Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 38/PP/2019-C

Processo de Parecer n.º 38/PP/2018-C

 

Por douto despacho proferido nos autos do processo nº 61.../15.8T8...-P, veio o Exmº. Senhor Juiz do Juízo de Comércio de C..., Juiz 1, solicitar que este Conselho Regional de C... se pronuncie sobre a eventual existência de conflito de interesses do Sr. Advogado da requerida por ter patrocinado o Sr. APS..., que foi gerente de direito e de facto da sociedade insolvente em processos que visavam avaliar a existência e consequências dos negócios outorgados entre a insolvente e a oponente.

 

A acompanhar o douto despacho proferido a solicitar a emissão de parecer sobre a existência, ou não, do aludido conflito de interesses, foi remetida cópia extraída do aludido processo, designadamente:

a) Do requerimento apresentado em 22.10.2018 pela ali requerida Tr... S.A. e subscrito pelo seu advogado, Sr. Dr. JMF..., no qual é alegado que a massa insolvente suscitou “uma eventual situação de conflito de interesses (…) porquanto o mandatário ora signatário teria representado o Sr. APS..., gerente de direito e de facto da sociedade insolvente”, que nega existir, alegando para tanto que “a declaração de insolvência relativamente às pessoas colectivas, importa a sua «extinção», deixando, por isso, de ter por si personalidade judiciária – já que apenas o administrador da insolvência tem poderes para a representar, passando os seus bens a integrar a massa insolvente, pessoa jurídica distinta e dotada de personalidade jurídica e personalidade judiciária próprias”, concluído que “A massa insolvente (…) não se confunde em termos jurídicos com a sociedade que dá origem à mesma”;

b) Do requerimento apresentado em 8.10.2018 pela massa insolvente da Ma... Produtos Farmacêuticos, Lda. na qual é suscitada a eventual existência de conflito de interesses do aludido mandatário da requerida, o Sr. Dr. JMF..., por ter “patrocinado o senhor APS..., gerente de facto e de direito da sociedade insolvente” e de o ter feito “em processos que visavam avaliar a existência e as consequências dos negócios outorgados entre a insolvente e a aqui oponente (..) especialmente quando a tese apresentada em juízo por este ilustre causídico assenta nos factos e considerações que este espelha a artigos 9º a 56º da sua oposição e que, pelo menos aparentemente, denotam conflito de interesses entre o oponente e o seu anterior cliente”;

c) Oposição à providência cautelar de arresto apresentada em 10.08.2018 pela requerida Tr... SA. e subscrita pelo Dr. JMF... onde se alega, entre outros factos, que:

- Referindo-se ao APS... que é o “único interessado na procedência do arresto, porquanto recorda-se, como o bem reconhece a sentença que decretou o arresto, é esta testemunha a única gerente de facto e de direito da insolvente Ma...”(artigo 12º)

- “É assim o único responsável pela insolvência culposa e que por essa mesma razão” (artigo 14º)

- “Verá o seu património afectado ao pagamento dos créditos reconhecidos” (artigo 15º)

- “E é por esta mesma razão, que sendo já conhecedor destas realidades, que o APS... já nada tem em seu nome” (artigo 16)

- “Estando esse património já em nome da sua irmã, através de uma sociedade veículo, firma Da...” (artigo 17º)

- “Mais sendo o património a sua habitação, sempre paga por este, conforme por várias vezes alegou, alto e bom som, em nome apenas da sua esposa” (artigo 18º)

 - “A testemunha CV..., perdoe-se a tenacidade da presente alegação, mas importa conhecer o contexto, mantém como é do conhecimento público, uma relação extra conjugal com o APS..., pelo que não só não teria participado em qualquer acordo verbal” (artigo 19º)

- “Como por outro lado diria tudo o que o APS... lhe mandasse dizer, por conflito de interesses pessoais” (artigo 20º)

- “Queda-se assim a alegada prova do primeiro requisito de que depende a procedência do arresto, pela testemunha APS...” (artigo 33º)

- “Esta mesma testemunha, APS..., que é arguido em processo crime, mediante denúncia da Fa... - Laboratório de Produtos Farmacêuticos S.A. por se ter locupletado de valores monetários” (artigo 46º)

- “A qual não pode ser apurada, porquanto APS..., useiro e fezeiro nestas práticas e subterfúgios legais, manipulando outras demais testemunhas, contou e dramatizou uma história como bem quis” (artigo 50º)

d) Requerimento de oposição à qualificação da insolvência como culposa, apresentado em 6 de Junho de 2016 no apenso F do aludido processo (61.../15.8T8...) pelo já citado APS..., ali requerido, e subscrito pelo Sr. Dr. JMF..., no qual, entre outros, se alegou:

- “É falso que o oponente tenha agido de má-fé ou com qualquer conduta que se apresente com negligente ou sequer” (artigo7º)

- “Como potenciadora de qualquer imputação de insolvência danosa e/ou culposa” (artigo 8º)

- “Bem como sempre diligenciou no interesse da sociedade que geria” (artigo 10º)

- “Para o que importa para os presentes autos nunca o oponente se apropriou indevidamente de qualquer ativo da sociedade” (artigo 29º)

 

Face ao disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – e porque a questão se reconduz à análise do artigo 99º do EOA cuja norma se destina a evitar o conflito de interesses e ainda, porque é indiscutível que a decisão sobre a verificação, ou não, de tal conflito compete em exclusivo à Ordem dos Advogados, deve ser emitido o solicitado parecer.

 

Como se referiu, a questão da eventual existência de um conflito de interesses é colocada tendo por base o facto de o Sr. Advogado visado patrocinar, no mesmo processo duas partes, no apenso de qualificação da insolvência (apenso F) o gerente da requerida APS... e no apenso de procedimento cautelar de arresto (apenso P) patrocinar a sociedade Tr... S.A.

 

E, se em ambos os apensos, a parte contrária dos patrocinados do Sr. Advogado visado é a Massa Insolvente da Ma..., afastando aparentemente e desde logo a possibilidade de se verificar um potencial ou declarado conflito de interesses, contudo, dúvidas podem surgir pelo facto de no articulado de oposição ao arresto serem imputados factos pessoais graves, ao dito APS..., diabolizando-o.

 

Estando elencados os factos analisemos o enquadramento jurídico.

 

O Advogado está vinculado no exercício da sua profissão ao rigoroso cumprimento de um feixe de deveres com especial relevância aos que se encontram plasmados no EOA, sendo que só o cumprimento escrupuloso e rigoroso de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

O título III do EOA trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II as questões derivadas das relações entre o Advogado e o Cliente, sendo neste capítulo e designadamente no artigo 99º que se encontra regulado o “Conflito de Interesses”, devendo ser, como supra se referiu, avaliada a questão em apreço à luz deste dispositivo (que se transcreve):

 

“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente

6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros”  

 

A norma em causa (art. 99º do EOA e que reproduz o artigo 94º do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei 15/2005 de 26 de Janeiro) visa defender a comunidade geral, mas também os clientes de um Advogado de qualquer actuação menos licita ou mesmo danosa deste, seja conluiado, ou não, com algum ou alguns dos seus clientes e, por outro, defender o Advogado de qualquer acusação ou mera suspeita de actuar no exercício da sua profissão sem visar a intransigente defesa dos direitos e interesses do cliente.[1]

 

«A doutrina dos nºs 1 e 2 justifica-se por razões de decoro, pois seria altamente desprestigiante para a classe que o advogado pudesse intervir, a favor da outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás o lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio»[2]

 

É o interesse público da profissão e a independência do Advogado, mesmo em relação ao cliente, que justificam o dever plasmado naquele normativo de, nas relações com o cliente, constituir dever do Advogado recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços em questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade (artigo 99º, nº 1, 1ª parte, do EOA), pois correr-se-ia o risco de os interesses do cliente, o interesse público da profissão e a independência do Advogado não ficaram salvaguardados se alguém que foi testemunha, perito, interprete ou exerceu funções de magistrado ou de funcionário numa causa ou em qualquer outro assunto não devesse recusar mandato, nomeação oficiosa ou prestação de serviços próprios da profissão de Advogado. “A intervenção numa mesma questão em duas ou mais qualidades que são incompatíveis constituem violação a este dever para com o cliente”.[3] 

 

Assim, o nº 1 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado para com o cliente a recusa do mandato ou prestação de serviços em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

 

O nº 2, por maioria de razão, impõe que o Advogado recuse o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

 

Por sua vez, o nº 3 daquele artigo 99º do EOA determina que é dever do Advogado não aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

 

 E o nº 5 daquele preceito visa impedir que seja colocado em risco o segredo profissional e, ou, que, do conhecimento desses assuntos um novo cliente do advogado possa beneficiar de vantagens ilegítimas ou injustificadas.

 

Ora, no caso em análise a conduta do Sr. Advogado visado não se enquadra nem no nº 1 nem no nº 2 daquele dispositivo legal, porquanto não existe um cruzamento ou intersecção de interesses que possa suscitar a existência de conflito de interesses, pois no apenso da oposição à qualificação da insolvência o Sr. Advogado patrocinava o referido APS..., ali requerido, contra a Massa Insolvente da Ma... e, no apenso da providencia cautelar de arresto, o Sr. Advogado visado patrocinou a sociedade Tr... também contra a referida Massa Insolvente da Ma..., ou seja, é manifesto que o dito APS... e a Tr... não são partes contrárias, nem se vislumbra existir um conflito de interesses entre aqueles dois clientes do Sr. Advogado visado.

 

A questão terá sido suscitada pela Massa Insolvente em virtude de na oposição à providência cautelar de arresto, a ali requerida Tr... ter alegado diversos factos pessoais referentes ao dito APS..., que foi testemunha indicada pela Massa Insolvente no arresto. Tal questão deve ser analisa à luz do nº 5 daquele artigo 99º que dispõe, como acima se referiu, que o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do seu dever de guardar segredo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, sendo o interesse aqui protegido o da preservação do segredo profissional. Ora, no caso em apreço, quem suscita a questão do conflito não é o cliente inicial (APS...) – que poderia ver, na alegação daquela oposição, desvendados fatos pessoais que tivesse transmitido ao Sr. Advogado visado, mas sim, a parte contrária, a Massa Insolvente, que também já o havia sido no incidente de qualificação da insolvência.

 

E, se é certo que na oposição da Tr... são alegados factos que podem ser considerados pouco abonadores do cliente APS... do Sr. Advogado visado, contudo, por um lado, eles não são, como se referiu, partes contrárias na mesma questão ou em questão conexa e a alegação daqueles factos pessoais não permite, por si só, concluir que houve violação do segredo ou que a cliente Tr... teve uma vantagem ilegítima ou injustificada, porquanto é referido que tais factos constam da sentença (factos dos artigos 12º e 14º da oposição ao arresto), que foram alegados “alto e bom som” (artigo 18º da oposição ao arresto) ou que são do conhecimento público (artigo 19º da oposição ao arresto), ou seja, o seu conhecimento, pela Tr... não adveio do especial conhecimento que o Sr. Advogado visado tem daquele APS... mas sim porque alegadamente tais factos são do domínio público.

 

Acresce que o Sr. Advogado visado no requerimento que apresentou nos autos em 22.10.2018 nega a existência de conflito de interesses.

 

E, como se referiu, o conflito de interesses resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado o que impõe, desde logo, que é em primeira linha uma questão de consciência do Advogado, cabendo-lhe em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de um conflito entre os interesses dos seus clientes.

 

No caso em apreço o Senhor Advogado visado concluiu pela inexistência desse conflito na vertente interna e, da análise aqui efetuada, na vertente externa, não é possível concluir pela existência de um conflito de interesses.

 

Conclusão:

 

Não existiu violação, pelo Sr. Advogado visado, do disposto no artigo 99º do EOA e consequentemente não existiu conflito de interesses no exercício do mandato ou patrocínio da Tr... S.A. e do Sr. APS..., no mesmo processo, porquanto aqueles não tiveram uma posição processual oposta ou contrária.

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso parecer.

 



[1] Valério Bexiga, in Lições de Deontologia Forense, pág. 324 

[2] António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, C... Editora, 9ª Edição, pág. 111

[3] Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado, Almedina, 4ª Edição, pág. 262

 

Manuel Leite da Silva

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