Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 23/PP/2020-C

Parecer n.º 23/PP/2020-C

Assunto: Correspondência sujeita ao segredo profissional

 

 

Por comunicação escrita, datada de 18 de Agosto de 2020, remetida através de correio electrónico dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exma. Senhora Dra. MAP…, Advogada, portadora da cédula profissional nº 4…c, com domicílio profissional na …, solicitou a emissão de parecer quanto à abrangência ou não de uma concreta comunicação remetida à parte contrária, in casu, solicitadora, pelo dever de sigilo profissional.

 

O pedido de parecer formulado junto deste Conselho Regional tem subjacente a factualidade que a seguir se reproduz:

“Foi -me confiado em Maio do corrente ano um assunto em que a parte contrária, pessoalmente envolvida, era uma solicitadora.

No exercicio do mandato que me foi confiado e após os meus constituintes mo terem comunicado, informei por mail uma Exmª. Srª. solicitadora que a rede que tinha colocado num terreno dos meus constituintes tinha por estes sido removida, sendo que os mesmos pretendiam que aquela a removesse do lugar onde a guardavam

Com base neste mail, a Exmª. Srª. solicitadora apresentou queixa crime contra os meus constituintes, alegando furto da rede e ainda que no âmbito do meu mail teria informado que os meus clientes teriam guardado para si a rede

Ora, conforme resulta do resumo do mail, nunca houve intenção por parte dos meus constituintes de furtar coisissima nenhuma, e por isso pediram por meu entremédio o levantamento da respectiva rede.

Encontra-se agendado para dia 31 de Agosto de 2020, inquirição dos meus constituintes, onde pretendo juntar o meu mail por forma a dissipar qualquer dúvida sobre o seu teor

O meu mail seguiu para a Exmª. Srª.solicitadora sem menção de confidencialidade

A Exmª. Srª. solicitadora nele se baseou para apresentar queixa crime, sem contudo o juntar.

Tenho presente o disposto no artº 113 do Estatuto da Ordem dos advogados que a contrario sensu não proibe a junção de trocas de mail entre solicitador e mandatario, desde que dele não conste a menção de confidencial, o que de facto, in casus, não ocorre.

Tal mail não se reporta a negociação malograda, mas apenas a informação prestada pela mandatária à parte contrária, que por sinal era solicitadora

Assim, peço, que me confirme que posso nos termos do artº 113º do EOA juntar tal mail aos autos

Este pedido de parecer tem caracter urgente dado que se encontra agendado para o próximo dia 31 de Agosto de 2020, inquirição”

 

Para cabal entendimento de todos os elementos indispensáveis ao enquadramento da questão suscitada e consequente emissão do parecer solicitado, este Conselho Regional, em 11 de Setembro de 2020, solicitou junto da Advogada Requerente a junção ao processo de parecer de cópia da comunicação de correio electrónico a que alude.

A Advogada Requerente deu imediato cumprimento do solicitado, procedendo à junção da sobredita comunicação, que ante a pertinência do respectivo conteúdo, para a emissão do presente parecer, aqui se reproduz:

 

“Exmª. Srª Solicitadora,

Bom dia

Dando seguimento ao assunto supra mencionado sou a comunicar-lhe que fui informada pelos meus constituintes que por forma a a vedarem a entrada desse seu terreno com rede própria, procederam a remoção da sua. Esta rede encontra-se guardada pelos meus clientes que pedem que a vá levantar.

Lembro que Vª. Exª. colocou a rede no meio do terreno dos meus clientes, sem autorização e contra a sua vontade, dividindo-o.

O terreno dos meus clientes encontra-se perfeitamente delimitado por muro de pedra, aí construído há mais de cem anos, conforme se pode até inferir de fotografias aéreas do Google maps. (Doc. I que se junta e se dá aqui por integralmente reproduzido). A delimitação dos terrenos sempre foi feita por tal muro, e sempre foi respeitada por todos os habitantes da localidade, inclusive pelo Sr. JV… e antepossuidores do seu prédio, que por isso nunca por ai passaram.

O acesso ao prédio, que suponho que seja da herança do Sr. JV… faz-se, como há mais de cinquenta, setenta ou 100 anos se fez, e como também resulta da dita fotografia aérea, por uma pequena servidão que passa a norte da habitação do Sr. MM…, segue para poente e contorna esta habitação para sul.

As cadernetas prediais não são títulos aquisitivos, nem fazem presumir a existência de qualquer direito. Assim usar a sua descrição para posteriormente fazer delimitações no terreno, desrespeitando os sinais físicos delimitativos de propriedade aí existente, não é legalmente admissível.

Tendo presente o exposto aguardo um contacto por parte de Vª. Exª. para agendar dia e hora para levantar a dita sua rede.

Com os Melhores Cumprimentos”

   

 

Nos termos do disposto no artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro de 2015 (doravante designado abreviadamente EOA), compete aos Conselhos Regionais a pronúncia sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua circunscrição territorial.

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Regional subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional, atinente à existência de eventual violação do dever de Segredo Profissional, caso se verifique a junção aos Autos de uma comunicação subscrita pela Advogada Requerente e enviada à parte contrária, pelo que, cumpre assim, emitir o parecer solicitado.

 

A questão suscitada pela Advogada Requerente à apreciação deste Conselho Regional, reconduz-se à análise da problemática do alcance da obrigação de Segredo Profissional, enquanto princípio basilar e dever por excelência de todos os Advogados no exercício da respectiva função.

Importa, assim, aferir se a materialidade exposta, se encontra, ou não, a coberto do dever de segredo.

Por princípio e face ao consagrado no artigo 92º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional”:

“ 1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.”

 

Da leitura dos segmentos da norma transcrita parece resultar que a obrigação de guardar segredo abrange tudo quanto advém ao conhecimento do Advogado no exercício funcional e nessa conformidade apenas poderá revelar tais conteúdos nos casos rigorosamente previstos na Lei.

Numa acepção abrangente, significa isto que, todos os factos de que um Advogado tome conhecimento, radicam da intrínseca relação de confiança estabelecida entre Advogado e cliente e que, a respectiva revelação assumiria, por princípio, uma violação dessa relação de confiança susceptível de representar uma quebra da dignidade da função social que a Advocacia prossegue.

A este propósito e como bem refere António Arnaut “A regra é, pois, a da absoluta confidencialidade dos factos e documentos de que o Advogado tenha conhecimento, directa ou indirectamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas.”

De facto, o dever de guardar segredo profissional é sobejamente essencial para o cabal exercício da Advocacia, porquanto, só a salvaguarda deste dever permite que o Advogado atinja um grau de confiança capaz de o tornar o confidente absoluto do seu cliente.

Por outro lado, tal dever repercute-se no interesse público da função do Advogado enquanto agente da administração da justiça, acolhendo, a este propósito, na íntegra o entendimento vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 15 de Fevereiro de 2018, ao referir que “Radicando no principio da confiança, o dever de lealdade do Advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera ordenação contratual, assumindo-se como principio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.”

Sem prejuízo, o dever de segredo profissional, poderá, mediante a verificação de certas circunstâncias, devidamente elencadas na lei e por via de uma análise casuística sofrer desvios.

Com efeito, não são sigilosos os factos de conhecimento público, referindo a este propósito António Arnaut que “não estão, contudo, incluídos no dever de sigilo, os factos notórios ou de domínio público, os que se destinam a ser invocados ou alegados em defesa do cliente, os constantes de documento autêntico e os que estiverem provados em juízo (…) se os factos são notórios ou já foram divulgados, o fundamento do sigilo perde o conteúdo e objecto (…).”

No que se refere à correspondência trocada entre Advogados, ou no caso em apreço, entre a Advogada Requerente e a solicitadora, que, ademais, não se se encontra no exercício da sua actividade profissional, outrossim na veste de particular interessado na concreta questão, o Estatuto da Ordem dos Advogados não prevê uma norma específica que proíba, sem mais, a sua divulgação, no entanto, encontrar-se-á abrangida pelo sigilo profissional, quando se apure que do seu conteúdo decorrem factos abrangidos pela sua esfera de protecção.

A propósito da troca de correspondência rege o artigo 113º do EOA que sob a epígrafe “Correspondência entre advogados e entre estes e solicitadores”, prescreve o seguinte:

“1 - Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha carácter confidencial, deve exprimir claramente tal intenção.

2 - As comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhes sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 92.º

3 - O advogado ou solicitador destinatário da comunicação confidencial que não tenha condições para garantir a confidencialidade da mesma deve devolvê-la ao remetente sem revelar a terceiros o respectivo conteúdo.”

 

Sendo certo que a correspondência trocada entre mandatários, em regra, encontra-se desde logo protegida, quanto à sua confidencialidade, pelas disposições contidas nos artigos 92º e 76º do EOA, relativamente a todas as matérias profissionais que das mesmas constem, independentemente da declaração expressa nesse sentido, o supra transcrito preceito legal, apenas vem consagrar uma proibição total de revelação de segredo profissional em relação às comunicações entre Advogados, expressamente, classificadas como confidenciais, afastando, quanto a estas, a aplicação do mecanismo de dispensa de segredo profissional a que se refere o nº 4 do artigo 92º do EOA.

No ademais, inexiste no Estatuto da Ordem dos Advogados uma proibição genérica de revelação ou junção a processos de correspondência trocada entre Advogados em representação dos seus mandantes, ou entre Advogados e a parte contrária ou o seu Mandante.

No caso que nos ocupa, tendemos a considerar que a comunicação expedida pela Advogada Requerente, não assume carácter confidencial, não só porque tal indicação não foi expressamente efectuada pela mesma, mas também, porque em N/ aviso, os factos ali descritos assumem por um lado, carácter meramente informativo, e por outro lado, são factos notórios e de conhecimento público.

 

Assim, perante a análise concreta do conteúdo da comunicação a que alude a Advogada Requerente, entende este Conselho Regional, que da mesma não resultam quaisquer factos subsumíveis ao elenco dos factos sigilosos a que alude o artigo 92º, nº 1 do EOA nas várias alíneas.

Em suma,

 

a)    A regra, em sentido lato, é que o Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções;

b)    Exclui-se da obrigação de guardar segredo que impende sobre os Advogados o atinente a factos notórios e de conhecimento público, ou meramente informativos que não contendam com o elenco legalmente estabelecido;

c)    Os Advogados apenas estão obrigados a guardar segredo do que lhes é revelado a título de confidência em abono do dever de reserva e lealdade para com o Constituinte, que o exercício da advocacia subjaz;

 

É este o nosso parecer.

 

Sandra Gil Saraiva

Topo