Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 14/PP/2020-C

Parecer n.º 14/PP/2020-C

Assunto: Conflito de Interesses

 

Por comunicação escrita, datada de 16 de Junho de 2020, remetida através de correio electrónico dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exma. Senhora Dra. MEP…, Advogada, portadora da cédula profissional nº 6…C, com domicílio profissional no …, Coimbra, solicitou a emissão de parecer “sobre a possibilidade de exercer mandato contra anterior empregador onde exerceu funções como advogada”, alegando para tanto o que segue:

 

“(…)  De 6 de Maio de 2019 a 5 de Novembro do mesmo ano, a signatária manteve contrato de trabalho a tempo inteiro e em regime de exclusividade com FAP…, S.A., onde exerceu funções como advogada e assessora jurídica para todo o Grupo empresarial onde aquela se insere (Grupo Fap...). Desempenhava as suas funções em local e horário de trabalho determinados pela sua entidade empregadora, e com recurso material facultado por aquela.

No âmbito daquela relação laboral, exerceu mandato em alguns processos e auxiliou o departamento financeiro e de recursos humanos quando aqueles tinham questões jurídicas que carecessem de esclarecimento. A maior parte dos assuntos em que esteve envolvida diziam respeito a Qui…, S.A., a Soj…, S.A. e a Iber…, S.A., sendo residual o seu envolvimento em questões relacionadas com a Fap…, S.A. Findo o vínculo, a signatária renunciou a todas as procurações em que alguma das empresas do Grupo Fap… a havia mandatado.

 

Foi agora, volvidos cerca de seis meses, a advogada signatária procurada por um antigo trabalhador da Fap…, S.A. que pretende intentar acção especial de impugnação da regularidade e ilicitude do despedimento promovido por esta última contra si. Aquele antigo trabalhador referenciou ainda a advogada signatária a antigos colegas que igualmente a contactaram a fim de averiguar se os seus contratos de trabalho estão a ser cabalmente cumpridos e se todos os seus direitos estão a ser acautelados.

A signatária não conhecia nenhum destes potenciais clientes até recentemente, quando a procuraram na qualidade de advogada, nunca tendo exercido, no âmbito da relação laboral supra referida, qualquer mandato onde algum deles fosse parte, testemunha ou interveniente de qualquer outra forma. Nenhum dos factos atinentes quer à iminente acção especial de impugnação da regularidade e ilicitude do despedimento quer às demais potenciais acções judiciais que surjam devido aos novos potenciais clientes vieram ao seu conhecimento antes de relatadas por estes. Mais, a signatária não identifica qualquer sobreposição entre os factos que vieram ao seu conhecimento durante a sua extinta relação laboral e aqueles que são fundamento para os potenciais mandatos com estes novos possíveis clientes.

 

Em todo o caso, e porque sente ser esse o seu dever deontológico, solicita a advogada signatária o vosso distinto parecer quanto ao possível conflito de interesses a fim de averiguar se lhe é possível assumir mandatos de actuais e antigos trabalhadores de uma empresa que pertence ao mesmo grupo empresarial que a empregou durante seis meses no ano transacto. Pretende ainda de saber, em concreto e com especial urgência uma vez que correm prazos, se se verifica um conflito de interesses em aceitar mandato para intentar acção especial de impugnação da regularidade e ilicitude do despedimento contra a Fap…, uma vez que esta última já foi sua entidade empregadora.”

 

Nos termos conjugados nos artigos 54º, nº 1, alínea f) e artigo 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro de 2015 (doravante designado abreviadamente EOA), o pedido de parecer em análise, versa sobre matéria para cuja apreciação é territorialmente competente o Conselho Regional de Coimbra, no âmbito das suas atribuições de pronúncia sobre questões de carácter profissional, pelo que, cumpre assim, emitir o parecer solicitado:

 

O quadro fáctico enunciado pela Advogada Requerente, supra transcrito, insere-se na problemática atinente ao conflito de interesses no exercício da advocacia, regulada no artigo 99º do EOA.

 

O Advogado, no exercício da respectiva profissão está vinculado ao rigoroso cumprimento dos deveres plasmados no EOA, impondo-se a sua escrupulosa observância de molde a assegurar e garantir a dignidade e prestígio da profissão.

 

A propósito dos deveres impostos ao Advogado nas relações estabelecidas com os seus clientes, dispõe o artigo 99º do EOA, as situações concretas em que este deve recusar o patrocínio face à iminência ou mera possibilidade de ver diminuída a respectiva independência, confiança, lealdade ou mesmo contender o dever de sigilo profissional.

 

O referido normativo, dispõe no nº1 que “O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária”. Numa primeira leitura parece inequívoco que a situação exposta se enquadra nesta previsão, sendo ainda, reforçada pelo consignado nº 5 do mesmo preceito legal onde se pode ler que “O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.”

 

O artigo 208º da Constituição da República Portuguesa e artigo 88º do EOA, encerram a essencialidade do Advogado à Administração da Justiça, conferindo-lhe um conjunto de direitos e deveres para alcançar tal desiderato. O Advogado enquanto participante essencial à Administração da Justiça deve assumir um “comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem”. De entre as obrigações profissionais do Advogado, ressaltam a honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade.

 

A advocacia é uma actividade de natureza liberal, mas que prossegue um notório e determinante interesse público o que lhe confere uma grande relevância social.

 

Na senda do interesse público da Advocacia, surge o instituto do conflito de interesses, como imperativo de defesa da comunidade em geral da irrefutável independência do Advogado no exercício da profissão, mesmo em relação ao cliente e aos seus próprios interesses, da defesa do sigilo profissional na medida em que algumas situações proibidas poderiam fazê-lo perigar e na confiança, decoro e lealdade que tem de existir entre Advogado e cliente, pressupostos do exercício do mandato forense.

 

O conflito de interesses, como já se referiu, radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado, apelando, numa primeira linha, à consciência profissional do Advogado, ao seu decoro e dignidade profissional, devendo em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de conflito de interesses dos seus clientes.

 

Como bem refere António Arnaut “(…) seria altamente desprestigiante para a classe que o Advogado pudesse intervir a favor de outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás no lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio.”, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág.111

 

Considerando a factualidade apresentada, a Advogada Requerente durante o período de tempo compreendido entre 6 de Maio e 5 de Novembro de 2019, exerceu sob a forma de contrato de trabalho, a respectiva actividade de advocacia, a tempo inteiro, em regime de exclusividade, sob a direcção e orientações e nas instalações da entidade patronal, a saber, Grupo Fap…, composto pelas sociedades Fap…, S.A., Qui…S.A., a Soj…, S.A. e a Iber… S.A.

 

Não obstante a bondade dos argumentos expedidos pela Advogada Requerente, mormente ao afirmar que no âmbito da actividade desenvolvida no sobredito grupo empresarial não conhecia ou contactou com o (s) potencial (s) cliente (s), o certo é que, em abstracto e por inerência das funções que outrora desempenhou – designadamente no departamento de recursos humanos – já patrocinou a parte contrária em toda a plenitude incluindo eventuais questões conexas (nº 1 do artigo 99º do EOA).

 

Com efeito parece-nos pacifico que o departamento dos recursos humanos do grupo empresarial encerra em si o tratamento de todas as questões referentes aos trabalhadores e nessa medida a Advogada Requerente, dispõe de conhecimentos privilegiados no que concerne, não só mas também, à metodologia das relações laborais ali existente, o se configura de per si, potenciador de conflito tal como configurado no nº 5 do artigo 99º do EOA.

 

Ora, em face do referido, tendemos para concluir que no caso concreto se verifica um conflito de interesses, ademais aferido pela disposição contida no nº 5 do artigo 99º do EOA, pelo que a Advogada Requerente se deve abster de aceitar o novo ciente, porquanto no caso em apreço se verifica o iminente risco de colocar em causa o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos da anterior cliente, sem ignorar que em tese certamente disporá de conhecimentos que poderão acarretar vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

 

Na situação em análise e face aos factos apresentados para a emissão de parecer e tendo em consideração o referido no nº 5 do artigo 99º do EOA, entendemos que existe conflito de interesses, caso a Advogada Requerente venha a assumir o patrocínio do (s) trabalhador (s), designadamente, para interposição de acção especial de impugnação da regularidade e ilicitude do despedimento, contra a sua anterior entidade patronal, a favor de quem exerceu regularmente o mandato forense.

 

É este o nosso parecer.

 

Sandra Gil Saraiva

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