Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 32/PP/2019-C

PROCESSO DE PARECER Nº 32/PP/2019-C

 

            A Senhora Dra. SM..., Ilustre Advogada com escritório em A..., dirigiu comunicação a este Conselho colocando diversas questões atinentes a eventual sujeição a segredo profissional de determinadas matérias que elenca, face ao facto de ter sido arrolada como testemunha em processo que identifica – justamente os embargos de executado numerados 70.../19.7TB...-A, do Juiz 1, do Juízo de Execução de A... da Comarca de L....

            A fim de contextualizar os problemas que suscita, narra que as partes aí em litígio são as mesmas do Inventário, subsequente a Divórcio que correu seus termos sob o n.º 170/17 do Cartório Notarial de A..., do Sr. Dr. Rui Ferreira. Ora, segundo aduz, foi nomeada patrona da aí requerente Fernanda dos Santos Pina de Moura Siopa, conforme resulta do documento dimanado deste CRC e que junta.

Por outra banda, segundo refere, cursa ainda pelo Juiz 1, do Juízo de Execução de A..., da Comarca de L..., o Proc. 20.../18.2T8... em que intervém como patrona de FS... e em que está em causa materialidade conexa ao já falado Inventário.

Nesta confluência, dado que o falado Processo 20.../18.2T8... ainda está pendente, crê a Ilustre Advogada Requerente que não fará sentido testemunhar em um processo – o de embargos – e honrar o patrocínio em outro. Por isso, e por entender que o depoimento que prestar pode colocar em causa o segredo profissional, dada a conexão entre todos os processos, anuncia não querer depor sobre factos de que teve conhecimento enquanto advogada.

No entanto, “para não incorrer em responsabilidade perante o Tribunal, nem perante a Ordem dos Advogados” vem pedir o presente parecer reiterando que “não pretende prestar depoimento como testemunha”.

 

Apreciando:

 

Desde logo, importará assinalar que este Conselho Regional tem competência para a emissão do presente parecer, quer por se tratar de situação atinente à respectiva área de competência territorial (artigo 54º, 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados), quer porque consubstancia questão de carácter profissional relativamente à qual, nos termos do disposto na al. f) do sobredito inciso, lhe cabe pronunciar-se.

Por outra banda, as questões colocadas, tal qual emergem recortadas no Douto Requerimento em exame, colidem, indubitavelmente, com o dever de segredo profissional.

Ora, é apodíctico que, conforme resulta do n.º 1 do artigo 92º do E.O.A., o Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções, mesmo após o término da relação de mandato.

Por outro lado, por força do disposto no n.º 4 do sobredito inciso legal, o Advogado só pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, previamente autorizado pelo respectivo Presidente do Conselho Regional.

In casu, contudo, a Exma. Colega não vem requerer a dispensa da obrigação de manter segredo. Pelo contrário, expressa taxativamente que não pretende depor no processo onde está convocada, justamente por que tudo o que sabe – segundo refere – advém do seu exercício funcional como advogada...

Assim, emergirá como indispensável para o sentido do parecer a emitir a indagação, desde logo, se a materialidade em causa estará, ou não, a coberto do dever de segredo.

Ora, para a emissão de tal juízo mostra-se essencial considerar o teor do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Aí se estatui, na parte que para aqui interessa, que:

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

(…)

 

Da leitura dos segmentos da norma que se transcrevem parece resultar que a obrigação de guardar segredo tem uma vocação hegemónica; isto é, tudo quanto um advogado sabe no exercício funcional está submetido ao dever de sigilo, só podendo efectuar revelações de forma extremamente limitada e nos casos rigorosamente previstos no texto legal.

Evidentemente que a referida asserção não reflecte a essência do dever de guardar segredo:

- dizendo de forma propositadamente enxuta, tal dever só existe desde que lhe subjazam obrigações de reserva e de ocultação conexas ao facto de se ter escutado uma confidência que só ocorreu em virtude da confiança na advocacia

A não ser assim, o exercício da função de um advogado seria um inferno burocrático gerador de um caos permanente para os presidentes dos Conselhos Regionais da Ordem. Na verdade, cada vez que um advogado escutasse a versão de um qualquer Constituinte para instruir um qualquer pedido junto de uma instância formal estaria manietado na sua acção enquanto não fosse desvinculado do dever de segredo…

Como ressuma perspicuamente de uma qualquer actividade hermenêutica atenta aos valores e interesses que justificam a figura não é criar obstáculos a um normal exercício profissional que se erige como teleologia imanente ao segredo profissional dos advogados. Com efeito, tal dever radica no princípio da confiança e no dever de lealdade do advogado para com o constituinte e respeita à dignidade da advocacia e ao manifesto interesse público que a legitima.

Vale por dizer, pois, que a norma do nº 1 do artigo 92º do EOA tem, necessariamente, de ser alvo de uma interpretação restritiva; isto é, só quando estiver em causa uma confidência que traga inerente um desejo de reserva é que o advogado está, em princípio, sujeito ao dever de segredo.

Assim sendo, para se saber se determinada factualidade está ou não sujeita a dever de sigilo é absolutamente imprescindível saber, em concreto, que materialidade será possível alvo do depoimento a prestar. Na verdade, o desconhecimento da espécie de declarações que a Exma. Colega poderia efectuar impede que se formule opinião taxativa de tipologia afirmativa ou negativa. Com efeito, a resposta a tal problemática só poderia ser convenientemente levada a cabo no pleno conhecimento do condicionalismo supra referido, com a identificação cabal dos factos concretos sujeitos a depoimento. O mesmo é dizer que a colocação da questão em termos genéricos, sem que se densifique a factualidade em causa, inviabiliza a emissão de parecer fundamentado sobre a sujeição – ou não – da aludida matéria a segredo profissional.

Isto dito, saliente-se que é sobejamente conhecida a essencialidade do dever de guardar segredo profissional para o cabal exercício da advocacia. Na verdade, só o mesmo possibilita ao advogado atingir o grau de confiança capaz de o tornar um confidente absoluto, dado que apenas essa garantia da manutenção das confidências escutadas afasta quaisquer receios das eventuais consequências de um relato completo e exaustivo de todos os factos e circunstâncias conexos com a questão que se pretende confiar sem nada ocultar e sem nada falsear – com efeito, só assim, no domínio da integralidade de todos os elementos, o advogado estará integralmente apto a defender os interesses do seu constituinte. Por outra banda, tal circunstancialismo acaba por se repercutir no interesse público da função do Advogado, enquanto agente da administração da justiça; tal como é referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de Fevereiro de 2009, tirado no Proc. nº 436/08.9YRCBR (em www.dgsi.pt), “O dever de sigilo dos advogados tem subjacentes razões de natureza pública, porquanto a rigorosa tutela a que se acha submetido tem por base um interesse social e não o interesse dos profissionais que recebem confidências, nem o interesse daqueles que revelam as suas confidências, correspondendo a sua preservação ainda a uma exigência de protecção da privacidade do defensor, dos seus demais constituintes, e por via disso, da própria liberdade do exercício da profissão”. Em sentido convergente o Supremo Tribunal de Justiça sumaria, no acórdão (também disponível em www.dgsi.pt) de 15 de Fevereiro de 2018, lavrado no Proc. nº 1130/14.7TVLSB.L1.S1, que “Radicando no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a OA e a comunidade em geral”.

             Vale por dizer, pois, que a imanente relevância do valor em causa com a protecção do segredo profissional é verdadeiramente matricial para a função de advogado. Justamente por isso – e por ser o destinatário do segredo a pessoa melhor posicionada para aferir da submissão ou não da matéria a sigilo – a Lei confere ao advogado a última palavra em tal matéria. Na verdade, o n.º 6 do citado artigo 92º do EOA estatui que “Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional”.

Nesta confluência, é patente que a opinião da Ilustre Colega Requerente de que a matéria está sujeita a segredo é, de alguma forma, tornada soberana pelo sobredito número do segmento legal em exame.

Por outro lado, os especiais contornos da problemática que nos é suscitada torna ingente a solução de outra questão – que não se prenderá directamente ao sigilo profissional – atinente à possibilidade de, sendo (ou tendo sido) advogado constituído em determinado processo poder vir a ser testemunha nesse mesmo processo. Ou seja, a questão de saber se se pode ser, concomitante ou sucessivamente, advogado e testemunha em um mesmo processo ou em outro àquele conexo.

Ora, tem sido entendimento dominante, quer na jurisprudência quer na doutrina da Ordem dos Advogados, que em circunstância alguma o advogado pode ser testemunha em processo em que representa ou tenha representado qualquer das partes. A título meramente exemplificativo cite-se aqui o parecer tirado no Proc. nº 37/PP/2008-P do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, relatado pelo Exm.º Senhor Dr. António Rio Tinto Costa, em que se concluiu que “Ao Advogado que tenha intervindo em qualquer qualidade em questão objecto de processo judicial, é vedado exercer o patrocínio no mesmo processo” e que “O Advogado nunca pode ser admitido a depor como testemunha em processo em que esteja ou tenha sido constituído mandatário judicial, mesmo depois de substabelecer sem reserva, ou de renunciar ao mandato, pois quem é, ou foi, participante na administração da Justiça, em determinado processo, não pode nele ser testemunha”.

E também, mais recentemente, no Proc. nº 46/PP/2012 do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados foi lavrado parecer, desta feita da autoria do Exm.º Senhor Dr. Domingos Ferreira, nos termos do qual se concluiu: “1. Os princípios da isenção, independência e dignidade pelos quais se deve pautar o exercício da advocacia são inconciliáveis com qualquer função que os possa afetar - artº 76º nº 2 do EOA. 2. Em nome dos citados princípios, o advogado que patrocine uma das partes num processo judicial, não pode nele intervir na qualidade de testemunha da parte que representa ou da parte contrária”.

Como, por igual forma, se abordou a questão em parecer tirado no âmbito da Consulta nº 29/2008 do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados (da autoria da Exm.ª Senhora assessora jurídica Dr.ª Sandra Barroso, homologado pelo Exm.º Senhor Vice-Presidente daquele Conselho, Dr. Jaime Medeiros) onde se concluiu: “1. A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar os factos abrangidos pelo segredo profissional e/ou os documentos nos quais esses factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do E.O.A. e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, publicado no DR – 2ª Série, de 12 de Junho de 2006. 2. Nunca poderá ser concedida dispensa de sigilo profissional a um Advogado que seja ou tenha sido mandatário judicial para o efeito de vir a depor como testemunha no âmbito do mesmo processo judicial”.

E lembre-se ainda (até pela referência a outras decisões da Ordem dos Advogados no mesmo sentido) a decisão tomada no processo de pedido de dispensa de segredo profissional do Conselho de Distrital de Lisboa com o nº 56/08, com a mesma autoria do parecer que se citou imediatamente antes, na qual se comunga da posição de que aqui se vem dando conta e onde agora se adiantam, em favor de tal tese, os seguintes argumentos: a “possibilidade de confusão entre as duas funções exercidas (mandato e testemunha)”, a “necessidade de cumprir o princípio geral da não promiscuidade”, a “impossibilidade prática da prestação de um depoimento isento e objectivo (vital para uma testemunha)” e, finalmente, os “deveres, legais e estatutários do advogado em manter sigilo profissional, sobre factos que conheceu; manter independência e isenção; manter, com o cliente, uma relação de lealdade e confiança”.

Também o Conselho Geral da Ordem dos Advogados se pronunciou já sobre a matéria (cfr. o Parecer nº 950, relatado pelo Exm.º Senhor Dr. Augusto Ferreira do Amaral) tendo então concluído que está aqui em causa um princípio geral que se analisa na “não promiscuidade dos intervenientes”. E que “Não é admissível que se acumule a qualidade de julgador com a de parte, a de autor ou queixoso, de réu ou de arguido, a de testemunha ou perito com a de parte. Inúmeros são os preceitos que procuram assegurar a concretização deste princípio”, concluindo que o mesmo “é intuitivo, como o é a proibição do incesto nas sociedades humanas”.

Tal como refere o Bastonário Augusto Lopes Cardoso, in “Do Segredo Profissional na Advocacia”, 1997, edição CELOA, 1997, pág. 82, “Deverá deixar-se bem claro que é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído”. E mais acrescenta aquele Autor que “(...) isso seria a completa subversão do sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia. Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a acção, as principais condicionantes do seu decurso”.

Um tal entendimento tem vindo igualmente a ser perfilhado pelos tribunais superiores, como aconteceu no bem fundamentado e jurisprudencialmente ancorado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Março de 2013, tirado no Proc. 2042/09.1IDLSB-A.L1-9 (in www.dgsi.pt), relatado pela Exm.ª Senhora Dr.ª Cristina Branco, em cujo sumário se deixou consignado que “Não pode depor como testemunha porque tal contraria um princípio fundamental do direito processual, o advogado que mantém em vigor a relação jurídico-profissional com alguma das partes do processo”.

Orlando Guedes da Costa in “Direito Profissional do Advogado – Noções Elementares”, Almedina, pág. 324, defende que o advogado não pode ser testemunha “em processo principal ou em processo apenso, em que esteja ou tenha sido constituído mandatário judicial, mesmo depois de substabelecer sem reserva, ou de renunciar ao mandato, pois quem é ou foi participante na administração da Justiça, como decorre do artigo 6º. – nº. 1, da LOFTJ (então vigente), em determinado processo, não pode nele ser testemunha”. E o mesmo é sustentado por Fernando Sousa Magalhães in “Estatuto da Ordem dos Advogados – Anotado e Comentado”, 3ª edição, na anotação 31 ao artigo 87º (actual artigo 92º). Ou ainda por Augusto Lopes Cardoso (ob. cit., pág. 83), quando aduz que “Não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trate de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que antes ocupara”.

Ou seja, como bem intui a Exma. Colega Requerente Dra. SM... ao manifestar intenção de não prestar depoimento, o facto de ter já actuado e permanecer enquanto patrona em processo com as mesmas partes e em que a matéria em discussão está relacionada com o mesmo facto jurídico, a capacidade de prestar depoimento como testemunha está claramente afectada.

Assim sendo, sou de parecer que a Exma. Colega Requerente poderá recusar-se legitimamente a depor, invocando a existência de um dever de segredo profissional face ao dispositivo contido no n.º 6 do artigo 92º do EOA, in casu reforçada pelo facto de manter patrocínio em questão conexa àquela onde se pretende que preste depoimento.

 

Para rematar, em jeito de conclusão, sumaria-se:

a)      Os advogados apenas estão obrigados a guardar segredo do que lhes é revelado a título de confidência por se acreditar no dever de reserva e de lealdade para com o Constituinte que a função da advocacia reclama.

b)      Por isso, uma pronúncia cabal sobre a existência – ou não – do dever de segredo exige que se conheça toda a factualidade relevante, designadamente a forma como foi adquirido o conhecimento para aferir se o mesmo tem uma origem verdadeiramente confidencial. Na verdade, só no conhecimento do concreto e preciso conteúdo do depoimento que se pretende prestar – e em sede de requerimento de dispensa de sigilo e obedecendo à específica tramitação que regulamenta o mesmo – poderá haver decisão devidamente fundamentada.

c)      Contudo, a Lei – artigo 92, n.º 6 do EOA – confere ao advogado a última palavra na manutenção do dever de segredo, permitindo-lhe usar da recusa a depor mesmo quando dispensado pelo presidente do Conselho Regional competente.

d)     Em caso algum um advogado pode depor como testemunha em processo em que tenha intervindo profissionalmente nesse ou em processo com esse conexo.

 

À sessão.

 

Jacob Simões

Topo