Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 2/PP/2020-C

Processo de Parecer nº 02/PP/2020-C

 

Assunto: Conflito de Interesses

 

Por comunicação escrita datada de 23 de Janeiro de 2020, remetida através de correio electrónico dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, veio o Exmo. Senhor Dr. TG…, advogado, portador da cédula profissional nº …C, com domicílio profissional na Praça do …, solicitar a emissão de parecer quanto à existência de incompatibilidade de exercer o mandato forense no processo judicial nº 147867/…, que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca da G… – Juízo Central Cível e Criminal da G… – Juiz 3, que lhe foi conferido pela Executada MCM… e, bem assim, o mandato conferido pela ali Exequente RMS – Engenharia e Construção, Lda., constituído em momento posterior a favor da Sociedade de Advogados “GMP… – Sociedade de Advogados, R.L.”, da qual o Requerente é sócio.

Nos termos conjugados nos artigos 54º nº 1, alínea f) e artigo 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro de 2015 (doravante designado abreviadamente EOA), o pedido de parecer em apreço, versa sobre matéria para cuja apreciação é territorialmente competente o Conselho Regional de Coimbra, no âmbito da suas atribuições de pronúncia sobre questões de carácter profissional, pelo que, cumpre emitir tal parecer.

Com vista ao devido enquadramento da questão em apreço e atento o conteúdo dos documentos juntos com o pedido de parecer, temos que:

a) O Advogado requerente em 26 de Outubro de 2018 juntou aos Autos de Execução já identificados supra, substabelecimento emitido a seu favor, assumindo deste modo o patrocínio da ali Executada MCM;

b) Nessa sequência interveio no processo (acção executiva), peticionando o cancelamento das penhoras logradas nos Autos sobre bens pertença da sua constituinte, tal como determinado na Sentença proferida no Apenso A (Embargos de Executado);

c) Em 22 de Janeiro de 2020 o Senhor Agente de Execução em exercício de funções nos sobreditos Autos, por requerimento dirigido ao Meritíssimo Juiz, informou que o Advogado Requerente havia procedido à junção aos Autos de substabelecimento emitido a seu favor pela Exequente, suscitando deste modo a questão atinente a um eventual conflito de interesses;

d) É neste quadro que o Ilustre Advogado Dr. TG… requer a emissão do presente parecer ao Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados;

Importa, assim, face ao quadro fáctico descrito, verificar se existe incompatibilidade para que o mesmo Advogado exerça em simultâneo o patrocínio da Exequente e Executada no âmbito do mesmo processo judicial.

O Advogado, no exercício da respectiva profissão está vinculado ao rigoroso cumprimento dos deveres plasmados no EOA, impondo-se o seu devido cumprimento de modo escrupuloso e rigoroso, para garantia da dignidade e prestígio da profissão.

A propósito dos deveres impostos ao Advogado nas relações estabelecidas com os seus clientes, dispõe o artigo 99º do EOA, as circunstâncias em que este deve recusar o patrocínio. Assim, dispõe o nº1 do sobredito normativo que “O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária”. No nº 3 pode ler-se que “O Advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito de interesses desses clientes”. A redacção do nº6 do mesmo artigo 99º do EOA reporta à existência do dever de recusa do patrocínio, designadamente, no que concerne às Sociedades de Advogados ao estipular o que segue: “Sempre que o Advogado exerça a sua actividade em Associação, sob a forma de Sociedade ou não o disposto nos números aplica-se quer a associação quer a cada um dos seus membros.”

Nos termos do artigo 208º da Constituição da República Portuguesa, o exercício do mandato forense está reservado aos Advogados, indispensáveis à boa administração da justiça.

De igual modo o artigo 88º do EOA vem postular a essencialidade do Advogado à Administração da Justiça, conferindo-lhe um conjunto de direitos e deveres para alcançar tal desiderato. O Advogado enquanto participante essencial à Administração da Justiça deve assumir um “comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem”. De entre as obrigações profissionais do Advogado, ressaltam a honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade.

A advocacia é uma actividade de natureza liberal, mas que prossegue um notório e determinante interesse público o que lhe confere uma grande relevância social.

Na senda do interesse público da Advocacia, surge o instituto do conflito de interesses, como imperativo de defesa da comunidade em geral da irrefutável independência do Advogado no exercício da profissão, mesmo em relação ao cliente e aos seus próprios interesses, da defesa do sigilo profissional na medida em que algumas situações proibidas poderiam fazê-lo perigar e na confiança, decoro e lealdade que tem de existir entre Advogado e cliente, pressupostos do exercício do mandato forense.

Seguindo os profícuos ensinamentos de António Arnaut “A doutrina dos nº1 e nº 2 justifica-se por razões de decoro, pois seria altamente desprestigiante para a classe que o Advogado pudesse intervir a favor de outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás no lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio”, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111.

O conflito de interesses, como já se referiu, radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogando, apelando, numa primeira linha, à consciência profissional do Advogado, ao seu decoro e dignidade profissional, devendo em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de conflito de interesses dos seus clientes.

No caso em análise e sem maiores considerandos, é inequívoco que a posição processual assumida pelas partes representadas pelo Advogado Requerente é antagónica, sendo forçoso concluir que, Exequente e Executada na mesma acção executiva, são “partes contrárias”, titulares de interesses distintos e não coincidentes, bem ao invés, os interesses da Exequente contendem necessariamente com os interesses da Executada.

Ora, se um Advogado patrocinar um determinado cliente na resolução de um litígio, não pode, posteriormente aceitar o patrocínio de outro cliente que tenha interesse conflituante com o primeiro.

Tal dever impõe-se, não só ao Advogado que individualmente aceitou o patrocínio, mas também a todos aqueles que com ele exerçam a sua actividade em associação – sob a forma de Sociedade ou não – sendo extensível a cada um dos Advogados que dela sejam membros, a impossibilidade de aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes no mesmo assunto ou em assunto conexo. (artigo 99º, nº 6 EOA)

A violação deste dever para com o cliente constitui infracção disciplinar nos termos e para os efeitos consignados no artigo 115º do EOA.

Neste conspecto é evidente que a Sociedade – da qual o Advogado Requerente é sócio – não podia ter aceite o patrocínio da segunda cliente neste concreto processo judicial, onde a mesma figura como Exequente.

Sucede que a aceitação do patrocínio de ambos os clientes já se encontra consumada, não podendo deixar de se notar a N/ especial censura ao comportamento do Advogado Requerente, tanto mais que, o próprio parecer solicitado dimana do alerta efectuado pelo Senhor Agente de Execução junto do Meritíssimo Juiz do Processo.

 

Em jeito de conclusão reitere-se:

1.         Que não restam dúvidas de que se verifica um conflito de interesses na situação exposta, pelo que, deve o Advogado renunciar de imediato ao mandato que lhes foi conferido por ambos os clientes em conflito no processo judicial em curso, sendo a solução que melhor se coaduna com a parte final do artigo 99, nº 4º do EOA.

2.         Comunique-se ao Conselho Regional de Deontologia de Coimbra para os fins tidos por convenientes.

 

É este o N/ parecer

 

Sandra Gil Saraiva

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