Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 14/PP/2021-C

Parecer n.º 14/PP/2021-C

Assunto: Consulta Jurídica gratuita a prestar no âmbito de contrato de avença a celebrar com um Município;

 

 

Por requerimento dirigido ao Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, expedido por mensagem de correio electrónico datada de 14 de Julho de 2021, o Exmo. Senhor Dr. ASC…, Advogado, titular da cédula profissional nº …L, com domicílio profissional no …, solicitou junto deste Conselho Regional a emissão de parecer sobre duas questões distintas, ambas enquadráveis na previsão contida no artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro (doravante designado abreviadamente por EOA).

Ao abrigo da sobredita norma, este Conselho Regional é material e territorialmente competente para se pronunciar sobre questões de carácter profissional, onde se enquadram as questões de foro deontológico, suscitadas, in casu, pelo Advogado Requerente.

Após análise perfunctória do pedido formulado pelo Ilustre Advogado, foi o mesmo cindido em dois pareceres distintos, versando o presente sobre a factualidade que ipsis litteris se transcreve:

 

“23. O advogado signatário foi recentemente abordado por parte de uma entidade pública para celebração de um contrato de avença para prestação de serviços de representação e aconselhamento jurídico por parte deste advogado.

24. Sendo que, no seio dessa primeira abordagem, e explicado os departamentos a que o ora signatário prestaria maior assistência, surgiu a ideia de incluir nos serviços da referida avença, a prestação de consulta jurídica gratuita aos cidadãos abrangidos pelo escopo de competência da referida entidade pública. (Sendo certo que se está a ponderar que tais consultas ocorram apenas numa ocasião por mês, mediante inscrição/marcação prévia dos interessados).

25. Ideia essa que tem total apoio do ora signatário, que teria todo o prazer em empregar os seus melhores esforços para que tais consultas fossem de maior proveito para os seus beneficiários.

26. Aliás, é com o mesmo prazer que o ora signatário participa no Sistema de Apoio Judiciário desta Ordem.

27. No entanto, tem o ora signatário, algumas reservas, a saber:

a) Estará o ora signatário a praticar alguma forma de concorrência desleal para com os demais colegas ao prestar consultas jurídicas de forma gratuita no seio da referida consulta?

b) Poderá o ora signatário, em respeito pelas regras deontológica, vir a assumir o mandato relativamente às questões sobre as quais preste consulta jurídica de forma gratuita no seio da referida avença?

28. O ora signatário não vislumbra no Estatuto da Ordem dos Advogados nenhuma norma de cariz deontológico ou outro, que seja incompatível com as referidas consultas jurídicas.

29. De toda a forma, porque para o ora signatário é de suma importância certificar-se que age de acordo com os melhores parâmetros éticos e deontológicos.

30. Pelo que, humildemente solicita o parecer de V.Exas.

31. O que faz com urgência, uma vez que, a questão sub judice está intrinsecamente conexa com a avença que ora se estabelece.

32. Sendo que a demora do ora signatário em dar resposta a esta questão poderá fazer perigar a continuação da negociação do referido contrato de avença.

Termos nos quais, mui respeitosamente se requer a V.Exa., com urgência, se digne a determinar a emissão do respectivo parecer sobre uma eventual situação de incompatibilidade deontológica do ora signatário no provimento de consultas jurídicas de forma gratuita, nos termos supra expostos, de acordo com os Estatuto da Ordem dos Advogados.”

 

Cotejado o pedido formulado, conclui-se que o Exmo. Senhor Advogado Requerente nada refere quanto à tipologia jurídica da entidade pública com a qual se encontram em curso conversações para celebração de contrato de avença, no âmbito do qual prestaria serviços de representação e aconselhamento jurídico. Ora, como a seguir se demonstrará, tal elemento afigura-se essencial para a emissão de pronúncia deste Conselho Regional, motivo pelo qual, por despacho exarado pelo Exmo. Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra, o Advogado consulente foi notificado em 19 de Julho de 2021, para esclarecer o supra expedido. Em 2 de Agosto de 2021, o Advogado requerente veio informar este Conselho Regional o que segue:

 

“Concretamente quanto ao esclarecimento por V.Exa. solicitado, cumpre-me mui respeitosamente informar V.Exa. que a entidade pública se trata de um Município cuja actuação é especialmente reguladas pela Lei 75/2013 de 12 de Setembro, entre toda uma vasta panóplia de diplomar, como V.Exa. melhor saberá que o ora signatário”

 

Em face dos esclarecimentos prestados pelo Advogado consulente, encontra-se este Conselho Regional munido dos elementos essenciais, pelo que, cumpre emitir o parecer solicitado.

A questão submetida à apreciação deste Conselho Regional reconduz-se, em suma, a temática já anteriormente colocada perante este Conselho Regional, relativa à prestação de consulta jurídica no âmbito de contrato de avença a celebrar com uma Câmara Municipal, ou seja, à admissibilidade da prática da actividade de aconselhamento jurídico que consiste na interpretação e aplicação de normas jurídicas, mediante solicitação de terceiros, nos exactos termos definidos pelo artigo 3º da Lei nº 49/2004 de 24 de Agosto – Lei dos Actos Próprios dos Advogados e Solicitadores (doravante por facilidade de exposição designada abreviadamente por LAPAS).

A propósito da questão colocada pronunciou-se este Conselho Regional de modo relevante, designadamente, nos pareceres 06-PP-2013-C e 24/PP/2018-C[1], relatados pela Ilustre Colega Graziela Antunes, que pela sua proficiência e completude aqui seguimos de perto.

Conforme preceitua o artigo 1º, nº 5, alínea b) da LAPAS, a consulta jurídica integra com exclusividade o elenco dos actos próprios dos Advogados e Solicitadores, que só pode ser praticada pelos licenciados em direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados ou na Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução.

Mais se esclarecendo que os Actos reservados aos Advogados apenas podem ser praticados por Advogados ou Solicitadores, nas circunstâncias em que tais serviços sejam prestados de forma isolada ou integrados em escritórios ou gabinetes compostos exclusivamente por Advogados, por Solicitadores, por Advogados e Solicitadores, sociedades de Advogados e sociedades de Solicitadores ou gabinetes de consulta jurídica organizados pelas respectivas Ordens Profissionais. (cfr. artigo 6º, nº 1 da LAPAS).

Fora dos casos previstos pela norma a que alude o parágrafo anterior é expressamente proibido o funcionamento de gabinete, constituído sob qualquer forma jurídica, que preste serviços a terceiros que integrem a esfera de competência dos actos próprios reservados aos Advogados e Solicitadores.

De facto, existem, excepções a este princípio geral, admitindo-se, a possibilidade dos sindicatos, associações patronais, juristas de reconhecido mérito, mestres e doutores em direito, devidamente inscritos na Ordem dos Advogados, prestarem aconselhamento jurídico, desde que, cumpridos os condicionalismos previstos no nº 3 do artigo 6 do citado diploma legal, ou seja:

1)      Desde que os actos praticados o sejam para defesa exclusiva dos interesses comuns em causa e, como tal, nunca para defesa de interesses pessoais ou particulares;

2)      Desde que sejam exercidos por Advogado, Advogado estagiário ou Solicitador;

 

Mais prescreve o artigo 6º, nº 4 da LAPAS, que tais actos podem ser prestados por entidades sem fins lucrativos que requeiram o estatuto de utilidade pública e, ainda assim, desde que:

1)      No pedido de atribuição de utilidade pública requeiram especifica e concretamente autorização para a prática de actos próprios acometidos aos Advogados e Solicitadores;

2)      Os actos praticados sejam para defesa exclusiva dos interesses comuns em causa;

3)      Que tais actos sejam exercidos individualmente por Advogado, Advogado Estagiário ou solicitador;

 

Sucede que, calcorreada a legislação aplicável, designadamente a Lei nº 75/2013 de 12 de Setembro (Regime Jurídico das Autarquias Locais), com as sucessivas alterações que lhe foram introduzidas, constata-se que, em circunstância alguma se prevê no elenco das competências próprias atribuídas à Câmara Municipal, a possibilidade de criação de gabinetes de consulta jurídica ou de promoção da prestação de consulta jurídica.

De igual molde a LAPAS não consagra qualquer excepção onde caiba a possibilidade de uma Autarquia Local proceder à criação e instalação de gabinetes de consulta jurídica, sendo inequívoco que a eventual criação e existência de um gabinete desta natureza nos moldes transmitidos pelo Advogado consulente, configuraria uma violação do aludido diploma, enquadrando uma ilegalidade tipificada como procuradoria ilícita.

Destarte conclui-se que, na medida em que a consulta jurídica que o Advogado Requerente prestaria no Município, ao abrigo do conjecturado contrato de avença, configuraria a constituição de um gabinete de consulta jurídica, inadmissível face à legislação aplicável, não pode o Advogado consulente prestar tal serviço, sob pena de incorrer na prática de um crime de procuradoria ilícita previsto e punido pelo artigo 7º da LAPAS.

Não olvidando que nem todos os cidadãos dispõem de condições sócio económicas que lhe permitam recorrer a um Advogado pagando os respectivos honorários, e de molde a concretizar o direito constitucional plasmado no artigo 20º, nº2 da Constituição da República Portuguesa, mediante o qual “todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consultas jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por Advogado perante qualquer autoridade”, como é consabido, procedeu-se a criação do Sistema de Acesso ao Direito, compreendendo as modalidades de informação jurídica e protecção jurídica, colmatando, deste modo, as situações de carência económica, salvaguardando em simultâneo o respeito pelos direitos fundamentais de todos os cidadãos.

Concatenados todos os fundamentos expostos, e sem ignorar a inequívoca necessidade de protecção dos próprios Advogados, bem se compreende, a proibição prevista na LAPAS, no que à prestação de consulta jurídica respeita.

Considerando a precedente pronúncia quanto à primeira das questões colocadas, considera-se prejudicada a análise e resposta à segunda questão formulada pelo Sr. Advogado requerente.

 

Conclusão:

 

  1. A prática da consulta jurídica, nos termos definidos no artigo 1º, nº 5, alínea b) da Lei nº 49/2004 de 24 de Agosto, constituiu um acto próprio reservado à profissão de Advogado ou Solicitador;
  2. A consulta jurídica só pode ser exercida por Advogado ou Solicitador, quando os serviços sejam prestados, de forma isolada ou integrados em escritórios ou gabinetes compostos exclusivamente por advogados, solicitadores, advogados e solicitadores, sociedades de advogados e sociedades de solicitadores, bem como por gabinetes de consulta jurídica organizados pela Ordem dos Advogados e pela Ordem dos Solicitadores;

3.     O regime jurídico das autarquias locais não atribuiu competências às Câmaras Municipais para criação de gabinetes de consulta jurídica ou de promoção da prestação de consulta jurídica.

  1. A prestação de consulta jurídica nos moldes gizados pelo Advogado consulente não integra nenhuma das excepções previstas na LAPAS, pelo que, a ocorrer constituíra uma forma de prática ilícita de actos próprios de Advogado;

  

É este salvo melhor entendimento o nosso parecer,