Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 28/PP/2020-C

Parecer n.º 28/PP/2020-C

Assunto: Conflito de Interesses

 

Por comunicação escrita, datada de 03 de novembro de 2020, remetida através de correio eletrónico, dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, o Exmo. Senhor Dr. BP..., Advogado, titular da cédula profissional n.º …C, com escritório na …, solicitou a emissão de parecer que coloca nos seguintes termos e que por facilidade na análise se transcreve:

 

“I - O signatário representou no âmbito do processo n.º A... que correu termos no Juízo Local Cível de Abrantes do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém a Ex.ma Senhora IL..., no âmbito da ação de processo comum que IFF... moveu contra aquela.

II - A sentença proferida no referido processo, sendo inteiramente desfavorável à Ex.ma Senhora IL..., constituinte do signatário, transitou em julgado em 3 de julho de 2020.

III - Com base neste título executivo, o autor da ação n.º A... moveu duas execuções contra IL..., a saber: a ação de processo sumário nº B... que corre termos no Juiz 2 do Juízo de Execução do Entroncamento do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém e a ação de processos sumário nº C... que corre termos no mesmo Juiz 2 do Juízo de Execução do Entroncamento do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém. 

IV - O signatário não representa IL... em nenhuma das referidas ações executivas. 

V - Todavia, representa IL... no âmbito do processo de inventário que esta moveu contra IFF..., que corre termos sob o processo n.º D... que corre termos no Juízo de Família e Menores de Abrantes do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém.

VI - No âmbito das aludidas ações executivas foram penhorados saldos bancários de uma conta bancária de que são titulares MAC..., mãe de IL..., esta e ainda o filho daquela e irmão desta, embora a titularidade dos saldos penhorados pertença em exclusivo à mãe de IL…, Ex.ma Senhora MAC.... 

VII - O signatário foi contactado por MAC... no sentido de a patrocinar em procedimento a intentar contra a penhora que considera ilegal. 

VII - Perante as questões de natureza deontológica que assolam o exponente, absteve-se de aceitar o mandato bem como de lhe prestar qualquer esclarecimento, atenta a representação da filha da Sr.ª MAC..., no processo n.º A... que correu termos no Juízo Local Cível de Abrantes do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém e ainda no Processo n.º D... que corre termos no Juízo de Família e Menores de Abrantes do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, já que o meio processual a adotar para a defesa dos legítimos interesses de MAC..., perpassaria pela dedução de embargos de terceiro, necessariamente propostos, para assegurar a verificação dos pressupostos processuais, quer contra o exequente IFF..., quer contra a executada IL... (constituinte do signatário noutro processo, que apenas seria demandada para assegurar o pressuposto processual da legitimidade passiva), pretende este a emissão de parecer no sentido de aquilatar se a eventual aceitação do mandato conferido por MAC... colocaria o expoente numa, ainda que hipotética, situação de conflito de interesses, e por essa razão, deverá abster-se de a representar. 

Termos em que, requer a V. Ex.ª se digne determinar a emissão de parecer, nos termos do preceituado na al. f) do n.º 1 do art. 54.º do Estatuto da Ordem dos Advogados sobre a eventual situação de conflito de interesses, ou qualquer outra circunstância de natureza deontológica, que impeça o signatário de aceitar o mandato que MAC... pretende conferir a este.”

 

Nos termos do que se encontra definido no artigo 54º nº 1 al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, o Conselho Regional de Coimbra tem competência para a emissão do parecer solicitado, porque configura questão de carácter profissional diretamente submetida à sua apreciação, pelo que, se procede à emissão de parecer nos seguintes termos:

A exposição apresentada pelo Exmo. Advogado, Dr. BP..., relaciona-se com a questão do conflito de interesses, no que ao exercício da advocacia diz respeito, regido estatutariamente no artigo 99º do EOA.

O objetivo do citado normativo assenta na preservação dos valores de independência, confiança e lealdade, fundamentais no exercício da advocacia, e constituiu expressa manifestação do princípio geral estabelecido no artigo 89º do EOA, de acordo com o qual, o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

Com efeito, o Advogado, no exercício da profissão, está vinculado ao cumprimento dos deveres plasmados no EOA, impondo-se a sua conscienciosa observância de forma a assegurar e garantir a dignidade e o prestígio da profissão.

A questão de saber se existe ou não conflito de interesses, pressupõe uma análise da situação concreta, contudo, o artigo 99.º do EOA concretiza algumas situações em que o dever de recusa do patrocínio é imposto, não porque em concreto e no imediato se verifique um conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

Dispõe o artigo 99.º do EOA (que se transcreve):

Artigo 99.º

Conflito de Interesses

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

Ora, à luz do enunciado normativo, as situações previstas nos números 1 e 2 determinam que o advogado deve recusar o patrocínio:

- De questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;

- De questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;

- De questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

Resulta ainda do nº 3 do citado artigo que o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

Por outro lado, dispõe o nº 4 que, se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como, se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

Segundo o n.º 5, o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, procurando-se, assim, defender a comunidade e os clientes dos advogados em especial, de atuações ilícitas destes, conluiados ou não, com outros clientes, bem como, defender o advogado da hipótese de sobre ele recair a suspeita de uma atuação visando qualquer outro fim, que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.

 

No entanto, a matéria do conflito de interesses é também uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe, pois, avaliar se o novo mandato não o impedirá de exercer, de forma livre e sem quaisquer constrangimentos, a sua atividade, conforme exigido pelas normas ínsitas no Estatuto Profissional.

É, pois, à luz destes normativos que deve ser encontrada a solução para o caso em apreço.

 

Considerando, assim, a situação fáctica descrita, a questão essencial assenta na análise da (in)existência de um eventual conflito de interesses na representação que pelo Exmo. Advogado Requerente venha a ser assumida, por mandato de terceiro embargante, no âmbito do processo executivo instaurado com base na sentença proferida na ação de processo comum número A... em que o mesmo patrocinou a ali Ré, e não obstante o facto de em tais autos de execução aquele Sr. Advogado não representar nenhuma das partes (designadamente, a executada).

 

A finalidade prevista no artigo 99.º do EOA é evitar o risco sério, ainda que apenas potencial, do conflito de interesses dos clientes do advogado, quando o interesse de um é contrário ao interesse de outro.

O n.º 1 do citado artigo 99.º do EOA, prevê as situações, em que o advogado já tenha intervindo em qualquer outra qualidade na mesma questão ou em questão que seja conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária.

 

No caso concreto, importará, assim, ajuizar se, ao assumir a representação da terceira embargante, o Ex.mo Advogado Requerente a estará a patrocinar numa questão conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

 

Encontra-se fixado na jurisprudência da Ordem dos Advogados que, “conexão” significa “relação evidente entre várias causas, de modo que a decisão de uma dependa das outras ou que a decisão de todas dependa da subsistência ou valoração de certos factos”, cfr. Parecer do Conselho Geral número E-14/00, aprovado em 13/10/2000, Relatado pelo Dr. Carlos Grijó, disponível em www.oa.pt.

 

Relativamente às causas em apreciação, dúvidas não subsistem de que os embargos são considerados questão conexa com a execução, pois que ambas as ações estão estreitamente ligadas. Com efeito, os embargos visam tutelar os interesses de terceiro que vejam o seu património ameaçado ou ofendido em consequência de uma penhora em sede executiva, correm por apenso à própria execução, conforme determina o artigo 344.º do CPC e, a sua procedência, faz extinguir (no todo ou em parte) a execução, de acordo com n.º 4 do artigo 732.º do CPC.

 

Refira-se que o Exmo. Advogado Requerente não representa qualquer das partes (exequente/executado) no processo executivo. A sua intervenção ocorreu na ação de processo comum n.º A..., no âmbito da qual assumiu o patrocínio da Ré, agora executada, cuja sentença proferida, porque inteiramente desfavorável à representada do Exmo. Advogado requerente, constitui o título executivo da execução em análise.

Note-se ainda, que, como resulta expressamente do pedido que deu origem à emissão do presente parecer, o Sr. Advogado assumiu - e mantém - o patrocínio daquela mesma Cliente que foi Ré na identificada ação declarativa - e que é agora executada na execução que se lhe seguiu - no âmbito de um processo de inventário.

 

Da análise conjugada de tais elementos, entendemos resultar, desde logo, a existência de uma relação – conexão – entre aquelas indicadas causas (ação de processo comum, ação executiva e embargos de terceiro) suscetível de relevar no quadro normativo vindo de referir, uma vez que, o fundamento deontológico para a proibição de intervenção em questões conexas se constitui como uma vertente do dever de lealdade para com o cliente. Com efeito, uma conduta do tipo da que aqui se mostra retratada põe em causa a confiança entre o anterior cliente (no caso, a executada) e o advogado, pois que os interesses discutidos no âmbito da ação declarativa subsistem e se projetam no objeto da ação executiva - circunstância que, consequentemente, não deixará de comprometer a independência do advogado na sua atuação com a nova cliente (no âmbito dos embargos de terceiro).

Ademais, não se mostra, sequer, esclarecido que o Exmo. Advogado Requerente tenha, no âmbito da aludida ação executiva, renunciado ao mandato que a Ré (agora executada) lhe havia conferido na ação declarativa, o que, considerando que a execução de sentença corre nos próprios autos em que foi proferida a decisão judicial que se pretende executar ( e que, só por força das regras da competência é/ pode ser tramitada em tribunal com competência especializada) pode, no limite, significar a subsistência daquele mandato.

 

Por outro lado, as posições assumidas e os interesses discutidos nos embargos de terceiro e na ação executiva, concretamente pelo terceiro embargante e pela executada, podem não ser coincidentes e podem, até, ser contrários, pois que os embargos se destinam a exercer sobre os bens penhorados, um direito incompatível com a penhora.

Com efeito, a lei atribui ao executado e ao terceiro embargante a qualidade de partes contrárias, pois que preceitua no artigo 348.º do CPC que, recebidos os embargos, logo são notificadas para contestar, as partes primitivas na execução, isto é, o exequente e o executado.

 

É, pois, de concluir que o caso exposto tem enquadramento na previsão do n.º 1 do citado artigo 99.º do EOA, pois que se trata de situação em que o advogado intervém noutra qualidade, na mesma questão (validando-se a hipótese da subsistência do mandato conferido na ação declarativa) ou noutra que com a mesma é conexa (considerando a hipótese de extinção do mandato atribuído na ação declarativa) mas em que representou a parte contrária.

 

O conflito de interesses em apreço gera uma situação de impedimento pelo que, deverá o Exmo. Sr. Advogado recusar o patrocínio da embargante, pois que tal diminui a amplitude do exercício da advocacia e gera uma situação potenciadora de violação dos valores da lealdade, isenção, independência, confiança, e decoro, fundamentais no respetivo exercício.

 

Conclusão:

I.                    A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da Advocacia diz respeito, encontra-se regulada no artigo 99º do EOA.

II.                  A referida norma funda-se em razões de preservação dos valores da lealdade, isenção, independência, confiança e, mesmo, decoro, fundamentais no exercício da advocacia.

III.                O EOA concretiza algumas situações em que o dever de recusa do patrocínio é imposto, porque tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

IV.                O Advogado que interveio em representação de uma das partes em ação declarativa de processo comum, não pode aceitar o patrocínio de embargante de terceiro em execução decorrente da sentença proferida na ação declarativa por se verificar a existência de conflito de interesses.

 

É este o nosso parecer.

 

Luisa Peneda Cardoso

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