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Parecer Nº 11/PP/2021-C

Parecer n.º 11/PP/2021-C

Assunto: Advogado arguido. Arquivamento dos autos. Constituição de mandatário no processo.

 

Através do ofício com a referência …, veio o Juízo Local Criminal de Viseu – Juiz 2, no âmbito do Processo nº …/18.0T9VIS, requerer que Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, se pronuncie sobre a questão que a seguir se transcreve:

 

“Conforme decorre dos autos o Dr. JNS... foi constituído arguido em sede de inquérito, conforme melhor decorre de fls. 89 a 90 dos autos, dado que a participação crime que deu origem aos presentes autos foi apresentada também contra o mesmo, nos termos e pelos fundamentos que melhor constam a fls. 2 e ss. dos autos.

No despacho final de inquérito a Digna Magistrada do MP determinou o arquivamento dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 2, do CP, relativamente à queixa apresentada contra o referido advogado Dr. JNS..., nos termos e pelos fundamentos constantes de fls. 109 a 113 dos autos, tendo deduzido a acusação, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, contra a arguida MLBG..., onde lhe imputa a prática, em autoria material, de um crime de difamação agravado p. p. pelo artº 180º, nº 1, artº 183º, nº 1, b) e artº 184º por referência deste último, pelo artigo 132º, nº 2, al. I), todos do Código Penal, e de um crime de denúncia caluniosa p. p. pelo artº 365º, nº 1 do Código Penal, pelos factos melhor descritos na acusação, a fls. 114 e ss, salientando-se aqui que na mesma é referido, além do mais, e na parte que releva, designadamente no ponto 5: “Pese embora a diligência de penhora tenha ocorrido com normalidade, posteriormente, em sede de processo de execução .../15.7T8VIS, por requerimento de 1.06.2018, veio o senhor Advogado da arguida MLBG…, o Dr. JNS…, reclamar do ato, dizendo que, o senhor agente de execução, aquando da penhora, desferiu um pontapé na porta da residência, na plácida presença dos agentes da autoridade”, descrevendo ainda nos pontos 6 e 7 outros dizeres, sendo que no ponto 8 se refere também: “Posteriormente, em 26 de Novembro de 2018, por causa destes mesmos factos, a arguida apresentou queixa contra o senhor agente de execução, através de denúncia apresentada pelo mesmo Senhor Advogado, imputando-lhe a prática de factos já vertidos na reclamação feita no processo executivo, enquadrando-se penalmente como crimes de dano, coação, introdução em local vedado ao público e violação de domicílio por funcionário”, sendo que nos termos do nº 9 se refere também; “A arguida ao contar ao seu Advogado a prática destes atos pelo agente de execução, pedindo-lhe que com base nestes reclamasse da penhora, apesar de saber que eram falsos, quis e conseguiu através das reclamação feita no processo executivo, proferir juízos de valor depreciativos da honra e consideração pessoal e profissional do queixoso, Dr. Tiago Nuno Lésico Fernandes, Agente de Execução”, sendo que nos pontos 10 e 11 se refere também à atuação da arguida através de comunicação de factos ao advogado em causa.”

Posteriormente a ter sido deduzida tal acusação e arquivamento, veio a arguida, por requerimento subscrito pelo ilustre Advogado Dr. JNS..., apresentar procuração com mandato forense nos termos constantes de fls. 164 e 165 dos autos, data a partir da qual o ilustre advogado em causa passou a patrocinar a arguida, na qualidade de advogado desta, tendo apresentado, em representação da mesma, a contestação constante de fls. 213 e ss.

(…)

No caso vertente, afigura-se existir uma dúvida fundada sobre a existência do invocado impedimento quanto ao patrocínio em questão do Dr. JNS..., em representação da arguida nos presentes autos, porquanto, tal como bem refere o ilustre mandatário do demandante e assistente, afigura-se-nos que poderá eventualmente estar aqui em causa o dever de isenção a que se alude no artigo 81º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogado, sendo certo, além do mais, e como refere também a Digna Magistrada do MP, e pese embora o ilustre advogado em causa já não seja arguido nos presentes autos, tendo o processo sido arquivado quanto ao mesmo, o certo é que tal arquivamento ocorreu ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 2, do CPP; e poderá, eventualmente, caso se venham a verificar novos elementos probatórios, ser reaberto, Além do mais, não é indiferente a forma como o Advogado dever estar despido de interesse no âmbito do patrocínio, por forma a exercer a tal isenção, e a forma como possa conduzir a estratégia de defesa, este caso da arguida, em função dos interesses desta, e não também dos seus próprios interesses, sendo certo que poderá, eventualmente, estar aqui em causa interesses que lhe possam também ser favoráveis no sentido do processo de inquérito não ser reaberto e poder assacar daí alguma responsabilidade à sua pessoa.

Nesta decorrência, afigura-se-nos, tal como o requerido e promovido, ser de suscitar a questão quanto ao referido impedimento ao respetivo Conselho Regional da Ordem dos Advogados, sendo esta uma questão prévia que importa decidir antes do início da produção de prova, e de qualquer outra questão, designadamente da outra que também foi invocada, que importa também decidir, quanto ao pedido cível.

Em face do exposto, (…), e se remeta tal certidão ao respetivo Conselho Regional da Ordem dos Advogados competente, por forma a tomar posição quanto ao impedimento invocado relativamente ao ilustre mandatário da arguida, Dr. JNS..., quanto ao patrocínio em causa nos presentes autos.”

 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.

 

O nosso parecer é balizado pela questão concreta que nos é colocada – pronunciarmo-nos sobre se o advogado constituído arguido no processo e que vê o mesmo arquivado relativamente a si, pode, posteriormente, constituir-se mandatário de arguido no mesmo processo.

 

A resposta a esta questão concreta é fácil e óbvia: o advogado constituído arguido num processo e que vê o inquérito arquivado relativamente a si, não pode constituir-se mandatário nesse mesmo processo.

 

Justificam esta resposta, não só os princípios da isenção e da independência, mas também e sobretudo, o conflito de interesses.

 

Vejamos,

 

Sob a epígrafe de “conflito de interesses”, o artigo 99º, nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), diz-nos que “O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária” (negrito e sublinhado nossos).

 

Por seu turno o 3.2-2 do Código de Deontologia dos Advogados Europeus (CDAE), diz-nos que “O advogado deve abster-se de se ocupar dos assuntos de ambos ou de todos os clientes envolvidos quando surja um conflito de interesses, quando exista risco de quebra de confidencialidade, ou quando a sua independência possa ser comprometida” (negrito e sublinhado nossos).

 

O advogado deve recusar o patrocínio quando exista ou possa vir a existir no futuro um conflito ou um risco sério de conflito de interesses entre os seus clientes ou entre o seu interesse e o dos seus clientes.

 

O escopo do conflito de interesses, estatuído no artigo 99º do EOA e no ponto 3.2 do CDAE, é o de evitar o risco sério da rota de colisão entre os interesses dos clientes, quando o determinado interesse de um é contrário ao do outro ou quando exista o risco sério de conflito entre o interesse do advogado e do cliente ou quando a independência do advogado possa ficar comprometida.

 

Com o conflito de interesses visa-se acautelar os valores da legalidade, dignidade, independência, segredo profissional, lealdade, confiança e ética.

 

As normas que preveem o conflito de interesses assumem uma tripla função:

a)      Defesa da comunidade em geral e dos clientes de um qualquer Advogado em particular, de atuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;

b)      Defesa do próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de atuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;

c)       Defesa da própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem as atuações dos advogados em situação de conflito de interesses.

 

O conflito de interesses tem de ser averiguado perante o caso concreto. Pode não existir conflito e o Advogado estar impedido de dar consulta e de aceitar o mandato forense m virtude de estar em causa a sua independência (artº 89º do EOA) ou existir um impedimento que diminua a amplitude do exercício da advocacia (artº 83º do EOA).

 

O artigo 83º do EOA diz-nos que os impedimentos diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão.

 

Como escreve Fernando Sousa Magalhães, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado e Comentado, 2017, 11ª Edição, página 121, “Os impedimentos resultam de circunstâncias concretas que devem levar os advogados a recusar o mandato ou a prestação dos serviços em função de conflito de interesses ou de simples decoro, já que o exercício da profissão deve ser livre, independente e adequado à dignidade da função.”

 

Já o artigo 89º do EOA estabelece o princípio da independência. Este princípio é, a par do interesse público, um dos pilares fundamentais da deontologia dos advogados. Segundo este princípio, o advogado, no exercício da profissão, mantém sempre e em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.

 

Como refere Carlo Lega, em “Deontologia de la Profession de Abogado”, a independência consiste na “ausência de toda a forma de ingerência, de interferência, de vínculos e de pressões, quaisquer que sejam, provenientes do exterior, e que tendam a influenciar, desviar e distorcer a ação do ente profissional.”

 

A este propósito importa ainda ter em conta o que nos diz o ponto 2.1 do CDAE:

“2.1 - 1 - A multiplicidade de deveres a que o advogado está sujeito impõe-lhe uma independência absoluta, isenta de qualquer pressão, especialmente a que possa resultar dos seus próprios interesses ou de influências exteriores. Esta independência é tão necessária à confiança na justiça como a imparcialidade do juiz. O advogado deve, pois, evitar pôr em causa a sua independência e nunca negligenciar a ética profissional com a preocupação de agradar ao seu cliente, ao juiz ou a terceiros.

2.1 - 2 - Esta independência é necessária em toda e qualquer atividade do advogado, independentemente da existência ou não de um litígio concreto, não tendo qualquer valor o conselho dado ao cliente pelo advogado, se prestado apenas por complacência, ou por interesse pessoal ou sob o efeito de uma pressão exterior.”

 

Importa ainda, na análise do conflito de interesses, ter em consideração o disposto no artigo 81º, nº 1 do EOA, que prescreve “O advogado exercita a defesa dos direitos e interesses legítimos que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.”

 

Também não podemos, nesta análise, olvidar a prescrição da alínea a) do artigo 91º do EOA que nos impõe como dever para com a Ordem dos Advogados “Não prejudicar os fins e o prestígio da Ordem dos Advogados e da advocacia”.

 

Por último, este assunto do “conflito de interesses” é do foro da consciência do Advogado, em primeira linha, e só quando o advogado não assume a sua existência é que compete aos órgãos da Ordem dos Advogados tomar posição.

 

Havendo conflito de interesses, qual a atitude que deve ter o advogado que se encontra numa tal situação?

A resposta é simples: Não deve aceitar o patrocínio ou, se já o tiver aceitado, deve renunciar ao mesmo – tudo conforme decorre do artigo 99º do EOA.

 

In casu, como bem salienta a Digna Magistrada do MP, tendo o processo de inquérito, relativamente ao Sr. Advogado Dr. JNS..., sido arquivado nos termos do nº 2 do artigo 277º do CPP, existirá, enquanto o procedimento não prescrever, a possibilidade de o mesmo ser reaberto e prosseguir os seus termos contra o Sr. Advogado. A ser assim, poderá, a nosso ver, estar em causa a independência e a isenção do Sr. Advogado na defesa da arguida MLBG....

 

Com efeito, o resultado do processo-crime em causa não é indiferente ao Sr. Advogado Dr. JNS..., o que poderá colocar em causa a forma como o Sr. Advogado defenda os interesses da sua cliente no processo.

 

Note-se que, com isto, não quer, de todo, atribuir-se ao Sr. Advogado Dr. JNS... uma qualquer intenção de conduta profissional de que possa resultar prejuízo para a sua cliente, ao ponto de, no limite, a mesma poder vir a ser condenada e dessa forma ver ser-lhe assacada a responsabilidade pela prática dos factos que se discutam naqueles autos. Todavia, afigura-se indiscutível que, pelo menos em tese, se trata de uma hipótese que não pode deixar de ser equacionada. De igual forma, não pode deixar de recordar-se que para haver conflito de interesses não é necessário que o mesmo se verifique, antes bastando a mera suscetibilidade de vir a existir.

 

Nas questões de conflito de interesses temos de fazer uso do velho ditado romano “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta.”

 

Aliás, a situação em apreço, é um dos exemplos referidos pelo Carlos Mateus, em “Limites ao Exercício da Profissão de Advogado”, Verbo Juridico, página 131, “Não poderá o Advogado ser Advogado em causa própria na qualidade de arguido, nem defender e/ou continuar a defender um arguido em processo-crime em que venha a ser constituído também arguido”.

 

Face ao supra exposto, não podemos, tal como já referimos, deixar de concluir que a posição do Sr. Dr. JNS..., como mandatário da arguida MLBG..., no processo comum singular nº .../18.0T9VIS, que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Viseu – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, configura uma situação de conflito de interesses, ao abrigo do nº 1 do artigo 99º do EOA, gerando-se assim um impedimento para o exercício do mandato forense no caso concreto (artigo 83º, nº 1 do EOA).

 

A existência do conflito de interesses no caso concreto justifica-se quer para defesa do próprio advogado Dr. JNS..., para que sobre ele não recaia a suspeita de atuar, no referido processo, em defesa de outros interesses que não os da defesa intransigente dos interesses da sua cliente, quer para defesa da própria da Advocacia, para evitar que sobre esta recaia o epíteto de falta de seriedade.

 

De resto, sempre o Sr. Advogado Dr. JNS... estaria impedido de exercer o mandato em representação da arguida no referido processo, por a tal estar impedido por força dos princípios da independência e da isenção, bem como, pelo facto de tal representação violar o dever de com a sua atuação “Não prejudicar os fins e o prestígio da Ordem dos Advogados e da advocacia”.

 

Concluindo:

  1. O advogado, no exercício da profissão, deve agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses.
  2. O advogado deve defender os legítimos interesses dos seus clientes com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.
  3. O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou quando a sua independência possa ser comprometida.
  4. O advogado deve recusar o patrocínio quando exista ou possa existir no futuro, um conflito ou um risco sério de conflito de interesses entre os seus clientes ou entre o seu interesse e o dos seus clientes.
  5. O advogado que tenha sido constituído arguido num processo de inquérito não pode assumir o patrocínio de outro arguido, mesmo que o inquérito tenha sido arquivado relativamente a si, por tal situação configurar uma situação de conflito de interesses e pôr em causa os fins e o prestígio da Ordem dos Advogados e da Advocacia.
  6. Tendo o advogado na situação referida na conclusão anterior aceitado o patrocínio deverá, de imediato renunciar ao mandato.

 

 É este, salvo melhor opinião, o meu parecer.

 

António Sá Gonçalves

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