Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 10/PP/2021-C

Parecer n.º 10/PP/2021-C

Assunto: Exercício de funções de encarregado de proteção de dados em entidade onde o seu patrono exerce funções de advogado

 

Por comunicação efetuada por correio eletrónico dirigida a este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exmª Srª. Drª. AMB…, advogada-estagiária, com escritório em  …, veio requerer que este se pronuncie sobre questão que ali coloca e que é a seguinte:

“AMB…, Advogada Estagiária portadora da cédula profissional n.º …C, tendo iniciado a segunda fase do estágio de acesso à Ordem dos Advogados no passado dia 11-06-2021, estando a realizar o mesmo sob o patrocínio do Dr. RA…, advogado com inscrição ativa na Ordem dos Advogados e portador da cédula profissional n.º …C.  

Nos últimos meses, a requerente tem vindo a dedicar-se ao estudo da temática da Proteção de dados, por gosto pessoal e face à vital importância que tal temática assumiu no panorama jurídico nacional e europeu, tanto para particulares como para as empresas. 

Atendendo ao seu interesse sobre esta temática, surgiu a oportunidade de assumir o cargo de Encarregado de Proteção de Dados na Santa Casa da Misericórdia de Leiria. 

Acontece que, o seu patrono, Dr. RA..., tem sido mandatário em alguns processos desta instituição. Sem prejuízo de a requerente nunca ter participado ou colaborado direto ou indiretamente em qualquer processo, diligência ou assunto desta instituição. 

No seguimento do parecer 14/PP/2018-G, emitido pela ordem dos advogados, onde se conclui que “Nos termos do disposto no artigo 83.º, 1, 2 e 6, do Estatuto da Ordem dos Advogados, os advogados estão impedidos de exercer a advocacia e, assim, impedidos de exercer o mandato forense ou a consulta jurídica, para entidades para quem exerçam, ou tenham exercido as funções de Encarregado de Proteção de Dados.”. e estando a requerente em fase de estágio, e querendo exercer a sua atividade com  certeza que em nenhum momento belisca qualquer norma legal ou estatutária da Ordem dos Advogados, vem requerer o vosso estimado parecer, pelo que se passa a expor os seguintes factos:  

  1. Até hoje, na realização do estágio, nunca a requerente trabalhou ou teve contacto com nenhum processo ou qualquer outra questão relativa à entidade aqui em questão; 
  2. Até á emissão deste parecer não trabalhará nem terá contacto com nenhum processo ou qualquer outra questão relativa à entidade aqui em questão, o que se manterá definitivamente caso o parecer seja favorável à assunção do designado cargo e tal se verifique; 
  3. Ou seja, não tem, nem terá acesso a informação relativa à entidade em causa no exercício do estágio, pelo que se entende que não existirá conflito efetivo entre o qualquer dever profissional, designadamente o dever de independência e isenção, exigido enquanto Advogada Estagiária e as obrigações assumidas enquanto Encarregado de Proteção de dados 
  4. Considera que esta oportunidade é fundamental para o futuro profissional, nomeadamente para o incremento das suas competências e da sua formação e, também, como forma de realização pessoal, uma vez que a assunção deste cargo permitirá trabalhar diretamente com uma temática bastante importante e atual, essencial na carreira de qualquer jovem advogado. 

No entanto, não se aceitará tal desafio que foi proposto, para ser Encarregado de Proteção de Dados da Santa Casa de Misericórdia de …, sem que a Ordem dos Advogados dê essa permissão. 

Nos termos expostos, vem requerer a emissão de parecer sobre a eventual existência de algum impedimento ou incompatibilidade entre a realização do estágio e a assunção do cargo de Encarregado de Proteção de Dados na entidade em causa.  

Refere-se ainda que a proposta para o exercício do cargo em questão não vigorará indefinidamente, existindo o compromisso de responder com a máxima brevidade possível, pelo que se realça a urgência na emissão do parecer requerido, sob pena de perda da oportunidade indicada. 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.

 

O nosso parecer é balizado pela questão concreta que nos é colocada – avaliar se existe algum impedimento ou incompatibilidade entre a realização do estágio e a assunção do cargo de Encarregado de Proteção de Dados em entidade na qual o patrono é entidade sub-contratante.

- Parecer do Conselho Geral

 

Sobre a questão de saber de uma Advogado pode ser Encarregado de Proteção de Dados (EPD) numa entidade onde exerce as funções próprias da profissão de advogado já se pronunciou o Conselho Geral através do seu parecer nº 14/PP/2018-G e no qual concluiu com a seguinte resolução:

Nos termos do disposto no artigo 83º, nº 1, 2 e 6, do Estatuto da Ordem dos Advogados, os advogados estão impedidos de exercer a advocacia e, assim, impedidos de exercer o mandato forense ou a consulta jurídica, para entidades para quem exerçam, ou tenham exercido as funções de Encarregado de Proteção de Dados.”

 

- Os deveres do advogado estagiário no EOA

 

O artigo 193º do Estatuto da Ordem dos Advogados prescreve que “Os advogados estagiários ficam, desde a sua inscrição, obrigados ao cumprimento do presente Estatuto e demais regulamentos.

 

Assim, são aplicáveis ao advogado-estagiário as normas estatutárias que regulam as incompatibidades, os impedimentos, o segredo profissional e o conflito de interesses.

 

O artigo 81º do EOA, estabelece como princípios gerais, que “o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável” e que “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar  a isenção, a independência e a dignidade da profissão” .

 

No nº1 do artigo 82º, do EOA, são enunciados, a título exemplificativo, cargos, funções e atividades que são incompatíveis com o exercício da advocacia.

 

Verificando-se uma situação de incompatibilidade, o advogado está impedido, em termos absolutos, de exercer a profissão (artigos 188º, nº 1, alínea d) e 91º, alínea d) do EOA).

 

O artigo 83º do EOA refere-se aos impedimentos, prescrevendo que estes diminuem a amplitude do exercício da advocacia e que constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica.

 

O artigo 92º do EOA impõe aos advogados o dever de guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação do seus serviços.

 

Preceitua o artigo 99º- nº 1 do EOA, no que respeita ao conflito de interesses, que “o advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária”.

 

Conforme prescreve o nº 1 do artigo 195º do EOA “O estágio visa a formação dos advogados estagiários através do exercício da profissão sob a orientação do patrono, tendo em vista o aprofundamento dos conhecimentos profissionais e o apuramento da consciência deontológica (…)”.

 

O estágio está dividido em duas fases distintas. A primeira fase, com a duração mínima de seis meses, destina-se a habilitar os estagiários com os conhecimentos técnico-profissionais e deontológicos essenciais para a prática de atos próprios da profissão. A segunda fase visa uma formação alargada, complementar e progressiva dos advogados estagiários através da vivência da profissão, baseada no relacionamento com os patronos tradicionais.

 

No que se refere às competências dos advogados estagiários, o artigo 196º do EOA, no seu nº1 dispõe que “concluída a primeira fase de estágio, o advogado estagiário pode, sempre sob a orientação do patrono, praticar alguns atos próprios da profissão: os atos próprios da competência dos solicitadores e a consulta jurídica”  e o seu nº 2 diz-nos que “o advogado estagiário pode ainda praticar os atos próprios da profissão não incluídos no número anterior, desde que efetivamente acompanhado pelo seu respetivo patrono.”

 

Importa ainda ter presente, que a deontologia profissional impõe ao advogado e, consequentemente, ao advogado estagiário certas regras de conduta nos domínios da honra, da dignidade, da integridade, da retidão, da lealdade, exigindo constantemente aos advogados e aos advogados estagiários o aperfeiçoamento da sua consciência ética, cívica, social e profissional.

 

Daí que, quando o EOA, no seu artigo 88º, sob a epigrafe “Integridade” trata do dever geral de probidade, imponha ao advogado que, enquanto servidor da justiça e do direito, se mostre, na profissão e fora dela, digno da honra e das responsabilidades que lhe são inerentes.

 

- Os deveres do Encarregado de Proteçao de Dados no RGPD

 

A figura do Encarregado de Proteção de Dados (“EPD”) ou “Data Protection Officer” (“DPO”) foi criada pelo Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE.

 

O EPD é a pessoa (ou conjunto de pessoas) que dentro de uma organização (que pode ser o responsável pelo tratamento ou um subcontratante) promove, de forma independente, o cumprimento das normas sobre proteção de dados pessoais e que zela pelo respeito pelos direitos dos titulares dos dados pessoais (arts. 37.º a 39.º, do RGPD).

 

A existência de um EPD dentro de cada organização é obrigatória em certos casos, sendo, no entanto, a sua nomeação recomendada mesmo fora destas situações.

 

Nos termos do art. 37º, n.º 5, do RGPD, o EPD “é designado com base nas suas qualidades profissionais e, em especial, nos seus conhecimentos especializados no domínio do direito e das práticas de proteção de dados, bem como na sua capacidade para desempenhar as funções”.

 

O EPD deve ser “envolvido, de forma adequada e em tempo útil, em todas as questões relacionadas com a proteção de dados pessoais” (  artigo 38.º, n.º 1, do RGPD). De acordo com o art. 39º, n.º 1, do RGPD, o EPD “tem, pelo menos, as seguintes funções: a) Informa e aconselha o responsável pelo tratamento ou subcontratante, bem como os trabalhadores que tratem os dados, a respeito das suas obrigações nos termos do presente regulamento e de outras disposições de proteção de dados da União ou dos Estados-Membros; b) Controla a conformidade com o presente regulamento, com outras disposições legais de proteção de dados da União ou dos Estados-Membros e com as políticas do responsável pelo tratamento ou do subcontratante relativas à proteção de dados pessoais (…);  c) Presta aconselhamento (…) no que respeita à avaliação de impacto sobre a proteção de dados e controla a sua realização (…); d) Coopera com a autoridade de controlo; e) Ponto de contacto para a autoridade de controlo sobre questões relacionadas com o tratamento”.

 

O EPD pode ainda ser contactado pelos “titulares dos dados (…) sobre todas as questões relacionadas com o tratamento dos seus dados pessoais e com o exercício dos direitos que lhe são conferidos pelo” RGPD (art. 38º, n.º 4 do Regulamento).

 

O EPD pode ser um trabalhador da organização “ou exercer as suas funções com base num contrato de prestação de serviços” (cf. art. 37º, n.º 6, do RGPD).

 

Os EPD “sejam ou não empregados do responsável pelo tratamento, deverão estar em condições de desempenhar as suas funções e atribuições com independência” (cf. considerando § 97 do RGPD).

 

A organização deve assegurar que o EPD “não recebe instruções relativamente ao exercício das suas funções” “não pode ser destituído nem penalizado pelo responsável pelo tratamento ou pelo subcontratante pelo facto de exercer as suas funções” (cf. artigo 38.º, n.º 3 do RGPD).

 

Nos termos do art. 38º, n.º 6 do RGPD, o EPD pode exercer outras funções e atribuições na organização desde que o exercício das mesmas não resulte num conflito de interesses com as funções inerentes a esse estatuto.

 

O EPD encontrar-se-á numa situação de conflito de interesses sempre que o exercício de uma determinada função possa comprometer a sua idoneidade para exercer as funções de EPD de forma imparcial.

 

Deste modo, o EPD não poderá exercer dentro da organização funções que envolvam a definição das finalidades ou dos meios de tratamento de dados pessoais, como também não poderá exercer funções que impliquem a aplicação das medidas técnicas e organizativas que forem necessárias para assegurar que os tratamentos de dados pessoais são realizados em conformidade com o RGPD. Compreende-se que assim seja, na medida em que estas são obrigações que competem ao responsável pelo tratamento [artigos 4.º, ponto 7), e 24.º, n.º 1, do RGPD] e cuja conformidade deve ser controlada pelo EPD [artigo 39.º, n.º 1, alínea b), do RGPD]: a fim de assegurar a sua imparcialidade no exercício das funções de EPD é necessário que sobre o EPD não recaia, simultaneamente, o ónus de cumprir as obrigações consagradas no RGPD para o responsável pelo tratamento e o ónus de fiscalizar o cumprimento de tais obrigações.

 

Sobre esta matéria, o Grupo de Trabalho do Artigo 29, abordando a questão do exercício das funções de EPD por advogado, refere que “pode igualmente surgir um conflito de interesses se, por exemplo, um EPD externo for chamado a representar o responsável pelo tratamento ou o subcontratante perante os tribunais no âmbito de processos respeitantes a questões de proteção de dados”.

 

- A questão concreta colocada pela Sra. Advogada estagiária

 

A resposta a dar à questão concreta colocada pela Sra. Advogada estagiária tem de ser dada em consonância com o Parecer nº 14/PP/2018-G do Conselho Geral, por se tratar de um parecer uniformizador, ainda que o acerto do mesmo nos suscite muitas dúvidas.

 

Tomando tal parecer como ponto de partida, temos forçamente de concluir que o advogado estagiário não deve assumir as funções de Encarregado de Proteção de Dados, numa entidade que procede ao tratamento de dados pessoais, onde o seu patrono presta serviços de advocacia, o qual pode, no âmbito da sua relação profissional com a responsável pelo tratamento de dados, tornar-se numa entidade sub-contratante (pessoa singular ou coletiva, autoridade publica, agência ou outro organismo que trate os dados pessoais por conta do responsável pelo tratamento).

 

Efetivamente, numa situação destas, o advogado estagiário, enquanto encarregado de proteção de dados (EPD), colocado perante a eventual violação de dados pessoais por parte do seu patrono, teria, forçamente, que o denunciar, por força dos seus deveres. Ora, tal não é compaginável com os deveres de integridade e lealdade prescritos no artigo 88º do EOA e colocaria em causa o prestígio da advocacia.

 

Acresce que, também no desenvolvimento de ambas as atividades, a de encarregado de proteçao de dados e a de advogado estagiário, poderá ocorrer alguma situação de conflito de interesses, isto é, o advogado estagiário poderá ter conhecimento ou até participar numa situação de violação de dados pessoais no escritório do seu patrono, vendo-se obrigado a participar tal violação, mesmo contra si próprio. Ora, para que se verifique uma situação de conflito de interesses é suficiente a mera possibilidade do mesmo vir a ocorrer, não sendo necessário que o conflito de interesses ocorra. O advogado, assim  como o advogado estagiário devem evitar colocar-se numa situação concreta de conflito de interesses.

 

Por isso, o advogado e o advogado estagiário devem evitar de forma absoluta e automática a existência de conflitos de interesses emergentes do exercício da função de advogado e de encarregado de proteção de dados (EPD).

 

Nesta medida, estamos em crer que a melhor solução é mesmo aquela que passa pelo impedimento do advogado e do advogado estagiário exercerem advocacia para entidades para quem exerçam as funções de encarregado de proteção de dados, bem como, aquela que passa por não permitir que o advogado estagiário exerça as funções de encarregado de proteção de dados numa entidade responsável pelo tratamento com quem o seu patrono tem uma relação de prestação de serviços de advocacia, seja em regime de avença ou não.

 

Ao jeito de conclusão:

    1. O advogado e o advogado estagiário não devem exercer advocacia para entidades para quem exerçam as funções de encarregado de proteção de dados.
    2. O advogado estagiário não deve exercer as funções de encarregado de proteção de dados numa entidade responsável pelo tratamento com quem o seu patrono tem uma relação de prestação de serviços de advocacia.

  

É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.

 

António Sá Gonçalves

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