Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 26/PP/2019-C

Processo de Parecer n.º 26/PP/2019-C

 

Em 8 de Abril de 2019, por email remetido pelo Exmo. Sr. Dr. FT..., Contabilista Certificado com a cédula profissional n.º 8…, sócio gerente da empresa EC… – Consultoria e Contabilidade, L.da, foi solicitado a emissão de parecer perante a seguinte situação que se lhe apresentou:

Na qualidade de contabilista certificado, celebrei em Outubro passado, um contrato de prestação de serviços, em nome da empresa supra, assumindo directamente a responsabilidade pela execução da contabilidade, com a empresa LS… – Metalomecânica…, L.da.

Resulta que, recebi alguns correios electrónicos remetidos por um colega, Dr. JV..., através dos quais me solicitava a prestação de informações referentes à contabilidade desta empresa, conforme documentos que anexo. (Cfr. Doc. 1, 2 e 3)”

“Analisando os documentos aludidos, vemos que o Dr. JV..., pretende avançar para o Ministério Público, estando a analisar a licitude dos atos praticados.”

“A intervenção e alegada legitimidade, referida pelo próprio e pela sociedade, é conferida pela procuração outorgada, para que o mesmo efetue a ligação entre a minha empresa de contabilidade e a sociedade, com vista à preparação de um negócio jurídico, pois como é referido, há um potencial investidor da empresa cliente. (Cfr. Doc. n.º 4, 5 e 6)

Ou seja, estes factos que me deveriam ser transmitidos, para constarem das demonstrações financeiras, estão a ser abordados por um contabilista alheio à sociedade, que age em representação desta, em moldes não muito bem esclarecidos.

Tendo eu recusado inicialmente a prestação de informações, solicitei um documento idóneo que legitimasse a representação da empresa, considerando que a gerência pode ser assumida por terceiros legitimados a representar plenamente uma sociedade. Porém, sem que nada me tenha sido apresentado nesse sentido, foi-me remetida uma simples procuração, que impulsionou o pedido de parecer que ora se apresenta.

Ora, a análise da contabilidade e a produção de demonstrações financeiras é elaborada por mim, na qualidade de contabilista certificado. No meu entender, e salvo melhor opinião, estes atos de preparação de negócio jurídico, de análise de documentação para apresentar queixa-crime, são próprios de um advogado, mais ainda quando é um contabilista sem assunção de responsabilidade perante a Autoridade Tributária e a Ordem dos Contabilistas Certificados, a prestar esse serviço a um terceiro.”

“Pelo supra exposto, requer-se a V.Ex.ª se digne a emitir parecer sobre a licitude do mandato outorgado pela sociedade LS… – Metalomecânica…, L.da ao Dr. JV..., nos termos supra citados, mais informando se ao prestar colaboração a este último, nos termos solicitados e sobreditos, não incorro na prática de atos irregulares e/ou ilícitos, o que não pretendo.”

A aludida procuração, junta com o pedido de parecer tem o seguinte teor: “LS… ….gerente da empresa LS… – Metalomecânica…, L.da …., vem pela presente informar que constitui seu bastante procurador JV...a quem confere poderes para poder analisar, consultar e pedir informações sobre o movimento contabilístico e estado patrimonial da empresa responsável pela contabilidade EC….

O pedido de parecer foi distribuído à ora relatora em 29 de Outubro de 2019.

O Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro, doravante designado por EOA, atribui competência aos conselhos regionais, no âmbito da sua competência territorial, para a pronúncia “sobre questões de carácter profissional”.

Os pareceres emitidos pelo Conselho Regional de Coimbra, doravante designado por CRC, nomeadamente os emitidos no âmbito da alínea f) do n.º 1 do artigo 54º do EOA, devem versar sobre questões claramente colocadas, que sejam de carácter profissional, sendo que, como é entendimento pacífico e muito consolidado na jurisprudência da Ordem dos Advogados, tais questões são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, designadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio, reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem.

O Ex.mo Sr. Dr. FT..., Contabilista Certificado, aqui requerente, coloca a questão sobre a licitude ou não do mandato conferido pela sociedade LS… – Metalomecânica…, L.da ao Sr. Dr. JV..., sem que este tenha a assunção de responsabilidade perante a AT e a Ordem dos Contabilistas Certificados, tendo como objectivo a dita procuração, face ao que é alegado nos documentos (emails) juntos com o pedido de parecer, “avançar para o Ministério Público” com uma queixa-crime e, ainda, a preparação de um negócio jurídico. E, ainda, é colocada a questão se o ora requerente incorre na prática de actos irregulares e/ou ilícitos.

Para responder à questão sobre a licitude do mandato, importa definir o conceito de “Mandato forense” à luz da Lei dos Actos Próprios dos Advogados e dos Solicitadores – Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto – e do Estatuto da Ordem dos Advogados.

A Lei dos Actos Próprios dos Advogados e dos Solicitadores, doravante designada por LAPAS – Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto – considera que os actos próprios ali elencados, desde que exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei (Cfr. artigo 1º n.º 7 da LAPAS).

Por outro lado, no Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, doravante designado por EOCC – Lei n.º 139/2015, de 7 de Setembro – há que apurar quais as funções atribuídas ao contabilista certificado e se estas se enquadram ou não na excepção prevista na LAPAS, no seu artigo 1º n.º 7.

O EOCC no seu artigo 10º define as funções do contabilista certificado da seguinte forma: compete a estes planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades, públicas ou privadas, que possuam ou que devam possuir contabilidade organizada segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis ou o sistema de normalização contabilística, conforme o caso, respeitando as normas legais, os princípios contabilísticos vigentes e as orientações das entidades com competências em matéria de normalização contabilística; assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilísticas e fiscal, das entidades já referidas; assinar, conjuntamente com o representante fiscal das entidades referidas, as respectivas demonstrações financeiras e declarações fiscais, fazendo prova da sua qualidade, nos termos e condições definidos pela Ordem, sem prejuízo da competência e das responsabilidades cometidas pela lei comercial e fiscal aos respectivos órgãos; exercer funções de consultoria nas áreas da contabilidade e da fiscalidade; intervir, em representação dos sujeitos passivos por cujas contabilidades sejam responsáveis, na fase graciosa do procedimento tributário e no processo tributário, até ao limite a partir do qual, nos termos legais, é obrigatória a constituição de advogado, no âmbito de questões relacionadas com as suas competências específicas; e, finalmente, desempenhar quaisquer outras funções definidas por lei, relacionadas com o exercício das respectivas funções, designadamente as de perito nomeado pelos tribunais ou por outras entidades públicas ou privadas.

Escrutinadas as funções do contabilista certificado no EOCC poderemos concluir que não se enquadra, em nenhuma delas, o acto de análise de factos passíveis de participação criminal para o Ministério Público, nem o acto de preparação de um negócio jurídico, nem, tão pouco, o acto de aconselhar a empresa a denunciar um contrato com justa causa. Pelo que a resposta a esta questão: se um contabilista Certificado pode proceder a tal serviço tem de ser negativa por não se enquadrar em qualquer das funções que são acometidas ao contabilista certificado pelo artigo 10º do EOCC. Acresce às razões acima invocadas que, nos termos do artigo 70º n.º 3 do EOCC, os contabilistas certificados apenas podem subscrever as declarações fiscais, as demonstrações financeiras e os seus anexos que resultem do exercício directo das suas funções, o que não é o caso, considerando que o Sr. Dr. JV... não tem a assunção da responsabilidade da contabilidade da empresa mandante.

O contabilista certificado pode ser mandatado por uma empresa para requerer apresentação de queixa-crime junto do Ministério Público e para preparação de um negócio jurídico?

Antes de mais, saliente-se e note-se que, como acima já foi analisado, o contabilista certificado não tem a função de apresentar junto do Ministério Público uma participação crime nem a função de preparar um negócio jurídico.

Mas ainda assim, é condição sine qua non verificar se este mandato pode configurar um acto próprio de advogado à luz quer da LAPAS, quer do EOA. A LAPAS define o mandato forense, como o mandato judicial conferido para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz. Deste modo, é por demais evidente que o contabilista certificado não poderá ser mandatado para participar criminalmente ao Ministério Público por conta de um terceiro. Quanto aos poderes para preparar um negócio jurídico. É importante salientar que com a alteração do EOA em 2015, o conceito de mandato foi alargado muito para além do conceito definido na LAPAS. Senão vejamos, no artigo 67º alínea b) e c) do EOA, é também definido como mandato forense, respectivamente: “O exercício do mandato com representação, com poderes para negociar a constituição, alteração ou extinção de relações jurídicas”; “O exercício de qualquer mandato com representação em procedimentos administrativos, incluindo tributários, perante quaisquer pessoas coletivas públicas ou respetivos órgãos ou serviços, ainda que se suscitem ou discutam apenas questões de facto.”. É evidente, perante esta definição de mandato forense no EOA, que o mandato de uma empresa para poder ser representada na preparação de um negócio jurídico é um mandato forense. No artigo 2º da LAPAS o mandato forense é classificado como um acto próprio dos advogados. Logo, tratando-se de um acto próprio dos advogados e dos solicitadores não pode este ser praticado por pessoa que não seja advogado ou solicitador, devidamente inscrito na respectiva Ordem profissional. Assim, também, a resposta a esta questão tem de ser negativa.

Na nossa opinião, o exercício de mandato forense por contabilista certificado junto do Ministério da Público, configura a prática de procuradoria ilícita, nos termos do preceituado no artigo 1º n.º 5 alínea a) da LAPAS e punível pela prática de crime de procuradoria ilícita, previsto e punível pelo artigo 7º da LAPAS.

A segunda questão colocada é atinente à possibilidade do requerente deste parecer poder ou não incorrer na prática de actos irregulares e/ou ilícitos ao fornecer a informação pedida pelo mandatário da empresa.

Ainda que se tenha chegado à conclusão de que o exercício do mandato por quem não tem legitimidade para tal, configurando tal acto a prática de procuradoria ilícita, não nos parece, salvo melhor opinião, que o requerente deste parecer esteja a praticar um acto ilícito, pelo menos do ponto de vista do campo da procuradoria ilícita que é o que nos compete aferir. Já quanto ao ponto de vista criminal, nomeadamente se integra cumplicidade ou outra figura jurídica, não é a este Conselho que compete fazer tal apreciação e enquadramento jurídico. Mas ainda assim, sempre se poderá dizer que é um direito que assiste ao requerente o de não prestar informações a terceiros que não a sua cliente, porquanto todas as informações contabilísticas poderão e deverão ser prestadas à sua cliente e esta, por sua vez, poderá facultá-las a quem quiser, incluindo aquele mandatário.

 

Conclusões:

1 – Escrutinadas as funções do contabilista certificado, concluímos que não se enquadra, em nenhuma delas, os actos de análise dos factos e participação para o Ministério Público, a preparação de um negócio jurídico e o aconselhamento a uma empresa para denunciar um contrato com justa causa. Pelo que, um contabilista certificado não pode proceder a tais serviços por não se enquadrar em qualquer das funções que são acometidas ao contabilista certificado pelo artigo 10º do EOCC.

2 - A representação de uma empresa, por terceiros não advogados ou solicitadores, junto de qualquer entidade pública ou privada, designadamente do Ministério Público ou até mesmo de contabilista certificado da empresa, com procuração conferida pela empresa, quando respeite a actos que reclamem conhecimentos jurídicos e da legislação a eles atinentes e até mesmo quando apenas se suscite ou discuta meras questões de facto, configura, inequivocamente, o exercício de mandato forense, consubstanciando-se na prática de procuradoria ilícita, nos termos do preceituado no artigo 1º n.º 5 alínea a) da LAPAS.

3 - Os actos próprios dos advogados e dos solicitadores praticados por terceiros que não sejam advogados ou solicitadores enquadram-se na prática de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punível pelo artigo 7º da LAPAS.

4 – O fornecimento de informação pelo contabilista certificado de uma empresa a um mandatário constituído por aquela, não configura a prática de crime de procuradoria ilícita.

 

É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.

 

Graziela Antunes

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