Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 28/PP/2019-C

PROCESSO DE PARECER Nº 28/PP/2019-C

 

            O Senhor Dr. JS…, Ilustre Advogado com escritório em …, dirigiu comunicação ao Conselho de Deontologia de Coimbra, entrada naqueles serviços a 22 de Outubro de 2019, a colocar questões atinentes à factualidade que narra. Pela Sra. Dra. Maria José Vicente, Presidente do órgão destinatário da aludida missiva, foi emitido despacho, a 24 de Outubro de 2019, a remeter tal expediente ao Conselho Regional por entender – e bem – que a competência para a eventual resposta cabe a este órgão. Após tramitação interna levada a cabo pelo Sr. Vogal coordenador do pelouro, veio, a 10 de Janeiro do corrente ano, o referido expediente a ser confiado ao ora relator.

O Ilustre Colega autor do pedido em apreciação narra que o Serviço de Finanças de ..., invocando o princípio da colaboração plasmado no artigo 59º da Lei Geral Tributária, o intimou para, em quinze dias, remeter ao aludido serviço cópia das facturas/recibos por ele emitidos à Sra. D. MP…, Constituinte do Requerente. Mais solicita o mesmo Serviço que o Ilustre Colega Requerente, caso haja sido pago através de cheque ou transferência bancária, identifique o Banco e remeta cópias dos eventuais meios de pagamento usados.

Acrescenta que a intimação em causa contém a advertência de que a falta de colaboração com o solicitado o fará arrostar com a prática de contra-ordenação sancionável com coima de montante apreciável.

Ora, refere o Ilustre Colega, o procedimento adoptado pelo identificado serviço suscita-lhes dúvidas quer por força da protecção que a relação Advogado/Constituinte merece em termos de segredo profissional, quer por entender que o fundamento invocado – colaboração – não tem uma extensão tal que obrigue os mandatários a prestarem informações da tipologia das que lhe são solicitadas.

No entanto, para seu conforto, solicita o parecer aqui em causa sintetizado na questão de se saber se os pedidos dos Serviços de Finanças que indica estão a coberto da legalidade e se uma resposta que dê violará, ou não, os deveres de segredo profissional que vinculam os advogados.

Apreciando:

 

Desde logo, importará assinalar que este Conselho Regional tem competência para a emissão do presente parecer, quer por se tratar de situação atinente à respectiva área de competência territorial (artigo 54º, 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados), quer porque consubstancia questão de carácter profissional relativamente à qual, nos termos do disposto na al. f) do sobredito inciso, lhe cabe pronunciar-se.

Se bem se interpreta a situação que vem colocada a factualidade relevante é:

-                          Pelos Serviços de Finanças de ... cursa procedimento onde é visada a Sra. D. MP….

-                          A sobredita Senhora outorgou ao Sr. Advogado que solicita o parecer – Sr. Dr. JS… – procuração forense para o representar nesse específico âmbito.

-                          O Serviço de Finanças – sem nada explicitar e ao abrigo de uma ideia genérica de colaboração – solicita ao Senhor Advogado da cidadã alvo da investigação em curso informação, ao que parece, destinada a instruir o processo.

 

É esta, ao que se crê, a factualidade que ressuma do expediente examinado e, como tal, será a que se considerará para a emissão do requerido parecer.

 Antes de abordar a problemática suscitada pelo Ilustre Advogado a que cumpre dar resposta, permita-se que se recorde que, acima de qualquer texto legal, está a Constituição da República. E que, dizendo de forma propositadamente simples mas inquestionavelmente implicada, a Constituição tem de funcionar como um inafastável farol heurístico e intransponível limite na aplicação de qualquer solução legal conjunturalmente vigente na República.

Ora, um dos preceitos constitucionais com aplicação transversal em todos os procedimentos que coloquem em causa cidadãos é o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

De resto, pela sua lapidar importância enquanto pilar fundamental de um Estado que se quer de Direito, permitimo-nos transcrevê-lo integralmente:

 

 “(Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva)

1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

 

Deste inciso constitucional destaca-se, pela sua relevância para a questão em debate, a parte final do n.º 2 (direito ao patrocínio forense) e a enunciação do princípio do fair trial, processo equitativo, ou due process of law – com acolhimento expresso na parte final do nº 4 do preceito constitucional que se transcreveu.

Este mecanismo – processo equitativo – surge como uma densificação de elementos integrantes da garantia inscrita em instrumentos de protecção de direitos fundamentais, nomeadamente o artigo 6º, parágrafo 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e coenvolve a conjugação de elementos orgânicos e funcionais – relativos ao tribunal e à organização e à dinâmica do processo – e outros de natureza processual.

Como se diz no Ac. do STJ de 17 de Março de 2004, no Proc. 04P230 in www.dgsi.pt, “A enunciação descritiva dos elementos do processo equitativo, como meio de realização da boa justiça, permite afirmar tanto a complexidade deste direito fundamental, como a estruturação referida ao processo tomado no seu conjunto.

Na estruturação do direito podem destacar-se os elementos ou mecanismos de garantia; o domínio da garantia e respectivo conteúdo geral; e também especialmente alguns elementos do conteúdo específico que apresenta em matéria de processo penal.

As exigências especificamente processuais da garantia do processo equitativo (igualdade ou equilíbrio, causa apreciada publicamente e em prazo razoável) têm, por seu lado, que ser apreciadas, não numa perspectiva estratificada do processo, mas essencialmente na consideração do conjunto, ou da totalidade do processo

Depois, no mesmo aresto, remata-se “A apreciação e o controlo da efectividade da garantia do processo equitativo no domínio do processo penal deve operar por meio da análise dos chamados "reactivos" ou "detectores de iniquidade": o respeito dos direitos de defesa, a igualdade de armas, a imposição de debate contraditório, a presunção de inocência, a audiência pública.

Para dizer com GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA – Constituição da República Anotada, 4ª Edição Revista, Vol. 1,pág. 415 - “O due process positivado na Constituição portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa (exigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processo) mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais”.

Concordar-se-á, identicamente, que uma ideia matricial de um processo justo é a garantia do nemo tenetur – isto é, o direito a não auto-incriminação, directamente decorrente do n.º 1 do artigo 32º também da Constituição da República Portuguesa.

Em linhas básicas, portanto, um processo investigatório de natureza sancionatória tem de respeitar elementos cruciais para a afirmação do Estado de Direito:

tem de ser intrinsecamente justo e de utilizar os mecanismos adequados para que essa ideia matricial de justiça se afirme em todos os momentos da tramitação prosseguida, designadamente aceitando os direitos de defesa do visado, assegurando-lhe o direito de constituir advogado e garantindo-lhe que jamais será obrigado a incriminar-se colaborando forçadamente com a investigação.

 

Ao que se crê, as singelas asserções que acabam de se efectuar são absolutamente inteligíveis e todos os agentes do Estado – até os Serviços de Finanças – as aceitarão como inelutáveis.

Isto assente, examine-se – justamente à luz dos ditames dimanados da norma normarum – a pretensão dos Serviços de Finanças de ...:

 

Implicará o dever de colaboração do artigo 59º da LGT a obrigação do advogado que patrocina um cidadão junto dos Serviços de Finanças de dar informação sobre o seu Constituinte passível de prejudicar a causa que defende?

Evidentemente que não.

 

Desde logo, tal princípio de cooperação pressupõe a boa fé de todos os intervenientes e só é esgrimível em um cenário de lealdade e confiança recíprocas – vide o esclarecedor n.º 2 do artigo citado.

Ora, a conduta dos Serviços de Finanças de ..., ao invés de emergir nesse idílico cenário de uma fundamental e exigida bona fides, parece ser tributário de um intuito persecutório extremado, destinado a encerrar o advogado da cidadã investigada em um dilema irresolúvel: ou colabora com a máquina fiscal, eventualmente prejudicando a Constituinte que confiou nele a defesa dos seus legítimos interesses ou responde por ilícito de mera ordenação social. Ou seja, o nemo tenetur deixa de ser vinculante para a pretensão punitiva do Estado, instrumentalizando-se quem tem a função de exercer a defesa do Constituinte e obrigando-se este, sob pena de incorrer em contra-ordenação, a agir em detrimento da causa que está mandatado para defender – e, no limite, tal “colaboração” pode fazer incorrer o intim(id)ado em crime de prevaricação de advogado, p e p. no artigo 370º Código Penal (Vide, n.º 1, do citado preceito quando estatui que “O advogado ou solicitador que intencionalmente prejudicar causa entregue ao seu patrocínio é punido com pena de prisão…).

 

Não pode ser!!!

 

À investigação fiscal não é dado o arbitrário e ilimitado poder de socavar o Estado de Direito e violar os direitos das pessoas, de caminho esquecendo que o patrocínio forense é uma garantia fundamental da administração da Justiça.

Com efeito, por uma outra vez a Constituição da República Portuguesa no seu artigo 208º, exactamente sob a epígrafe “Patrocínio forense”, esclarece que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.

Vale por dizer, pois, que o Texto Fundamental se coloca nos antípodas de actuações sub-reptícias e desrespeitosas da advocacia como aquela aqui examinada – que, recorda-se, ousa ameaçar um advogado com a prática de contra-ordenação, ao mesmo tempo que, concomitantemente, o empurra para condutas passíveis de o fazerem incorrer na prática de crime.

 

Est modus in rebus!

 

Em um Estado que se quer de Direito o advogado não deve ser sujeito a dilemas desta natureza; pelo contrário, deve ser reconhecida a relevância da função que se desempenha e garantidas as imunidades – é a expressão com arrimo constitucional – indispensáveis a um cabal exercício funcional. Ao invés de se estenderem armadilhas para colocar os advogados em situação de “preso por ter cão e preso por o não ter” – passe o plebeísmo imanente ao adágio – deve promover-se a lide leal, no respeito por todos – mesmo todos – os operadores como impõe a sã convivência entre todos os intervenientes processuais. Até porque um dia – permita-se a premunição – poderá precisar-se de um advogado e aí quererá constituir-se um profissional dedicado, sabedor e absolutamente livre de desusadas e indevidas ingerências externas que castrem ilicitamente a sua actuação.

Felizmente, de resto, há tribunais atentos ao carácter pernicioso de certas práticas e resilientes defensores do Estado de Direito. Com efeito, recentemente o Tribunal Constitucional pronunciou-se, em termos taxativos, sobre expedientes de indesejável índole – e, de alguma forma, aparentados àquele aqui em exame – exprobrando-os de forma icástica.

Na verdade, em Acórdão de 15 de Maio de 2019 – processo 1043/17 da 2ª Secção do TC – decidiu “julgar inconstitucional, por violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, ínsito no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República portuguesa, a interpretação normativa dos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 125.º e 126.º, n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Penal, segundo a qual os documentos fiscalmente relevantes obtidos ao abrigo do dever de cooperação previsto no artigo 9.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira e no artigo 59.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária por uma inspeção tributária realizada a um contribuinte, durante a fase de inquérito de um processo criminal pela prática de crime fiscal movido contra o contribuinte inspecionado e sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, podem ser utilizados como prova no mesmo processo” mostrando um severo cartão vermelho a tal espécie de práticas mais consentâneas com uma qualquer distopia do que com um Estado de Direito.

Ora, assim sendo, é evidente o sentido do parecer:

Por questões conexas às garantias constitucionais inerentes a qualquer processo de natureza repressiva e sancionatória – em que avultam princípios tais quais o do processo equitativo, a garantia do direito à não auto-incriminação e ao patrocínio forense – o advogado constituído em processo fiscal não é obrigado a prestar informações sobre o seu cliente, designadamente a conta bancária de que foi pago, susceptíveis de prejudicar o patrocínio que mantém.

A ameaça com processo de índole contra-ordenacional por violação de putativo dever de colaboração colide com a natureza das garantias elencadas e é passível de poder emergir como abuso de poder – crime p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal.

Assim sendo, prejudicada está a avaliação se o cumprimento por parte do advogado da intim(id)ação de que foi alvo traduzirá eventual violação de dever profissional, dado que tal aferição é assessória relativamente às questões cruciais em debate.

Extraia-se certidão do expediente e envie-se ao Ministério Público de ... – com conhecimento à Exma. Senhora Procuradora Geral da República e ao Bastona Geral da República e ao Bastonenientes. intimaçtias elencadas e eza repressiva e sancionat direito de constituir advogado (queário da Ordem dos Advogados – para os efeitos tidos por convenientes.

 

Jacob Simões

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