Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 8/PP/2020-C

Parecer n.º 08/PP/2020-C

Assunto: Conflito de Interesses

 

Através de comunicação eletrónica de 13.03.2020 dirigida ao Conselho Regional de Coimbra, o Exmo. Senhor Dr. CF…, Advogado, com escritório em Seia, solicitou a emissão de parecer que coloca nos seguintes termos:

 

Em Junho de 2017, fui nomeado para patrocinar um indivíduo ASV… (processo de interdição/inabilitação).

Tramitado o processo, foi decidido em 5 de Março de 2018, interditá-lo.

Foi nomeada tutora a irmã ISV…, atualmente denominada acompanhante do maior.

Acontece que o acompanhado encontra-se a residir na Associação Humanitária Social e Cultural de P…, com sede na ….

As dificuldades económicas do acompanhado, são graves dado que a reforma auferida é inferior ao valor que terá de ser despendido mensalmente na referida instituição.

A referida irmã, acompanhante do maior, contactou-me nos últimos tempos, como profissional liberal – Advogado, a fim de instaurar um processo especial para peticionar uma autorização judicial de venda de bens do referido interdito/maior acompanhado.

Porque fui nomeado patrono, (em processo que há muito se encontra com transito em julgado), e agora a acompanhante pretende instaurar processo como já referi, tomei a liberdade de contactar o Senhor Presidente, a fim de me informar se existe alguma incompatibilidade para o efeito.”

 

Cumpre assim, emitir o parecer solicitado:

É competência deste Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional, de acordo com o artigo 54.º nº 1 alínea f) do EOA.

Tem sido entendido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados que questões de carácter profissional são todas as que assumem natureza estatutária, resultantes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas do Estatuto, bem como, do Regime Jurídico das Sociedades de Advogados e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados.

 

A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da advocacia diz respeito, encontra-se regulada no artigo 99.º do EOA.

A referida norma tem subjacente valores e princípios fundamentais no exercício da advocacia e identidade do advogado e funda-se em razões de preservação dos valores de lealdade, isenção, independência, confiança e mesmo decoro, princípios fundamentais no exercício da advocacia e pelos quais o advogado deve sempre pautar a sua atuação, tendo ainda como fundamento o risco de quebra do segredo profissional.

E, no que se refere aos deveres impostos ao advogado nas relações estabelecidas com os seus clientes, dispõe o artigo 99.º do EOA (que se transcreve):

Artigo 99.º

Conflito de Interesses

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

O citado artigo concretiza algumas situações em que o dever de recusa do patrocínio é imposto, não porque em concreto e no imediato se verifique a existência de conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

É assim à luz do citado normativo que deve ser encontrada a solução para a situação em apreço e, a factualidade relatada parece confirmar que estamos perante uma situação de conflito de interesses.

 

Vejamos,

Decorre do nº 1 do sobredito normativo queO Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.”

Resulta ainda no n.º 3 que o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por contra de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses dos clientes.

 

No caso concreto, o Advogado requerente, foi nomeado num processo de interdição/inabilitação, atual processo de Acompanhamento de Maior, para assumir a defesa do beneficiário/acompanhado.

No âmbito do referido processo, que transitou em julgado, foi decretada a interdição (acompanhamento) do seu patrocinado, tendo sido designada tutora (acompanhante) a irmã do interdito (beneficiário), tendo esta contactado o Advogado requerente com a finalidade de instaurar um processo de autorização judicial para venda de bens do referido beneficiário.

 

Ora, os atos de disposição de quaisquer bens do acompanhado, carecem de autorização judicial prévia e específica, e o incidente de autorização judicial corre por apenso aos autos principais de Interdição/Inabilitação - Acompanhamento de Maior, conforme previsto no artigo 1014.º do CPC.

Pelo que, esta “nova ação”, tem conexão com a ação principal, no âmbito da qual o Advogado requerente foi nomeado patrono ao beneficiário/acompanhado.

A referida ação de autorização judicial, visa apreciar o interesse do acompanhado na autorização da acompanhante para alienação ou oneração de quaisquer dos seus bens, e nessas circunstâncias, estará sempre presente a eventualidade ou possibilidade de existência de um conflito de vontades entre os intervenientes, podendo as partes assumir posições antagónicas no processo.

Acresce que, o Advogado requerente foi nomeado patrono oficioso, e de acordo com o disposto no nº 4 do artigo 18.º da LAJ “(...) O apoio judiciário (…) é extensivo a todos os processos que sigam por apenso”, pelo que, mantendo-se a nomeação, o patrono continua a ser chamado a intervir na defesa do beneficiário/acompanhado, devendo manter total independência e isenção relativamente aos demais intervenientes processuais.

Daí que, e mercê dos normativos supra citados, esta situação, cai, desde logo, na previsão do n.º 1 e cumulativamente n.º 3 do artigo 99.º do EOA, que impedem que o advogado nomeado patrono oficioso ao beneficiário/acompanhado num processo de acompanhamento de maior, aceite simultaneamente patrocinar, através de mandato conferido por procuração, a acompanhante, num processo de autorização judicial para alienação de bens, verificando-se um conflito de interesses, uma vez que, é uma ação conexa com a ação de acompanhamento de maior, em que o Advogado por força da nomeação mantém a representação do beneficiário/acompanhado.

 

Em tais circunstâncias, o advogado deve abster-se de aceitar o patrocínio do novo cliente.

De acordo com o estabelecido no n.º 4 do artigo 99º EOA, e perante uma situação de conflito de interesses, o advogado terá de cessar quer o patrocínio que lhe foi conferido por procuração, quer o patrocínio oficioso.

 

Conclusão:

1.    A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da advocacia diz respeito, encontra-se regulada no artigo 99.º do EOA.

2.    Nos termos do nº 1 e cumulativamente do n.º 3 do artigo 99.º do EOA, o advogado nomeado patrono oficioso ao beneficiário/acompanhado num processo de acompanhamento de maior, está impedido de aceitar simultaneamente o patrocínio, através de mandato conferido por procuração, da acompanhante num processo de autorização judicial para alienação de bens do beneficiário/ acompanhado, verificando-se um conflito de interesses, uma vez que, se trata de uma ação conexa com a ação de acompanhamento de maior, em que o Advogado e por força da nomeação mantém a representação do beneficiário/acompanhado.

3.    De acordo com o estabelecido no n.º 4 do artigo 99º EOA, perante uma situação de conflito de interesses, o advogado terá de cessar quer o patrocínio que lhe foi conferido por procuração, quer o patrocínio oficioso.

 

É este o nosso parecer.

 

Luisa Peneda Cardoso

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