Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 1/PP/2020-C

Processo de Parecer nº 1/PP/2020C

 

Assunto: Segredo profissional: O advogado mandatário nos autos, após ter substabelecido os poderes que lhe foram conferidos, pode ser testemunha no mesmo processo?

 

Por comunicação remetida a este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exm.ª Srª. Dr.ª SM…, advogada portadora da cédula profissional nº  …c, com escritório em V…, veio requerer que este se pronuncie sobre questão que ali coloca e que é a seguinte:

“A aqui signatária juntamente com a sua Ilustre Colega Exma Sra Dra MB…, patrocinou o seu Constituinte LA…, no âmbito do processo 65/19.1…, a correr seus termos na Comarca de V… - Central Criminal de V… - Juiz 4, mediante mandato forense outorgado pelo mesmo.

A Signatária presenciou parte dos factos que motivaram a sua detenção.

A Signatária foi arrolada como testemunha pela acusação.

Notificada para comparecer no GNR - Posto Territorial de N… para prestar seu depoimento, na qualidade de testemunha, em sede de inquérito, a signatária declarou que entendia que não o podia fazer, uma vez que representava o arguido no âmbito daquele processo.

Aqui signatária visitou o arguido na GNR - Posto Territorial de M…, onde o mesmo se encontrava detido, a aguardar interrogatório judicial;

Assegurou, juntamente com a sua Exma. Colega supra identificada, a assistência do arguido no interrogatório judicial.

Tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, a signatária visitou o seu cliente, por diversas vezes, no seu domicílio;

Elaborou o recurso de medida de coação, bem como requerimentos diversos;

Delineou estratégias de defesa do arguido,

Participou ativamente na tese defendida,

Acompanhou diligências de prova,

Tem conhecimento do processo, da tese que está a ser defendida e do que está verdadeiramente em causa.

A Advogada signatária sempre agiu de forma a defender os interesses legítimos do cliente, respeitando os princípios de integridade, inserindo-se nesta a lealdade, e, nesta, necessariamente, a lealdade específica para com o cliente, nos termos e para os efeitos do artigo 88.0, no 1, do EDA.

A Signatária substabeleceu sem reserva nos Exmos. Colegas Senhor Doutor CA… e Senhor Dr. JV…, os poderes que lhe foram conferidos no âmbito dos presentes autos.

Sucede que foi a signatária notificada para comparecer no Tribunal Judicial da Comarca de V…, Central Criminal, Juiz 4, pelas 9h30m, no dia 3 de Fevereiro de 2020, para prestar seu depoimento.

Pese embora tenha substabelecido sem reserva os poderes que lhe foram conferidos, a signatária foi advogada constituída nos presentes autos.

Ainda assim, a signatária solicita parecer acerca da possibilidade de um advogado constituído em determinado processo poder, após substabelecer sem reserva o mandato que lhe foi conferido, depor nesse processo como testemunha (tendo sempre em linha de conta que presenciou parte dos factos que motivaram a detenção do arguido), o que desde já se requer para os devidos e legais efeitos.”

 

 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.

 

A questão que nos é colocada prende-se com o saber se se poderá admitir como testemunha em determinado processo, um advogado na circunstância deste depois de ter sido constituído mandatário ter substabelecido nesse mesmo processo.

 

Encontramos vasta jurisprudência da OA no sentido de que um advogado não pode ser testemunha num processo onde está ou já esteve constituído como mandatário.

 

Aliás, bastaria, por certo, remeter para a doutrina e jurisprudência citadas no pedido de parecer para dar resposta à Sra. Advogada requerente.

 

A jurisprudência da Ordem assenta, designadamente, na posição do Senhor Bastonário Augusto Lopes Cardoso (Do Segredo Profissional na Advocacia, ed. Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, a pp. 82 e 83), na vigência do EOA aprovado pelo DL nº 84/84, de 16 de março, que sob o expressivo título “depoimentos sempre proibidos”, refere o seguinte:   “Deverá deixar-se bem claro que é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído. É que, embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia.  Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a ação, as principais condicionantes do seu decurso. Se o seu depoimento veio a tornar-se necessário, muito mal estruturou o seu trabalho e não pode já emendar a mão. A absoluta necessidade não pode resultar, nesse caso, do modo como foi proposta a ação e antes deve ser aferida objetivamente.  Isto também se aplica a outro tipo de situações que na essência não diferem da que analisámos. Referimo-nos a que não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trata de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que em antes ocupara.”

 

Também Orlando Guedes da Costa, no seu “Direito Profissional do Advogado”, Almedina, 3ª edição, 2005, a p. 342, escreveu:  “Cumpre salientar que nunca pode ser autorizado o depoimento de Advogado em processo principal ou em processo apenso, em que esteja ou tenha sido constituído mandatário judicial, mesmo depois de substabelecer sem reserva ou de renunciar ao mandato, pois quem é ou foi participante na administração da Justiça, como decorre do art. 6.º - nº 1 da LOFTJ, em determinado processo, não pode nele ser testemunha, como igualmente não pode o advogado aceitar mandato em processo em que já tenha intervindo em outra qualidade, como impõe o art. 94.º - nº 1 do EOA.”

 

Para as posições que transcrevemos e que são as prevalecentes no seio da Ordem dos Advogados não releva saber se os factos sobre os quais se pretende obter o depoimento da testemunha/advogado constituído no processo estão ou não sujeitos a sigilo. Para os citados autores, nunca o depoimento de advogado nestas circunstâncias pode ser admitido. 

 

E é nesta solução que nos revemos, não apenas pela lição que colhemos destes citados autores, mas também pela conjugação das normas do CPC com as normas EOA.

 

Vejamos. 

 

No Capítulo II do EOA, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09/09, “Relações com os clientes” diz o artigo 97º sob a epígrafe “Princípios gerais”, o seguinte:

 “1 – A relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca.

2 - O advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas.”

 

A alínea d) do nº1, do artigo 132º do Código de Processo Penal consigna que incumbe à testemunha o dever de “Responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas”.

 

O mesmo se extrai do disposto sob o artigo 459º em conjugação com o artigo 513º do Código de Processo Civil que determinam que antes de começar o depoimento o tribunal faz sentir ao depoente a importância moral do juramento que vai prestar e o dever de ser fiel à verdade, advertindo-o ainda das sanções aplicáveis às falsas declarações.

 

Estando a testemunha obrigada a depor com verdade, o advogado/testemunha poderá ver-se perante a circunstância de ter de revelar ao tribunal factos prejudiciais aos interesses do seu cliente, factos esses que, enquanto advogado, não pode revelar.

 

A participação do advogado no processo na dupla posição de advogado (representante da parte) e de testemunha, mesmo que tenha substabelecido ou renunciado ao mandato, gera sempre um potencial conflito de deveres que aconselharia a que o legislador, para que dúvidas não subsistissem, criasse expressamente um impedimento.

 

É, justamente, para obstar a conflitos de deveres desta natureza que a lei processual civil cria alguns impedimentos no que se refere à prova testemunhal, como é o caso do constante do artigo 496º do CPC que determina:  “Estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes”.

  

O CPC não faz qualquer referência a impedimento de advogado que seja no processo indicado como testemunha e a verdade é que o EOA também não aborda esta questão de forma direta.

 

No Capítulo II do EOA, que rege sobre as incompatibilidades e impedimentos dos advogados, releva particularmente o artigo 81º, nº2, que dispõe o seguinte:

 “O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

 O artigo 83,º nº1, por sua vez, refere a propósito dos impedimentos: “Os impedimentos diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão.”

 

Sendo óbvia a impossibilidade de conciliação das posições advogado/testemunha no mesmo processo, das citadas normas, decorre que, nessa circunstância, é o exercício da advocacia que deve ceder, o que parece em tudo semelhante com o que sucede perante a situação de impedimento do juiz (cfr. artigo 499º do CPC). 

 

No entanto este juízo sobre a possibilidade de aceitar o patrocínio de determinada causa deve ser feito pelo advogado à partida e não no decurso do processo, pois cabe-lhe a decisão de aceitar ou não intervir no processo na qualidade de advogado.

 

O mesmo é dizer que, se o advogado aceitou o patrocínio da causa, é porque considerou que não existiam circunstâncias inconciliáveis com esta tarefa e que pudessem vir a comprometer ou diminuir a amplitude do exercício da advocacia.

 

E se não existiam quando aceitou o patrocínio não podem ter passado a existir agora.

 

Assim, pelas razões apontadas, mesmo que a questão do sigilo profissional se não coloque, por regra, um advogado constituído mandatário em determinado processo judicial, mesmo que substabeleça ou renuncie ao mandato, não poderá no mesmo processo ser indicado como testemunha.

 

Conclusão:

O advogado constituído no processo, mesmo que substabeleça os poderes que lhe foram conferidos pelo mandato ou a eles renuncie, não pode, no mesmo processo, prestar depoimento como testemunha.

 

É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.

 

António Sá Gonçalves

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