Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 19/PP/2020-C

Parecer n.º 19/PP/2020-C

Assunto: Sigilo Profissional - Correspondência entre Advogados

 

Através de comunicação com data de entrada no CRCOA dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, o Exmo. Senhor Dr. JP…, advogado, com a cédula profissional …C, com domicílio profissional na …, solicitou a emissão de parecer que coloca nos seguintes termos e que por facilidade na análise se transcreve:

 

“1-O mandatário/subscritor intentou uma ação de indenização no Tribunal do Porto;

2-Constituiu para tal um Colega para o patrocinar;

3-Na fase da audiência prévia e em negociações para um possível acordo, o Colega comunicou-lhe que ia renunciar à procuração para fazer cessar a sua inscrição na Ordem, devido às despesas;

4-Em plenas negociações e na fase em que se encontrava o processo, depois de alguma meditação, apesar de poder perder muito dinheiro e apesar de ser a única testemunha que presenciou os factos mais a sua mulher, decidiu constituir-se "advogado em causa própria";

5-Requereu um prazo de 10 dias ao Sr. Dr. Juiz para renovar as negociações que lhe foi concedido e aceite pela parte contrária;

6- As negociações reiniciaram-se e chegou-se, então, a um valor, quase igual ao anterior conseguido, reduzindo o pedido;

7-No entanto realce-se que foi sempre muito dificil e demorado as respostas aos emails, por parte do mandatário da parte contrária, deixando arrastar as negociações, ao ponto de chegarmos ao último dia do prazo. dia 14.07.20;

8-Depois de pequenas alterações ao texto inicial, por sugestão do subscritor/mandatário, as respetivas cláusulas ficaram consolidadas e esclarecidas nos seus devidos termos no dia 14.07.2020;

9-Nesse mesmo dia à tarde o subscritor/mandatário enviou um email ao mandatário das Rés, que o acordo estava correto e podia enviar o Acordo para Tribunal, (DOC I);

10 -Isto depois de uma explicação interpretativa que o Colega deu à Cláusula 4.ª, do Acordo quanto às aplicações ativas que os Autores detinham na Ré, que satisfez o subscritor/mandatário; (DOCS. 2 e 3)

11-Estando o acordo correto e completado o subscritor nesse mesmo email solicitou-se que lhe fosse enviado o "comprovativo de entrega";

12-Acontece, porém, que o mandatário das Rés não enviou ao subscritor/mandatário o comprovativo de entrega " do requerimento-transação como tinha solicitado no email;

13-Tendo o subscritor/mandatário, nessa tarde, um espaço de tempo sem Internet e não tendo o contato pessoal do mandatário das Rés para saber a razão do não envio para o Tribunal do requerimento-transação e estando no último dia do prazo, resolveu elaborar um requerimento perto da meia noite, acompanhado da minuta de trabalho da transação, no sentido de "salvar o prazo”;

14-Evidentemente que no requerimento não podia simplesmente argumentar que as negociações estavam completadas, sem pelo menos, convencer o Senhor Juiz que os mandatários estiveram a trabalhar no possível acordo;

15-Nunca sabemos como é que os Senhores Juízes reagem ao incumprimento dos prazos e a junção da minuta de trabalho foi exatamente para provar que os mandatários trabalharam no ACORDO;

16-O mandatário das Rés não gostou de tal procedimento entendendo que não devia ter junto a minuta de trabalho ainda não fechado — o que é falso;

17-Ora, não é verdade que a minuta estivesse incompleta, porque nesse dia (14.07.20), pelo email das 15:05, o subscritor/mandatário, depois da explicação interpretativa da cláusula 4.ª, solicitou ao mandatário das Rés o seu envio para Tribunal com o pedido da remessa do comprovativo de entrega;

18-O mandatário das Rés refugiou-se num pormenor de somenos importância, pelo menos para quem está de boa-fé, para justificar o seu incumprimento.

19-E, o mandatário das Rés chega a dizer no S/requerimento enviado ao Tribunal:

"Ao contrário do que se refere naquele requerimento, não houve qualquer compromisso de enviar a transação para o tribunal em qualquer dia '

20-Isto é surreal. A lei e os despachos dos Senhores Juízes são para cumprir;

21-O mandatário das Rés mostrou um desprezo total pelo cumprimento dos prazos e pelos princípios estruturantes do CPC — "principio da cooperação ", "Dever de boa-fé processual " e "Dever de recíproca correção", em que o primeiro diz no seu n. º1:

"Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as partes cooperar entre si, concorrendo para se obter com brevidade e eficácia, ajusta composição do litígio", e o princípio do "dever de boa-fé processual":

  As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior"

22-Ora, o mandatário das Rés, procedeu com arrogância e com ameaça de participação à Ordem, nem aceitando um pedido humilde de desculpas do subscritor/mandatário;

23-Face a este impróprio procedimento do mandatário das Rés, o subscritor/mandatário enviou um email ao mandatário das Rés, solicitando o seu consentimento para juntar os emails das negociações do Acordo-Transação.

24-O mandatário das Rés respondeu - NÃO, são confidenciais.

25-Ora, não é o advogado que define se as comunicações trocadas são ou não confidenciais, mas a natureza jurídica daquela que a qualifica (Do segredo Profissional na Advocacia — Augusto Lopes Cardoso- 2" ed. pag. 65)

26-Socorrendo-nos do ditado antigo "Quem não deve não teme ", parece-nos que o representante das Rés não tem interesse em que os emails sejam apresentados.

 

EM CONCLUSÃO

A-O Acordo de transação é um documento comum;

B-O subscritor/mandatário constitui-se como "advogado em causa própria" e as negociações, salvo melhor opinião, não estão cobertas pelo segredo de justiça, pois,

C-O mandatário/subscritor tem absoluta necessidade para provar a sua honorabilidade, direitos e interesses legítimos nos termos do art.º 92.º/4 E.O.A que os emails trocados entre os mandatários sejam junto aos autos, no sentido de provar que o ACORDO estava findo;

D-O ACORDO foi um trabalho demorado, mas simples entre os mandatários, o valor foi definido, logo à partida como limite, e não existe nada no acordo que possa afetar a confidencialidade ou o interesse das partes, sendo uma delas o próprio subscritor/mandatário;

E-É absolutamente irresponsável e não pode ter a proteção de qualquer entidade judiciária ou da O.A. que o incumprimento do prazo seja olvidado pura e simplesmente, em detrimento não só dos princípios estruturante do CPC. como dos interesses da parte contrária.

 

NESTES TERMOS

Requer a Vossa Excelência que delibere nos termos dos art.ºs 54.º/ al. f) e 46.º/1 al. d) do E.O.A. que se pronuncie — se a troca de emails na composição do ACORDO já findo, sendo uma das parte o subscritor "advogado em causa própria” estão sujeitos ao segredo de justiça.

NOTA: Envia somente 3 emails por serem os essenciais à deliberação.

 

O Conselho Regional de Coimbra tem competência para a emissão do parecer solicitado, não apenas por estar em causa situação verificada em localidade pertencente à sua área de competência territorial, mas ainda porque configura questão de carácter profissional diretamente submetida à sua apreciação, nos termos do artigo 54º, nº 1 e al. f) do EOA.

Tem sido entendido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados que questões de carácter profissional são todas as que assumem natureza estatutária, resultantes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas do Estatuto, bem como, de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados.

 

Cumpre assim, emitir o parecer solicitado respondendo à questão suscitada pelo Exmo. Advogado requerente, que o mesmo sintetiza da seguinte forma: “(…) a troca de emails na composição do acordo já findo, sendo uma das partes o subscritor advogado em causa própria, estão sujeitos ao segredo de justiça” mas que se interpreta no sentido de se reportar, outrossim, ao segredo profissional.

 

Cumpre desde logo esclarecer que, a Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico.

A deontologia profissional é tratada no Estatuto da Ordem dos Advogados, nos Regulamentos aprovados pela Ordem e, em disposições legais avulsas.

Conforme dispõe o n.º 1 do artigo 88.º do EOA “O advogado é indispensável à administração da justiça, e como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem”.

Assim, o Advogado, no exercício da sua profissão quer seja em nome e interesse pessoal, advogando em causa própria, quando tal for permitido, quer seja no patrocínio de terceiro, está vinculado ao cumprimento escrupuloso do mesmo conjunto de deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados e ainda àqueles a que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem.

 

Da exposição efetuada pelo Exmo. Advogado requerente, depreende-se, que a matéria colocada à apreciação deste Conselho Regional, assenta na análise e alcance da obrigação do segredo profissional do advogado, enquanto princípio basilar do exercício da advocacia.

O segredo profissional encontra-se assim previsto e regulado no Estatuto da Ordem dos Advogados no artigo 92.º e que, no n.º 1 consagra o seguinte: “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a)      A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b)      A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c)       A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d)      A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e)      A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f)       A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

O nº 2 daquele artigo indica que “A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.”

No nº 3 determina que, “O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.”

O nº 4 daquele artigo dispõe que: “O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”

O nº 5 prevê ainda que, “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.”

 

O dever de segredo profissional constitui uma das principais obrigações que no desempenho da profissão, o advogado deve observar, conforme prevê o Estatuto da Ordem dos Advogados.

O segredo profissional respeita a todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do advogado em virtude da intrínseca relação de confiança estabelecida entre advogado e cliente.

Significa isto que, todos os factos que cheguem ao conhecimento de um advogado no exercício da sua atividade, encontram-se submetidos ao dever de sigilo profissional, que abrange por isso todas as situações suscetíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu cliente e também, as situações que possam representar uma quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.

 

No seguimento do que escreve o Dr. António Arnaut “A regra é, pois, a da absoluta confidencialidade dos factos e dos documentos de que o Advogado tenha conhecimento, directa ou indirectamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas.”

 

Da análise do instituto do segredo profissional, resulta que são sigilosos aqueles factos que não sejam do conhecimento público e relativamente aos quais seja de presumir que quem os confiou ao advogado, tinha um interesse objetivo, face à relação de confiança existente, em que se mantivessem reservados (Dr. Rodrigo Santiago - Considerações Acerca do Regime Estatutário do Segredo Profissional dos Advogados).

 

No que se refere à correspondência trocada entre advogados, o Estatuto da Ordem dos Advogados, não prevê uma norma que proíba, sem mais, a divulgação do conteúdo da correspondência, no entanto, encontrar-se-á sujeita a sigilo profissional, quando se verifique que do seu conteúdo, decorram factos abrangidos pela sua esfera de proteção.

Decorre desde logo do nº 3 do artigo 92º do EOA o impedimento da revelação ou da junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, resulte violação do dever de segredo.

Por outro lado, na alínea e) do n.º 1 do artigo 92º do EOA, proíbe-se a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável.

E, na alínea f) do n.º 1 do mesmo artigo 92º proíbe-se a revelação e utilização de factos de que o mandatário teve conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas em que tenha intervindo.

Do citado normativo resulta, pois, a obrigação dos advogados em guardar segredo profissional em relação aos factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

 

No que à troca de correspondência respeita, o artigo 113.º do EOA consagra a confidencialidade da correspondência trocada entre Advogados, estabelecendo o seguinte:

1- Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado, tenha carácter confidencial, deve exprimir, claramente, tal intenção.

2 – As comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhes sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 92º.

3 - O advogado ou solicitador destinatário da comunicação confidencial que não tenha condições para garantir a confidencialidade da mesma deve devolvê-la ao remetente sem revelar a terceiros o respetivo conteúdo.

 

O regime da correspondência confidencial, determina que o seu conteúdo não pode, em qualquer caso, ser revelado, e não pode, em qualquer circunstância, ser objeto do pedido de autorização que se encontra previsto no n.º 4 do artigo 92º do EOA.

 

Considerando, no entanto, os elementos que foram colocados à nossa disposição e, designadamente, os vários emails que instruíram o pedido de parecer, verifica-se que existem comunicações, e cujo conteúdo não se reproduz por conter os termos da composição do Acordo/transação, formulados em contexto negocial, e referimo-nos ao email de 13 de julho de 2020 - 12:51h, email de 14 de julho de 2020 - 12:44h, email de 14 de julho de 2020 - 14:41h, todos enviados pelo Ilustre Mandatário da parte contrária ao Exmo. Advogado requerente e email de 14 de julho de 2020 - 13:52h enviado pelo Exmo. Advogado requerente ao Ilustre Mandatário da parte contrária.

As comunicações em causa, e supra identificadas, têm carácter negocial, consubstanciam uma proposta negocial, que exige a confidencialidade e o secretismo que o instituto do segredo profissional regulamenta e consideram-se abrangidas pelo segredo profissional.

A junção ao processo da correspondência trocada entre mandatários, que contenha factos considerados sigilosos, constitui violação do segredo profissional do advogado, nos termos do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Assim, o Exmo. Advogado requerente apenas poderá fazer uso, no processo em questão, de factos sujeitos a sigilo, depois de devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Regional respetivo, sob pena de violação do segredo profissional e consequente infração disciplinar.

 

No entanto, e no que se refere ao email de 10 de julho de 2020 - 17:59h e ao email de 14 de julho de 2020-15:05h, ambos enviados pelo Exmo. Advogado requerente ao Ilustre Mandatário da parte contrária, na medida em que não é revelado qualquer conteúdo das negociações ou qualquer posição assumida pelas partes quanto ao objeto do processo, não contem factos abrangidos pelo segredo profissional pelo que, é forçoso concluir pela sua não sujeição ao dever de sigilo profissional.

 

Conclusão:

 

1.      A troca de correspondência entre advogados que consubstancie uma proposta negocial, exige a confidencialidade e o secretismo que o instituto do segredo profissional regulamenta;

2.      O Advogado só poder fazer uso de factos sujeitos a sigilo, depois de previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Regional respetivo, sob pena de cometer infração disciplinar;

3.      A correspondência onde não é revelado o conteúdo das negociações ou qualquer posição assumida pelas partes quanto ao objeto do processo, não contem factos considerados sigilosos pelo que, não está sujeita ao dever de segredo profissional.

 

É este o nosso parecer.

 

Luisa Peneda Cardoso

Topo