Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 5/PP/2020-C

Processo de Parecer n.º 5/PP/2020-C

 

Assunto: Segredo profissional, prestação de depoimento sobre factos que advieram ao conhecimento do advogado fora do exercício das suas funções

 

Por comunicação efectuada por correio eletrónico dirigida a este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exmª Srª. Drª. JM..., advogada portadora da cédula profissional nº …c, com escritório no C…, veio requerer que este se pronuncie sobre questão que ali coloca e que é a seguinte:

“A requerente, nos anos de 2007 e 2008, prestou serviços para a Santa Casa de Misericórdia de C…. Exerceu mandato forense nos processos seguintes:

- Processo de Contra-Ordenação n c 08/00001, do Centro Distrital da Segurança Social de V…:

- Processo de Contra-Ordenação n o 08/00002, do Centro Distrital da Segurança Social de V…

- Processo de Contra-Ordenação n o 08/00003. do Centro Distrital da Segurança Social de V…;

- Processo de Contra-Ordenação n o 08/00004, do Centro Distrital da Segurança Social de V…;

- Processo n o 165/… - Ação de Processo Comum no Tribunal do Trabalho de V…

e

- Processo n c 171/… - Ação de Processo Comum na Tribunal do Trabalho de V….

Cessou funções, ao serviço da Santa Casa de Misericórdia de C…, a partir de outubro de 2008.

Corre atualmente termos no Departamento de Investigação e Ação Penal — Secção de S…, o inquérito número 318/…, no qual é denunciado JLF…, senhor este que exercia as funções de Provedor na Santa Casa de Misericórdia de C… nos anos em que a aqui requerente prestou serviços para esta Instituição.

A factualidade participada no processo referido no parágrafo antecedente terá ocorrido no segundo semestre do ano de 2019 e poderá indiciar que o denunciado praticou factos ilícitos suscetíveis de ser enquadrados no âmbito do disposto no artigo 372c do Código Penal.

O referido JLF… cessou funções de Provedor da Santa Casa de Misericórdia de C… em dezembro de 2019.

Por outro lado, a ora requerente, na qualidade de pessoa amiga, em janeiro do corrente ano, visitou um utente na Casa da Santa Misericórdia de C..., o qual ali se encontra desde o ano de 2010.

No decurso desta visita, foi informado que ali não podia permanecer, tendo-lhe sido exibida urna declaração subscrita por JLF.... com data de 02 de dezembro de 2019, na qual determinava que apenas o próprio, os dois filhos, a esposa e o advogado poderiam visitar aquele utente, proibindo expressamente a visita de familiares e amigos.

Assim, tendo conhecimento destes factos e estando em curso inquérito decorrente dos mesmos, inquérito no qual não é nem virá a ser mandatária, que não vieram ao seu conhecimento por força da prestação de serviços ocorrida nos anos de 2007 e 2008 na Santa Casa da Misericórdia de C..., vem solicitar seja emitido parecer, no sentido de esclarecer se poderá prestar o seu depoimento quanto aos factos supra relatados e que foram objeto de participação criminal contra JFL….”

 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.

 

A obrigação de sigilo profissional do advogado encontra-se consagrada no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro), que, no seu n.º 1 nos diz que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a)    A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b)    A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c)    A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d)    A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e)    A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f)     A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

 

E, o nº 2  daquele artigo diz-nos que “A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.”

 

No nº 3, podemos ler “O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.”

 

O nº 4 daquele artigo dispõe da seguinte forma: “O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”

 

O nº 5 diz-nos que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.”

A regra é, assim, a da absoluta confidencialidade dos factos de que o Advogado tenha conhecimento, direta ou indiretamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas.

Isto, porque, o fundamento do dever de sigilo profissional radica na proteção da privacidade do advogado e dos seus clientes e, consequentemente, da própria liberdade de exercício da profissão.

 

Significa isto que, tudo quanto chega ao conhecimento de um advogado no exercício funcional da sua atividade está submetido ao dever de sigilo, só podendo o advogado efetuar revelações de forma extremamente limitada e nos casos rigorosamente previstos no texto legal.

 

Assim, não podemos deixar de dizer que a norma do nº 1 do artigo 92º do EOA tem, forçosamente, de ser alvo de uma interpretação restritiva, no sentido, de que só quando estiver em causa uma confidência que obrigue a reserva, em virtude da confiança na advocacia, é que o advogado está, em princípio, sujeito ao dever de segredo.

 

A dispensa do segredo profissional tem carácter excecional (artigo 4º-1 do Regulamento nº 94/2006).

 

Na decisão, o Presidente do Conselho Regional deve aferir da essencialidade, atualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo, apreciando livremente os elementos de facto trazidos aos Autos pelo requerente da dispensa (artigo 4º-3 do Regulamento nº 94/2006).

 

Este dever de guardar segredo, apesar da primordial importância que reveste, não é absoluto, como qualquer outro dever (ou direito), por mais essencial que seja.

 

Com efeito, o n.º 4 do supra referido artigo do EOA diz-nos que “o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes...”.

 

Ou seja, a obrigação de sigilo que, estatutariamente, impende sobre o advogado, só poderá decair se tal for absolutamente necessário para a defesa de valores que o legislador considera poderem, em determinadas circunstâncias, prevalecer sobre o valor que é o segredo profissional, como sejam, a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes. Daqui resultando, que só em defesa do seu cliente é que o Advogado pode ser dispensado de guardar segredo profissional.

 

O artigo 113º do Estatuto da Ordem dos Advogados (anterior artigo 108º) refere que o advogado que pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado, tenha carater confidencial, deve exprimir claramente essa intenção e que tais comunicações, não podem constituir, de modo algum, meio de prova, não lhe sendo aplicável o nº 4 do artigo 92º do Estatuto.

 

Mas, nem todos os factos estão sujeitos ao dever de guardar segredo. Efetivamente, como vimos, para que os factos revistam caracter sigiloso, é necessário que o conhecimento que o advogado tem de tais factos lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. Mas é necessário, previamente, que se trate de matéria sigilosa.

Se a matéria de facto em causa não constituir segredo, obviamente não está o advogado obrigado a guardar um segredo que inexiste.

Finalmente, importa ter presente que os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

Dito isto, analisando a situação fáctica sobre que incide o pedido de parecer, temos de concluir que os factos em questão não foram relatados à Sra. Advogada requerente no exercício funcional da sua atividade, pelo que, não se encontram a coberto do segredo profissional.

 

 

Conclusões:

1.    O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

 

2.    O nº 1 do artigo 92º do EOA tem de ser alvo de uma interpretação restritiva, no sentido, de que só quando estiver em causa uma confidência que obrigue a reserva, em virtude da confiança na advocacia, é que o advogado está, em princípio, sujeito ao dever de segredo.

 

3.    Quando os factos estão sujeitos ao dever de guardar segredo, o advogado apenas pode depor sobre os mesmos desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo.

 

4.    Sempre que o advogado seja confrontado, na prestação de depoimento, com factos sujeitos a sigilo, deve escusar-se a depor sobre os mesmos enquanto a tal não estiver autorizado pelo Presidente do respetivo Conselho Regional.

 

5.    Os factos descritos no pedido de parecer não advieram ao conhecimento da consulente por força do exercício das suas funções de Advogada, como tal, não se encontram a coberto da obrigação de guardar segredo profissional, não existindo qualquer impedimento para a prestação de depoimento como testemunha no inquérito nº 318/…, desde que, o mesmo seja limitado á descrição dos factos presenciados em Janeiro do corrente ano.

 

É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.

 

António Sá Gonçalves

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