuguesa, não cabe eleger o que é religião, muito menos densificar uma qualquer espécie de critérios que permitam classificar, de forma dicotómica e maniqueísta, uma qualquer mundividência como “boa” ou “má”. Vale por dizer que a afirmação da Exma. Colega de que as práticas a que se dedica revestem índole religiosa tem de ser aceite como incontornável. Bem assim, identicamente, terá de defender-se o inalienável direito da Exma. Colega Requerente de professar tais crenças e de as cultivar como bem se lhe aprouver.

No entanto, as sobreditas asserções – apesar de, ao que se crê, emergirem como insusceptíveis de qualquer reparo – não encerram em si mesmas a virtualidade de solucionar a pluralidade de questões que se suscitam.

Na verdade, a Exma. Requerente demonstra saber que tem o direito constitucionalmente aferrado de desenvolver a actividade religiosa que entender; quer é esclarecer se, de forma concomitante, pode ser advogada e desenvolver o que designa de “prática holística”.

Ora, é consabido que o EOA, em matéria de incompatibilidades, cria o que se poderá epitetar de regime dual ou complementar. De facto, há uma norma geral (artigo 81º, 2 do EOA) que convida a uma análise casuística – “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possam afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão” – a par de um elenco vinculado em que a incompatibilidade tem uma matriz inexoravelmente legal (as diversas hipóteses do artigo 82º do mencionado instrumento legal).

Ora, desde logo, há que reconhecer que a situação trazida a decisão pela Exma. Requerente não vem contemplada no catálogo do citado artigo 82º como uma daquelas terminantemente qualificadas como inconciliáveis com a Advocacia (de resto, como bem anota ANTÓNIO ARNAUT “A norma deixa de fora profissões e actividades que noutros países são incompatíveis com a advocacia (v.g. clero, jornalistas, comerciantes, directores de bancos e deputados – in EOA Anotado, 11ª Edição, pág. 85).

Ou seja, qualquer incompatibilidade só poderá ressumar da citada norma genérica que afirma que qualquer função que se desempenhe colide com a advocacia sempre que puser em causa os seus princípios matriciais, maxime a isenção, a independência e a dignidade que lhe devem estar imanentes.

Liminarmente dir-se-á que não se descortina como a independência e a isenção da advocacia possam vir, sequer em tese, a serem afectadas pelo desenvolvimento paralelo de acções conexas com o espiritismo.

Acredite-se, ou não, em tal peculiar fenomenologia haverá de reconhecer-se que a afirmação da Exma. Requerente de que a mesma, sendo do domínio imaterial, não contende com as leis dos Homens adquire aqui integral e insofismável cabimento: dizendo de outra forma, quiçá mais incisiva, tal mundo não é deste reino, onde deve imperar uma lógica que se pretende estritamente racional.

No que tange à dignidade, haverá de frisar-se, a discussão já assume maiores melindre e dificuldade:

- com efeito, um pensamento impregnado de um cepticismo militante e radical atribuirá a tais actividades um carácter quase burlesco e, como tal, impossível de conciliar com a dignidade da advocacia… Todavia, uma afirmação desse teor contrariaria a Constituição e tornar-se-ia alvo fácil da clássica tirada hamletiana “há mais coisas entre o céu e a terra do que as da tua filosofia”…

Se, de facto, há matéria extremamente vulnerável a uma aproximação preconceituosa (eventualmente potenciada pelo emprego de expressões tais quais “Seres da Luz” e “Regressão das Vidas Passadas”, algo avessas a uma compreensão racional) é esta; se existe um terreno fértil para ridicularizações fáceis é este. No entanto, quanto maior a fragilidade, maior haverá de ser a tolerância, até porque, para dizer de novo com Shakespeare “nada é bom ou mau em si; depende do julgamento que fizermos.” Isto é, embora a inteligência lógica e a racionalidade cartesiana possam levar a uma apressada rejeição do holismo e do esoterismo como produtos de lucubrações relevantes no mundo do fantástico, a tolerância militante – que é apanágio da advocacia – deve permitir o convívio com essas mundividências heterodoxas.

Ou seja, quem se dedica a essa espécie de estudos e práticas não sofre de qualquer diminuição na sua capacidade de exercer a advocacia.

Todavia, permita-se que se acrescente, ainda de forma que se pretende cortantemente icástica:

“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Mateus, 22, 21.

  Significa isto que à concomitância de exercícios entre a advocacia e a prática holística deve corresponder um integral apartamento físico e um imprescindível distanciamento das “persona”. A título meramente paradigmático – e sem querer incorrer em qualquer espécie de boutade de mau gosto – dir-se-á que o escritório de advocacia deve ser integralmente distinto do local da prática curativa pela Luz. Na realidade, como a própria Exma. Requerente aduz, há práticas esotéricas por contraponto a uma advocacia exotérica que em caso algum se devem misturar.

Em conclusão:

Sou de parecer que inexiste qualquer incompatibilidade entre os concomitantes exercício da advocacia e a prática holística, desde que ambas sejam levadas a cabo em locais distintos e sem propiciarem qualquer confusão entre as “persona” que se dedicam a uma e outra.

À Sessão.

Coimbra, 11 de Janeiro de 2018

 

Jacob Simões

Topo