Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 16/PP/2021-C

Parecer n.º 16/PP/2021-C

Assunto: impedimentos – assunção de patrocínio como advogado constituído de arguido acusado da prática de crime de denúncia caluniosa por depoimento prestado em julgamento enquanto testemunha da acusação em audiência de julgamento de processo-crime no qual patrocinava dois arguidos

 

Por comunicação efetuada por correio dirigida a este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados e recebida a 02/08/2021, vem a Exmª Srª. Procuradora da República, Sra. Dra. APG…, em funções no Departamento de Investigação e Ação Penal - 2ª secção de …, titular do processo de inquérito nº …/21.8T9STR, requerer que este se pronuncie sobre questão que ali coloca e que é a seguinte:

 

“Solicita-se a V. Ex.ª que, se pronuncie sobre a regularidade do mandato forense no âmbito dos presentes autos, no qual a ora arguida NSCR… constitui sua advogada a Dra. SDR…, nomeadamente, sobre se, em face dos elementos juntos aos autos, existe impedimento da Dra. SDR... para representar a ora arguida NSCR... nos presentes autos, atenta a dúvida suscitada nos autos.”

 

O pedido formulado veio acompanhado de diversos documentos e certidões, bem como, com um CD da gravação da audiência de julgamento e a respetiva ata.

 

Analisada a documentação junta aos autos e ouvido o CD com a gravação da audiência de julgamento podemos extrair com interesse para a emissão deste parecer os seguintes factos:

1.       A Sra. NSCR... foi testemunha no processo nº …/18.7PAABT (processo comum coletivo), arrolada pelo Ministério Público;

2.       A Sra. Dra. SDR... é mandatária constituída, nos mesmos autos, dos arguidos MC… e JC…, aos quais é imputada a prática de 1 crime de tráfico de estupefacientes.

3.       No decurso da audiência de julgamento a Sra. Procuradora da República determinou a detenção da testemunha NSCR... em flagrante delito por denúncia caluniosa.

4.       Corre termos pela 2ª Secção de Leiria, do Departamento de Investigação e Ação Penal, junto da Comarca de Leiria, um processo sumário – nº …/21.8T9STR - em que é arguida a Sra. NSCR....

5.       Neste processo sumário, a arguida Sra. NSCR..., constituiu como mandatária a Sra. Dra. SDR....

6.       Neste processo sumário, a Sra. Procuradora pronunciou-se no sentido da existência de um conflito de interesses com a defesa da arguida em virtude de a Sra. Dra. SDR... ser mandatária constituída no processo ../18.7PAABT.

7.       Da audição da gravação da audiência de julgamento do processo …/18.7PAABT podemos constatar que a arguida Sra. NSCR... declarou não conhecer os arguidos representados pela Sra. Dra. SDR....

8.       Da audição da gravação da audiência de julgamento do processo …/18.7PAABT podemos constatar que a arguida Sra. NSCR..., em momento algum do seu depoimento, se referiu aos arguidos representados pela Sra. Dra. SDR....

9.       Daquela mesma audição resulta que a detenção da Sra. NSCR... resultou do facto de esta ter afirmado que o que se mostrava vertido no auto de declarações por si prestadas em sede de inquérito não corresponde ao que por si foi dito no ato, mas ao que o Sr. Procurador que presidiu à diligência entendeu fazer constar.

 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.

 

Importa, desde já, referir e no que respeita ao primeiro dos enquadramentos legais feitos no âmbito do presente, que nos revemos no Parecer nº 13/PP/20218-C, da autoria da Sra. Conselheira Dra. Maria Ana Henriques e aprovado em sessão do Conselho Regional de Coimbra.

 

De facto, a nosso ver, não há, à partida, qualquer impedimento legal à assunção do patrocínio da arguida Sra. NSCR..., pela Sra. Dra. SDR..., no processo em que a esta é imputada a prática de denúncia caluniosa, por força do depoimento por si prestado no processo nº …/18.7PAABT, no qual a Sra. Dra. SDR... é mandatária de dois arguidos.

 

O único impedimento legal em que o Advogado não pode patrocinar o arguido e a testemunha vem previsto no nº 5 do artigo 132º do Código de Processo Penal, mas para que tal impedimento se verifique é preciso que o advogado esteja a patrocinar o arguido e a testemunha, em simultâneo, no mesmo processo.

 

De resto, a propósito de conflito de interesses, o Estatuto da Ordem dos Advogados, no seu artigo 99º, diz-nos o seguinte:

 

1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

(...)

5- O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

No contexto objetivo supra relatado, a testemunha no primeiro processo, a Sra. NSCR..., não é “parte” no mesmo, nem os arguidos que aí defendeu a Sra. Dra. SDR..., são “parte” contrária daquela.  

Assim, não sendo a testemunha em causa considerada parte no primeiro processo, onde a Sra. Dra. SDR... patrocinou dois arguidos, não podemos deixar de concluir pela inexistência objetiva de qualquer impedimento previsto nos nºs 1 e 2 do artigo 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Posto isto, importa agora verificar se ocorre a situação de conflito de interesses prevista no nº 3 do mencionado artigo 99º do EOA.

O nº 3 do mencionado artigo, ao dispor que “O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes”, reforça os nºs 1 e 2 que o antecedem, mas acrescenta-lhe uma avaliação subjetiva no seu segmento “(…) se existir conflito entre os interesses desses clientes”. Ou seja, no caso do nº 3, o Advogado tem de fazer uma avaliação subjetiva para concluir pela existência de conflito entre os dois clientes.

O nº5, por seu turno, estabelece que “O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.”

Ora, numa avaliação objetiva feita com base dos elementos disponíveis e exaustivamente analisados extrai-se, com absoluta segurança, que o objeto dos dois processos no âmbito dos quais a Sra. Dra. SDR... foi constituída mandatária – e bem assim as questões que neles se discutem - é distinto, e que não existe entre os mesmos qualquer conexão. Por outro lado, não se extrai que a identificada Sra. Advogada tenha tido conhecimento de factos de que possa resultar vantagem ilegítima ou injustificada para a nova cliente - a arguida NSCR... -, razão pela qual podemos afirmar que nada impede que a Sra. Dra. SDR... assuma o patrocínio da arguida NSCR..., em processo onde à arguida é imputada a prática do crime de denúncia caluniosa, decorrente do depoimento por esta prestado em audiência de julgamento, enquanto testemunha da acusação, e no qual a Sra. Dra. SDR... patrocinava dois dos arguidos.

Em jeito de conclusão final, diremos que não existe qualquer conflito de interesses na assunção deste novo patrocínio por parte da Sra. Dra. SDR....

Refira-se que, à semelhança do que rege para os demais deveres deontológicos previstos no Estatuto, releva, sempre, a consciência individual do advogado, que, colocado perante uma situação concreta, deverá avaliar e decidir se a sua independência e autonomia estão ou não comprometidas, se existe risco de violação do segredo profissional ou de existência de conflito de interesses que ditem uma decisão de recusa do patrocínio; cabendo-lhe, assim, numa primeira fase, prévia à aceitação do mandato ou à prestação de serviços, avaliar, à luz do Estatuto, a existência uma situação que possa gerar algum tipo de incompatibilidade, de impedimento ou de conflito de interesses.

 

Conclusões:

1.    Não há impedimento objetivo na assunção de patrocínio de arguido que, por força das declarações prestadas em audiência de julgamento enquanto testemunha de acusação, praticou alegado crime de denúncia caluniosa quando nesse julgamento o Advogado patrocinara dois arguidos acusados do crime de tráfico de estupefacientes.

2.    Seja qual for o processo, uma testemunha que ali assuma tal qualidade, não é parte no processo, pelo que o Advogado que naquele intervenha não está impedido de se constituir mandatário dessa testemunha noutro processo.

3.    Nas circunstâncias descritas, o Advogado deve verificar se, em concreto, existe conflito de interesses entre o arguido que patrocinou e os interesses do arguido que pretende patrocinar, seja pelo facto de o objeto dos dois processos e as questões que neles se discutem serem as mesmas, seja por, entre os mesmos, existir conexão, seja, ainda, pelo facto de o Advogado ter tido conhecimento de factos de que possa resultar vantagem ilegítima ou injustificada para o novo cliente.

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso parecer.

 

António Sá Gonçalves | Teresa Letras

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