Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 15/PP/2021-C

Parecer n.º 15/PP/2021-C

Assunto: Conflito de Interesses

 

 

Por requerimento expedido por correio electrónico em 23 de Julho de 2021, dirigido à delegação da Ordem dos Advogados de Viseu, devidamente reencaminhado ao Exmo. Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados em 26 de Julho de 2021, veio, a Exma. Senhora Dra. AM..., titular da cédula profissional nº …C, com domicílio profissional na …, solicitou a emissão de parecer, que coloca nos termos que, ipsis litteris, abaixo se transcrevem:

 

 “Somos a solicitar os vossos prezados ofícios no sentido de apreciarem a questão que infra se exporá, à luz do estatuído no artigo 99º do EOA – Conflito de interesses.

Por nomeação oficiosa datada do pretérito dia 15-11-2018, foi-nos atribuída a representação e defesa do menor IASR..., no âmbito do processo de jurisdição de menores (…/2018), o qual, todavia encontra-se em curso sob o nº de processo judicial …/17.1T8AVR-B, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Família e Menores de Viseu – J2.

O menor identificado supra é filho de TASR... e de ITSR....

Os progenitores encontram-se divorciados e desavindos, factos demonstrados e provados em sede de diligências ocorridas.

Sucede todavia que, aos 13-05-2021, por nomeação oficiosa …/2021, foi-nos atribuída a representação e defesa do progenitor, Sr. ITSR…a, em processo crime que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Competência Genérica de Oliveira de Frade, sob o nº …/20.4GAOFR, instaurado contra este, por alegada prática de crime de ofensa à integridade física qualificada, exercida sobre a progenitora Sra. TASR….

Ora, sob pena de melhor entendimento e regida estatutariamente pelo teor do artigo 99º do EOA, não se vislumbra qualquer conflito de interesse, porquanto é garantida a supremacia do princípio da independência. Isto porque, os assuntos não são conexos, os processos têm natureza distinta e não se verifica a representação ou patrocínio de qualquer parte contrária.

Os interesses do menor são acautelados com primazia, zelo, independência e sigilo profissional, independentemente de qualquer posição do progenitor, a qual é desconhecida, atentas as reiteradas faltas perpetradas ao longo do decorrer do processo de jurisdição de menores.

Não obstante, somos a solicitar e agradecer antecipadamente a vossa apreciação da presente questão, pelo que aguardaremos pelo vosso prezado parecer quanto à possível existência de conflito de interesses na situação supra exposta.”

 

 

Nos termos do disposto no artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro (doravante por uma questão de facilidade de exposição designado abreviadamente por EOA), compete aos Conselhos Regionais a pronúncia abstracta sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua circunscrição territorial.

Com efeito, conforme entendimento unânime da Ordem dos Advogados, as questões de carácter profissional são todas as que assumem natureza estatutária, resultantes do conjunto de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas do Estatuto, bem como, de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido à Ordem dos Advogados.

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Regional configura, precisamente, uma questão de carácter profissional, atinente à existência de eventual conflito de interesses, pelo que, cumpre assim, emitir o parecer solicitado.

A questão colocada pela Advogada Requerente é subsumível ao denominado “Conflito de Interesses”, regido estatutariamente no artigo 99º do EOA, cuja consagração resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade e constitui expressa manifestação do principio geral estatuído no artigo 89º do EOA, de acordo com o qual “O Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros. ”

Com efeito o Advogado, no exercício da respectiva profissão está de modo inabalável vinculado ao rigoroso cumprimento dos deveres plasmados no EOA, impondo-se a sua escrupulosa observância de molde a assegurar e garantir a dignidade e prestígio da profissão.

O artigo 208º da Constituição da República Portuguesa e artigo 88º do EOA estabelecem a essencialidade do Advogado à Administração da Justiça, atribuindo-lhe um conjunto de direitos e deveres para alcançar tal desígnio. O Advogado enquanto parte integrante e essencial à Administração da Justiça deve assumir um “comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem”.

A advocacia é uma actividade de natureza liberal, mas que prossegue um notório e determinante interesse público o que lhe confere relevância social.

E na senda do interesse público da advocacia que surge o instituto do conflito de interesses, como imperativo de defesa da comunidade em geral, da irrefutável independência do Advogado no exercício da profissão, mesmo em relação aos clientes e aos seus próprios interesses, da defesa do sigilo profissional na medida em que, num juízo de prognose, algumas situações proibidas no exercício da profissão, poderiam fazê-lo perigar. Salienta-se, ainda, a confiança, decoro e lealdade que tem de existir entre advogado e cliente, como pressupostos do exercício do mandato forense.

                O conflito de interesses, como já se referiu, radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, apelando, numa primeira linha, à consciência profissional do Advogado, ao seu decoro e dignidade profissional, devendo o advogado, em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de conflito de interesses dos seus clientes.

                A propósito dos deveres impostos ao Advogado nas relações estabelecidas com os seus clientes, dispõe o artigo 99º do EOA sobre as situações concretas em que este deve recusar o patrocínio face à iminência ou mera possibilidade de ver diminuída a respectiva independência, confiança, lealdade ou mesmo contender com o dever de guardar sigilo profissional.

                Assim o advogado deve recusar ou abster-se de aceitar o patrocínio sempre que se verifique qualquer uma das situações elencadas no artigo 99º do EOA, que a seguir se transcreve:

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

               

                O preceito legal supra citado elenca algumas das situações em que o dever de recusa do patrocínio se impõe, não porque em concreto e no imediato se verifique a existência de conflito de interesses, mas porque, objectivamente, tais situações se afiguram potenciadoras desse conflito.

                Ora, sendo à luz do normativo citado que deve ser encontrada a situação do caso vertente, antecipa-se, desde já, que se afigura a existência de uma situação de conflito de interesses.

                Nos exactos termos decorrentes do supra citado dispositivo, o advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária. Prosseguindo o nº 5 do mesmo normativo que o advogado se deve abster de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

 

Vejamos:

 

No caso que nos ocupa a Ilustre Colega foi nomeada oficiosamente para representação e acompanhamento do menor IASR... no âmbito de um processo judicial de promoção e protecção de menores.

Conforme preceitua o artigo 3º, nº 1 da Lei nº 147/99 de 1 de Setembro com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 142/2015 de 8 de Setembro, “A intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança (…)”, encontrando-se elencadas, a titulo exemplificativo, no nº2 do mesmo artigo, as circunstâncias em que se considera que a criança ou jovem está em perigo, salientando-se por maioria de razão a causa descrita na alínea f), que determina que uma criança ou jovem se encontra em perigo sempre que está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional, como seja, a eventual e alegada violência integradora do crime de ofensas à integridade física qualificada – processo em curso no qual se verificou a nomeação oficiosa  da Ilustre Colega consulente para defesa e representação do progenitor.

Atenta a circunstância de apenas existir intervenção judicial em processos desta natureza nas situações elencadas no artigo 11º do supra citado diploma legal nos quais ao abrigo do nº 2 do artigo 103º da Lei 147/99 de 1 de Setembro com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 142/2015 de 8 de Setembro, “É obrigatória a nomeação de patrono à criança ou jovem quando os seus interesses e os seus pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto sejam conflituantes (…)”, será forçoso concluir pela clara e óbvia existência de conexão entre todas as situações descritas pela Advogada consulente.

Perante o exposto, e prescindindo de maiores considerandos, dúvidas não restam que a situação descrita pela advogada requerente cai invariavelmente nas previsões contidas no nº 1, 3 e 5 do artigo 99º do EOA, que impedem que ao ser nomeada patrona oficiosa de um menor no âmbito de um processo para promoção e protecção de menores, possa aceitar simultaneamente, nomeação oficiosa para representação do progenitor do menor em processo de natureza criminal com origem em queixa da progenitora do mesmo menor pela prática do crime de ofensas à integridade física qualificada, não só porque objectivamente se verifica uma inequívoca conexão entre os intervenientes e causas, mas também, porque abstractamente a situação reportada de per si, configura-se potenciadora da violação dos devedores deontológicos por parte da advogada requerente.

 

Ora, o Advogado deve estar, sempre e em qualquer circunstância, acima de qualquer suspeita, garantindo o cumprimento dos deveres de isenção, independência, salvaguarda do dever de sigilo profissional, decoro, probidade e dignidade da profissão, razão pela qual a advogada requerente terá de requerer a respectiva escusa no âmbito da segunda nomeação oficiosa.

 

 

Conclusão:

 

  1. O Advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, caso exista conflito entre os sobreditos clientes ou representados.
  2. Um advogado deve abster-se de representar o progenitor de um menor em processo de natureza criminal com origem em queixa da progenitora pela prática de crime de ofensas à integridade física qualificada, quando represente ou tenha representado esse menor em processo de promoção e proteção de menores, por tal representação consubstanciar um conflito de interesses ao abrigo do disposto nos nºs 1, 3 e 5 do artigo 99º do EOA.
  3. Na eventualidade de a situação conflituante se verificar em momento posterior o Advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, impondo-se desse modo, não só o dever de o Requerente não aceitar a nomeação de uma das partes como fazer cessar a representação previamente existente;
  4. De acordo com o estabelecido no nº 4 do artigo 99º do EOA, perante uma situação de conflito de interesses, o advogado terá de cessar os patrocínios que no caso em apreço advêm de nomeações oficiosos.

 

É este salvo melhor entendimento o nosso parecer,

 

Sandra Gil Saraiva

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