Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 1/PP/2021-C

Parecer n.º 1/PP/2021-C

Assunto: Incompatibilidades – advogado sócio de sociedade comercial por quotas

 

Por comunicação escrita, datada de 4 de Janeiro de 2021, remetida através de correio electrónico dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exma. Senhora Dra. SB…, portadora da cédula profissional nº ...c, com domicílio profissional na …, solicitou a emissão de parecer formulando o petitório que a seguir se transcreve:

 

“Pelo exposto, vem solicitar a V.Exa.ª se digne dar Parecer sobre: 1) a inexistência, ou não, de incompatibilidade da Advogada SB… ser (apenas e só) sócia (sem exercício de gerência ou qualquer outra função ou cargo) da sociedade comercial por quotas TR… Lda., considerando o estabelecido no artigo 82º, nº 1, alínea n) do EOA, uma vez que esta sociedade consubstancia no seu objecto social as actividades de mediação e angariação imobiliária”. 2) a existência de qualquer incompatibilidade entre o exercício da Advocacia e o facto de ser (apenas e só) sócia (sem exercício de gerência ou de qualquer outra função ou cargo), relativamente a qualquer actividade das mencionadas no objecto social da sociedade por quotas TR..., Lda.”

 

                A Advogada requerente instruiu o presente pedido com os documentos necessários à correcta apreciação da questão e prolação do correspondente parecer, designadamente, com a cópia da certidão permanente da sociedade comercial por quotas com a firma “TR..., Lda.”, bem como, cópia da declaração de actividade apresentada junto da Autoridade Tributária.

 

Nos termos do disposto no artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro de 2015 (doravante designado abreviadamente EOA), compete aos Conselhos Regionais a pronúncia sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua circunscrição territorial.

 

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Regional subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional, atinente à verificação da existência de eventual incompatibilidade para o exercício da Advocacia, pelo que, cumpre assim, emitir o parecer solicitado.

 

A matéria das incompatibilidades vem regulada nos artigos 81º e 82º do EOA.

 

Sob a epígrafe “Princípios gerais” dispõe o artigo 81º do EOA o que segue:

“1 – O Advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.

2 – O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

 

Por sua vez o artigo 82º do EOA estabelece, desde logo, uma enumeração exemplificativa dos cargos, actividades ou funções que inequivocamente são incompatíveis com o exercício da advocacia, sem prejuízo da existência de outras situações que não obstante a inexistência de expressa previsão legal, possam reputa-se incompatíveis com a advocacia. De todo o modo, a enumeração constante do mencionado preceito legal, visa desde logo acautelar que o exercício da profissão de advogado seja levado a efeito sem a cumulação de outras actividades que, objectivamente, sejam susceptíveis de contender com o cumprimento escrupuloso dos princípios éticos e basilares da profissão previstos no Estatuto.

 

Com efeito, o Estatuto ao estabelecer um regime de incompatibilidades visa proteger a generalidade dos demais deveres de isenção, independência e dignidade da profissão de advogado, prevenindo, igualmente, situações de violação do dever de segredo profissional, conflito de interesses, ou angariação de clientela pelo próprio ou por interposta pessoa, de molde a garantir que o Advogado cumpra a sua actuação livre de qualquer pressão, especialmente dos constrangimentos inerentes aos seus próprios interesses ou de influências exteriores.

 

No caso que nos ocupa a Advogada Requerente figura como sócia detentora de uma quota nominal de €50,00 da sociedade por quotas identificada com a firma “TR..., Lda.”, com o número único de matrícula na Conservatória do Registo Comercial e identificação de pessoa colectiva …, com sede na Travessa Dr. …. Nos exactos termos decorrentes da certidão do registo comercial disponível para consulta através do código de acesso …, o objecto social da mesma é o que a seguir se transcreve: “Actividades de engenharia e técnicas afins. Promoção imobiliária. Construção de todos os tipos de edifícios residenciais, executados por conta própria ou em regime de empreitada ou subempreitada, de parte ou de todo o processo de construção. Amplicação, reparação, transformação e restauro de edifícios, assim como a montagem de edifícios pré-fabricados. Actividades de mediação e angariação imobiliária. Compra, venda e permuta de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e como actividade acessória o arrendamento de bens imóveis próprios ou alheios. Actividades de design. Actividades de consultoria (com excepção da jurídica). Actividades de Arquitectura. Avaliação Imobiliária, actividades de avaliação de empresas e bens móveis. Administração de imóveis por conta de outrem. Arrendamento de bens imobiliários. Construção de jardins, campos de ténis, de golfe, estádios e outras instalações desportivas. Demolição de edifícios e de outras construções. Terraplanagens; limpeza dos locais de construção; drenagem e outras preparações dos locais de construção, obras especializadas de construção, fundações; montagem de estruturas metálicas; preparação de armações de ferro no local da obra; impermeabilização e desumidificação de edifícios; montagem e desmontagem de andaimes e de plataformas de construção; construção de chaminés fornos industriais; trabalhos de construção realizados em estruturas altas com recurso a técnicas de escalada; montagem de estufas; obras subterrâneas; construção de piscinas; limpeza de fachadas”.

 

A Sociedade TR..., Lda. foi constituída em 15 de Janeiro de 2020, com o capital social de €100,00 distribuído em partes iguais pela Advogada Requerente que, deste modo, assume a qualidade de sócia e pelo marido RABB… que assume a qualidade de sócio-gerente.

 

A forma de obrigar a sociedade é por via da assinatura do gerente.

 

A Advogada Requerente nunca foi nomeada gerente e informa nunca ter exercido a gerência de facto, sendo uma mera detentora de participação social na sociedade. Sem ignorar as controvérsias doutrinais e jurisprudenciais que gravitam em torno da temática da gerência, o certo é que, ao abrigo do disposto no artigo 259º do Código das Sociedades Comerciais é ao gerente que compete a prática dos actos que se reputem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios.

 

Em consequência a vinculação da sociedade perante terceiros ocorre, precisamente, por via dos actos praticados pelos gerentes, dentro dos poderes que a lei lhe confere.

 

No caso em apreço não se nos afigura a existência de fundamentos susceptíveis de fazer perigar a presunção de que o exercício efectivo dos poderes de gerência sejam exercidos por pessoa diversa da que para o efeito se encontra designada no contrato de sociedade. Dito de outro modo, somos a considerar que o poder efectivo, real e decisório para vincular a sociedade é de facto exercido pelo sócio gerente da sociedade, marido da Advogada requerente.

 

Apreciado o vasto objecto social da sociedade em causa no cotejo com as situações elencadas nas várias alíneas do artigo 82º, nº 1 do EOA, antecipamos, desde já, que não se nos configura a existência de qualquer incompatibilidade, posição que aliás vai de encontro com a jurisprudência maioritária da ordem dos Advogados, que tende a considerar que não existe nenhum impedimento nem incompatibilidade entre o exercício da advocacia e as funções de gerente ou de administrador de sociedade comercial, com excepção dos casos em que o objecto da sociedade colida com as incompatibilidades que de modo expresso se encontram definidas no estatuto, como é claro e classicamente o caso do exercício simultâneo da advocacia e das funções de gerente ou administrador de sociedade imobiliária ou de leiloeira, porquanto o exercício da advocacia é incompatível com a actividade de mediador imobiliário e ou de leiloeiro ao abrigo do preceituado na alínea n) do nº 1 do artigo 82º do EOA.[1]

 

No caso que nos ocupa, a sociedade TR..., Lda., tem, também, como objecto social a promoção imobiliária e actividades de mediação e angariação imobiliária, actividades que em nosso aviso são susceptíveis de gerar dúvidas e confusão interpretativa da disposição contida no artigo 82º, nº 1, alínea n) do EOA, questão que sempre seria cabalmente suplantada com a alteração do objecto social da empresa, mediante a exclusão das sobreditas actividades do vasto leque de actividades potencialmente desenvolvidas, o que a título sugestivo aqui se refere.

 

Sucede que, como a seguir se demonstrará, a circunstância de a Advogada Requerente deter uma participação social na sociedade sem ali exercer a gerência, não se configura que determine a existência da incompatibilidade expressamente prevista na alínea n) do nº 1 do artigo 82º do EOA.

 

Com efeito, dos elementos em análise resulta que, pese embora, o facto de a sociedade “TR..., Lda.” apresentar um objecto social bastante abrangente e que incluiu as actividades de promoção imobiliária, de mediação e angariação imobiliária, o certo é que, no caso destas últimas duas se verifica uma impossibilidade legal e objectiva de exercitar tais actividades por ausência do cumprimento dos pressupostos legais próprios para o exercício das ditas actividades.

 

A definição de mediação imobiliária consta do artigo 2º da Lei 15/2013 de 8 Fevereiro, onde se pode ler “A actividade de mediação imobiliária consiste na procura, por parte das empresas, em nome dos seus clientes, de destinatários para a realização de negócios que visem a constituição ou aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, bem como a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão de posições em contratos que tenham por objecto bens imóveis”.

 

Mais se refira que, para que uma sociedade esteja habilitada a exercer a actividade de mediação imobiliária, necessário se torna a respectiva inscrição e licenciamento junto do Instituto da Construção e do Imobiliário, I.P. (InCI, IP), nos termos previstos na Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro, tendo-se apurado que a “TR..., Lda.”, não requereu tal inscrição e licenciamento da actividade.

 

No que tange à actividade de “Angariação Imobiliária”, encontramos a respectiva definição no artigo 4º do Decreto-Lei nº 211/2004 de 20 de Agosto, sendo que, tal actividade “(…) é aquela em que, por contrato de prestação de serviços, uma pessoa singular se obriga a desenvolver as acções e a prestar os serviços previstos, respectivamente nos números 2 e 3 do artigo 2º, necessários à preparação e ao cumprimento dos contratos de mediação imobiliária, celebrados pelas empresas de mediação imobiliária”

 

A prossecução da actividade de angariação imobiliária é instrumental e acessória da actividade de mediação imobiliária, encontrando-se, em inequívoca dependência desta.

 

Nesta senda, também o exercício da actividade de angariação imobiliária está dependente da inscrição no Instituto da Construção e do Imobiliário, I.P. (InCI, IP), bem como, da pré-existência de um contrato de prestação de serviços com empresa de mediação imobiliária detentora de licença válida, reiterando-se, a este propósito que a sociedade “TR..., Lda.”, não é titular de tal licença o que de per si impede o exercício da actividade de mediação imobiliária e concomitantemente da actividade de angariação imobiliária.

 

Por outro lado o próprio regime legal vigente proíbe expressamente o angariador imobiliário do exercício de qualquer outra actividade comercial ou profissional.

 

Como já se disse supra, a expressão “Promoção Imobiliária” presta-se a alguma confusão, na medida em que faz sugerir que tal actividade consiste na promoção comercial de imóveis para venda, designadamente através de actos publicitários de bens imóveis para comercialização ou através de contactos com potenciais interessados apresentando-lhe tais imóveis, o que pode fazer crer tratar-se de uma actividade similar à mediação imobiliária.

 

Com efeito, a actividade de promotor imobiliário encontra-se definida na alínea a) do nº 1 do artigo 3º do D.L. 68/2004 de 25 de Março, nos seguintes termos “Promotor Imobiliário é a pessoa singular ou colectiva, privada ou pública, que, directa ou indirectamente, decide, impulsiona, programa, dirige e financia, com recursos próprios ou alheios, obras de construção ou de reconstrução de prédios urbanos destinados a habitação, para si ou para aquisição sob qualquer título.”

 

Deste modo, a actividade de promoção imobiliária consiste, essencialmente, em desenvolver com carácter permanente, programas imobiliários, assumindo os promotores quer o risco financeiro, quer a responsabilidade de condução das operações necessárias à sua execução, a exercer por tempo indeterminado através de uma empresa estabelecida em território nacional. Esta actividade traduz-se, assim, na reunião dos meios jurídicos, financeiros e técnicos a fim de construir edifícios ou de implementar nos terrenos as infra-estruturas com vista à venda, podendo os promotores intervir quer como donos das obras quer como prestadores de serviços.

 

Do supra expedido, decorre inequivocamente, que a actividade de “Promoção Imobiliária” e “Mediação Imobiliária”, apesar da similitude da denominação, não se confundem, consistindo a segunda na procura, por parte das empresas, em nome dos seus clientes, de destinatários para a realização de negócios que visem a constituição ou aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, bem como a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão de posições em contratos que tenham por objecto bens imóveis.

 

Por sua vez, na promoção imobiliária, não se verifica qualquer mediação, ao invés, o promotor investe, corre riscos, presta serviços para si e para os seus clientes, não estando, em consequência, sujeito às regras da mediação imobiliária.

 

Ante o exposto e dos elementos carreados na presente situação, não sendo a Advogada Requerente gerente da sociedade “TR..., Lda.”, temos que concluir pela inexistência de qualquer incompatibilidade entre o exercício da Advocacia pela Ilustre Colega SB... e a sua qualidade de sócia da referida empresa.

 

A este propósito seguimos de perto as considerações vertidas no já mencionado parecer proferido por este Conselho Regional sob o nº 32/PP/2018-C, relatado por Manuel Leite da Silva, quando ali se refere que “Do exercício da actividade de gerente ou de administrador da sociedade comercial referida nos autos, não se vislumbra, em abstracto, qualquer limitação dos deveres de isenção, independência e dignidade na profissão de advogado, porquanto não se vê como o desempenho daquelas funções pela Exma. Sra. Advogada ali indicada seja susceptível de gerar dúvidas quanto a um exercício transparente e idóneo da sua profissão de advogada”. E prossegue aquele parecer com a conclusão de que “(…)sem prejuízo da inexistência de incompatibilidade acima verificada, o advogado que exerça cumulativamente as funções de gerente ou de administrador de sociedade comercial, continua contudo vinculado ao rigoroso cumprimento de todos os deveres plasmados no EOA sob pena de incorrer em infracção disciplinar (…)”

 

                Sem prescindir, refira-se que, à semelhança do que rege para os demais deveres deontológicos previstos no Estatuto, releva, sempre a consciência individual do advogado, que colocado perante uma situação concreta, deverá avaliar e decidir se a sua independência e autonomia estão ou não comprometidas, ditando a decisão de aceitação ou recusa do patrocínio.

 

                Devem, assim, os Advogados salvaguardar, previamente à aceitação de mandato ou prestação de serviços, se daí resulta ou não uma situação que possa gerar algum tipo de incompatibilidade à luz do Estatuto.

 

 

 

Em suma,

a)    O instituto da incompatibilidade visa proteger a isenção, independência e dignidade do exercício da advocacia, prevenindo situações de violação de dever de segredo profissional, conflito de interesses ou angariação de clientela pelo próprio ou interposta pessoa;

b)    A mera qualidade de sócia de uma sociedade comercial por quotas, sem o exercício da gerência de facto ou de direito, por si só, não se reputa incompatível com o exercício da advocacia.

c)    No entanto, é incompatível com a advocacia, o exercício da gerência, seja de facto ou apenas de direito, nos casos em que a atividade da sociedade colida com as incompatibilidades que de modo expresso se encontram definidas no Estatuto da Ordem dos Advogados ou, sempre que, esse exercício possa pôr em causa a isenção, independência e dignidade da advocacia.

d)    É incompatível com o exercício da advocacia, a atividade de mediador imobiliário, agente ou contratado do respectivo serviço, nestes se enquadrando os gerentes, sócios ou não, das sociedades de mediação imobiliária;

e)    Deste modo e, em abstracto, a situação reportada a este Conselho Regional para emissão de parecer não encerra qualquer incompatibilidade nos termos e para os efeitos consignados no artigo 82º do EOA, uma vez que que a Senhora Advogada Requerente não é gerente da sociedade;

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso parecer.

 



[1] vide processo de parecer nº 32/PP/2018-C, deste Conselho Regional de Coimbra, relatado por Manuel Leite da Silva;

 

Sandra Gil Saraiva

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