Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 4/PP/2020-C

Processo de Parecer n.º 4/PP/2020-C

 

Assunto: Segredo profissional, depoimento de advogado sobre as circunstâncias em que o mandato foi conferido

 

Por comunicação efectuada por correio eletrónico dirigida a este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exmª Srª. Drª. CR…, advogada portadora da cédula profissional nº …c, com escritório em V…, veio requerer que este se pronuncie sobre questão que ali coloca e que é a seguinte:

“Cumpre-me informar V.Exa que representei dois constituintes residentes no P…, ambos Réus ( um na qualidade de vendedor e outro na qualidade de comprador ) na Acção 19129/… ( Acção de preferência na sequência da venda de um apartamento ) , que correu termos no Juízo Central Cível do P…- J6.

No âmbito desta Acção, fui contactada por um dos Réus (comprador do Apartamento) e na primeira reunião que tivemos no meu escritório, este disse-me que também era intenção do outro Réu (vendedor do Apartamento) contratar os meus serviços para o representar na aludida Acção.

Nessa mesma reunião, o 1a Réu telefonou ao 20 Réu, do seu telemóvel, e em voz alta, falamos os três sobre a questão em apreço, tendo ficado combinado que o segundo Réu enviaria a procuração forense a conferir-me o mandato pelo 1a Réu, quando este viesse novamente ao escritório trazer os documentos necessários para instruir a Contestação, o que veio a acontecer.

A Acção correu os seus trâmites processuais normais e já com data agendada para o julgamento, fui notificada da revogação da procuração do 20 Réu (vendedor

Recentemente fui notificada na qualidade de Testemunha pelo Tribunal Judicial do P… — Juízo Central Cível do P… — Juiz 5 no Proc. no 2830/…, para me apresentar no dia 11 de Fevereiro ás 9h30 a fim de ser inquirida, tendo ficado a saber que nesta Acção as partes são o supra referido 2a Réu na qualidade de Autor e o supra referido 1 0 Réu na qualidade de Réu.

Requeri junto deste último Processo que me fosse informado qual a matéria de facto sobre a qual iria depor e obtive a resposta, passando a citar " Satisfaça, esclarecendo-se, ainda, que a inquirição poderá não incidir sobre o conteúdo do mandato, mas apenas sobre a sua mera outorga ( sem revelação de quaisquer factos conhecidos no seu âmbito ) " conforme Doc. 1 e 2 que junto sob a forma de cópia simples.

Não percebendo sequer o que o Tribunal pretende esclarecer, entendo, salvo melhor opinião, que ao abrigo do sigilo profissional não devo prestar declarações ou esclarecimento sobre o mandato que me foi conferido, até porque analisei o Despacho Saneador, doc. 2 e cheguei á conclusão que nada sei sobre o objeto do litigio e em nada participei no que é relatado nos Temas da Prova.

Assim e atento o exposto, venho solicitar a V.Exa se digne, se possível, emitir parecer sobre se devo ou não pronunciar-me e relatar factos sobre a outorga da procuração forense, uma vez que entendo que este facto só diz respeito ao constituinte e ao mandatário e além do mais não é o Objeto do litigio nem Tema de Prova na Acção no Proc. no 2830/… que corre termos no Tribunal Judicial do P… — Juízo Central Cível do P… — Juiz 5, no qual fui indicada como Testemunha.

 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.

 

A obrigação de sigilo profissional do advogado encontra-se consagrada no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro), que, no seu n.º 1 nos diz que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a)    A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b)    A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c)    A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d)    A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e)    A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f)     A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

E, o nº 2  daquele artigo diz-nos que “A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.”

No nº 3, podemos ler “O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.”

O nº 4 daquele artigo dispõe da seguinte forma: “O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”

O nº 5 diz-nos que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.”

A regra é, assim, a da absoluta confidencialidade dos factos de que o Advogado tenha conhecimento, direta ou indiretamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas.

Isto, porque, o fundamento do dever de sigilo profissional radica na proteção da privacidade do advogado e dos seus clientes e, consequentemente, da própria liberdade de exercício da profissão.

 

Significa isto que, tudo quanto chega ao conhecimento de um advogado no exercício funcional da sua atividade está submetido ao dever de sigilo, só podendo o advogado efetuar revelações de forma extremamente limitada e nos casos rigorosamente previstos no texto legal.

 

Assim, não podemos deixar de dizer que a norma do nº 1 do artigo 92º do EOA tem, forçosamente, de ser alvo de uma interpretação restritiva, no sentido, de que só quando estiver em causa uma confidência que obrigue a reserva, em virtude da confiança na advocacia, é que o advogado está, em principio, sujeito ao deve de segredo.

 

A dispensa do segredo profissional tem carácter excecional (artigo 4º-1 do Regulamento nº 94/2006).

 

Na decisão, o Presidente do Conselho Regional deve aferir da essencialidade, atualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo, apreciando livremente os elementos de facto trazidos aos Autos pelo requerente da dispensa (artigo 4º-3 do Regulamento nº 94/2006).

 

Este dever de guardar segredo, apesar da primordial importância que reveste, não é absoluto, como qualquer outro dever (ou direito), por mais essencial que seja.

 

Com efeito, o n.º 4 do supra referido artigo do EOA diz-nos que “o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes...”.

 

Ou seja, a obrigação de sigilo que, estatutariamente, impende sobre o advogado, só poderá decair se tal for absolutamente necessário para a defesa de valores que o legislador considera poderem, em determinadas circunstâncias, prevalecer sobre o valor que é o segredo profissional, como sejam, a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes. Daqui resultando, que só em defesa do seu cliente é que o Advogado pode ser dispensado de guardar segredo profissional.

 

O artigo 113º do Estatuto da Ordem dos Advogados (anterior artigo 108º) refere que o advogado que pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado, tenha carater confidencial, deve exprimir claramente essa intenção e que tais comunicações, não podem constituir, de modo algum, meio de prova, não lhe sendo aplicável o nº 4 do artigo 92º do Estatuto.

 

Mas, nem todos os factos estão sujeitos ao dever de guardar segredo. Efetivamente, como vimos, para que os factos revistam caracter sigiloso, é necessário que o conhecimento que o advogado tem de tais factos lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. Mas é necessário, previamente, que se trate de matéria sigilosa.

Se a matéria de facto em causa não constituir segredo, obviamente não está o advogado obrigado a guardar um segredo que inexiste.

Finalmente, importa ter presente que os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

 

Analisada a situação concreta sobre que versa o pedido de parecer (prestação de depoimento sobre as circunstâncias em que determinada procuração foi emitida num processo onde se discute a capacidade de entender do mandante) entendemos que essas circunstâncias não constituem facto sigiloso, desde que, o depoimento verse apenas sobre o modo e o momento da mera outorga da procuração e já não sobre as circunstâncias ou razões concretas do mandato.

 

Conclusões:

1.    O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

 

2.    O nº 1 do artigo 92º do EOA tem de ser alvo de uma interpretação restritiva, no sentido, de que só quando estiver em causa uma confidência que obrigue a reserva, em virtude da confiança na advocacia, é que o advogado está, em princípio, sujeito ao dever de segredo.

 

3.    Quando os factos estão sujeitos ao dever de guardar segredo, o advogado apenas pode depor sobre os mesmos desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo.

 

4.    O modo e o momento da mera outorga em que o mandato foi conferido ao advogado não constitui matéria sujeita a sigilo profissional.

 

5.    Sempre que o advogado seja confrontado, na prestação de depoimento, com factos sujeitos a sigilo, deve escusar-se a depor sobre os mesmos enquanto a tal não estiver autorizado pelo Presidente do respetivo Conselho Regional.

 

 

É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.

 

António Sá Gonçalves

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