Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 7/PP/2021-C

Parecer n.º 7/PP/2021-C

Assunto: Conflito de Interesses – Processo de Inventário

 

Por comunicação escrita, datada de 20 de abril de 2021, remetida através de correio eletrónico, dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exma. Senhora Dr.ª DS…, Advogada, portadora da cédula profissional n.º …C, com escritório na Rua …, solicitou a emissão de parecer que coloca nos seguintes termos e que por facilidade na análise se transcreve:

 

Corre termos junto do Cartório Notarial …, na cidade …, sob o n.º …, um processo de inventário, para partilha de herança, no qual são requeridos no referido processo, familiares da aqui expoente, nomeadamente o marido, sogra e cunhado.

Encontrando-se, de igual modo, a aqui expoente, identificada no referido processo na qualidade de esposa de um dos interessados/co-herdeiro.

Sucede porém, que há a intenção por parte dos seus familiares/requeridos no referido processo de se fazerem representar por advogado, pretendendo os mesmos que seja eu a representá-los.

Pelo que, sendo minha intenção juntar aos autos procuração forense em representação dos requeridos, meus familiares (sogra, cunhado e marido) e também como advogada em causa própria.

Solicita-se muito respeitosamente a V. Exa., que me esclareça se de facto posso intervir nos autos como advogada, tanto em causa própria, como em representação dos herdeiros, ou se haverá que se constituir outro advogado para o efeito”.

 

Nos termos do que se encontra definido no artigo 54º nº 1 al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, o Conselho Regional de Coimbra tem competência para a emissão do parecer solicitado, porque configura uma questão de carácter profissional diretamente submetida à sua apreciação, pelo que, se procede à emissão de parecer nos seguintes termos:

 

A situação descrita pela Exma. Advogada, subsume-se a uma questão deontológica, relacionada com a relação entre o advogado e o cliente e relacionada com eventual conflito de interesses entre os clientes que pretende representar.

E, a questão do conflito de interesses, no que ao exercício da Advocacia diz respeito, encontra-se regulada no artigo 99º do EOA devendo ser analisada a questão em apreço à luz deste dispositivo (que se transcreve):

 

Artigo 99.º

Conflito de Interesses

1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

Ora, à luz do enunciado normativo, as situações previstas nos números 1 e 2 determinam que o advogado deve recusar o patrocínio:

- De questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;

- De questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;

- De questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

Resulta ainda do nº 3 do citado artigo que o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

Por outro lado, dispõe o nº 4 que, se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como, se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

Segundo o n.º 5, o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, procurando-se, assim, defender a comunidade e os clientes dos advogados em especial, de atuações ilícitas destes, conluiados ou não, com outros clientes, bem como, defender o advogado da hipótese de sobre ele recair a suspeita de uma atuação visando qualquer outro fim, que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.

 

A referida norma funda-se assim em razões de preservação dos valores da lealdade, isenção, independência, confiança e mesmo decoro, fundamentais no exercício da advocacia, tendo ainda como fundamento o risco de quebra do segredo profissional.

Na maioria das situações, a questão de saber se existe ou não conflito de interesses pressupõe uma análise casuística. Contudo, o legislador concretizou algumas situações em que o dever de recusa do patrocínio é imposto, não porque em concreto e no imediato se verifique o conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

 

Refira-se que este Conselho Regional emitiu já vários pareceres sobre esta matéria, neles perfilhando como princípio geral que é ao advogado cabe avaliar, casuística e sucessivamente, se se verifica uma qualquer situação de conflito de interesses. Com efeito, o entendimento preconizado (que sufragamos) é o de que, pese embora em abstrato possa, de início, não existir conflito de interesses, caberá sempre ao advogado que represente mais do que um interessado num processo de inventário, aferir se, no decorrer do processo, eclodem situações ou surgem circunstâncias determinantes da existência desse conflito de interesses; caso em que deverá cessar de agir por conta de todos, renunciando imediatamente aos mandatos que lhe tenham sido conferidos.

Refira-se, contudo, que, no que refere à hipótese de representação simultânea do cabeça-de-casal e de um qualquer outro interessado, o Conselho Regional de Coimbra tem vindo a entender que a solução tem de ser distinta daquela, por mais exigente, pois que a verificação da mera hipótese de conflito ocorre, desde logo, no plano da sua representação abstrata. É que as posições do cabeça-de-casal- que pode ser, e habitualmente é, também, interessado- e dos demais interessados situam-se, mercê das diferenças de estatuto processual, em patamares distintos. Ao cabeça-de-casal compete, por atribuição legal, o cumprimento de um conjunto de deveres que, podendo ou não coincidir com os que titula enquanto interessado, não podem, sob pena de sanção, deixar de ser satisfeitos. Tal qualidade processual encontra-se, desta forma, marcada por uma obrigatória demarcação dos interesses – conflituantes ou não- que cada um dos interessados titula, mormente pelo facto de, como se referiu, lhe estar vedada toda e qualquer conduta de privilegiamento de qualquer das pretensões.

 

Ora, é precisamente por tais razões que se entende que, no âmbito de processo de inventário, a representação do cabeça-de- casal é incompatível com a representação de qualquer outro interessado, assim se afastando liminarmente a possibilidade de aceitação dos correspondentes mandatos por um mesmo Advogado.

 

Tal como resulta da disciplina contida nos números 3 e 4 do artigo 99.º do EOA, o advogado não pode agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito de interesses entre esses clientes bem como, se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência. Resulta, ainda, que sempre que ocorra qualquer das descritas situações, deve o advogado cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito- cfr. artigo 99.º n.º 4 do EOA.

 

No caso concreto, a Exma. Advogada pretende juntar aos autos de inventário procuração forense em representação dos requeridos e seus familiares (sogra, cunhado e marido) e também intervir como advogada em causa própria, uma vez que, assume nos referidos autos, a qualidade de esposa de um dos interessados/co-herdeiro.

 

Ora, o processo de inventário é um processo que se destina, entre outras, às funções de: pôr termo à comunhão hereditária; relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação da herança, sempre que não haja que realizar a partilha da herança, conforme determina o artigo 1082.º do CPC, designadamente nas suas alíneas a) e b).

 

Da exposição apresentada pela Sra. Advogada requerente, não resultam elementos que permitam avaliar quer da existência de quaisquer conflitos de interesses entre os interessados que a Exma. Advogada pretende representar, quer do risco de violação do dever de sigilo profissional ou de diminuição da sua independência, pelo que só a mesma estará em condições de aferir se, em concreto, ocorre qualquer das indicadas hipóteses.

Caso de tal avaliação venha a Sra. Advogada requerente a concluir pela negativa e a, consequentemente, intervir no processo como advogada em causa própria e /ou como mandatária constituída, sempre se lhe imporá um especial dever de vigilância ao longo de todo o processo, pois que, como se referiu, da eclosão de uma qualquer situação passível de originar eventual colisão ou conflito de interesses, deve resultar para a Advogada a cessação do patrocínio relativamente a todos, com a renúncia aos mandatos que lhe tenham sido conferidos e bem assim, por identidade de razões, a sua intervenção como advogada em causa própria.

Já assim não será no caso de a representação em causa ser em simultâneo do cabeça-de-casal e de outro(s) interessado(s), pois que, nos termos que acima se explicitaram, porque os interesses e a posição assumida pelo cabeça-de-casal no processo de inventário se revela indistintamente conflituante com os interesses dos demais interessados, não poderá a Sra. Advogada aceitar os respectivo(s) mandato(s).

 

Conclusão:

I.                    A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da Advocacia concerne, encontra-se regulada no artigo 99.º do EOA.

II.                  Em processo de inventário, a inexistência de conflito de interesses e a ausência de risco de violação de segredo profissional ou de diminuição de independência podem permitir, em princípio, a representação de mais do que um interessado.

III.                Se, no decorrer do processo de inventário, surgir conflito de interesses entre os interessados ou ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição de independência, deve o advogado cessar imediatamente o patrocínio de todos os interessados, renunciando aos mandatos que lhe tenham sido conferidos.

IV.                Ainda que, um Advogado que assuma a posição de interessado em processo de inventário nele possa intervir como advogado em causa própria e patrocinar, simultaneamente, outros interessados, eclodindo no processo uma situação de conflito de interesses deverá o mesmo abster-se de intervir no processo, quer em representação própria, quer dos interessados que patrocine, renunciando imediatamente a todos os mandatos que lhe tenham sido conferidos.

V.                  Dado o especial estatuto processual do cabeça-de-casal, a representação simultânea deste com a de qualquer outro interessado em processo de inventário, configura sempre uma situação de conflito de interesses, enquadrável no número 3 do artigo 99.º do EOA.

 

É este o nosso parecer.

 

Luisa Peneda Cardoso

Topo