Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 19/PP/2021-C

Parecer n.º 19/PP/2021-C

Assunto: Conflito de interesses – advogado arrolado como testemunha na petição pode subscrever a contestação?

 

Por comunicação efetuada por correio dirigida a este Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados e recebida a 16/11/2021, vem a Exma. Sra. Juíza de Direito, Sra. Dra. CSR…, em funções no Juízo de Comércio de … – Juiz 3, titular do processo nº …/20.3T8STR, requerer que este se pronuncie sobre questão que ali coloca e que é a seguinte:

 

 ”Atentos os factos alegados pelo requerente na petição inicial, com cópia da mesma e dos documentos que a acompanham, do documento junto em 07/07/2020, da contestação de 07/12/2020 e documentos que a acompanham, requerimento de 28/12/2020, resposta de 05/05 (Ref….201) e requerimento de 11/10, solicite ao Senhor Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, emissão de parecer no sentido de ser esclarecido se, no caso concreto:

            - se verifica conflito de interesses na aceitação do mandato para representar os requeridos por parte da Exma. Senhora Dra. SJM..., considerando, para além do mais, o teor da acusação proferida contra si no âmbito do Proc. …/17.9T9ABT, a correr termos no Juízo Central Criminal de… - Juiz 2 (em que é assistente o aqui requerente) e, bem assim, a localização do seu escritório na sede da sociedade requerida:

           - se constando na petição inicial a sua indicação como testemunha do autor, a aceitação de mandato por parte da Exma. Senhora Advogada viola regra deontológica a que se encontra sujeita.”

 

O pedido formulado veio acompanhado dos diversos documentos referidos no despacho supra transcrito.

 

Analisada a documentação junta aos autos, podemos extrair com interesse para a emissão deste parecer o seguinte:

1.      Da petição inicial do processo nº …/20.3T8STR

a.      Tratar-se de uma ação especial com vista à suspensão e destituição da gerente (RMLL…) da sociedade comercial por quota denominada “BI…, Lda.” em que é autor RPMBN... e réus a dita gerente e a própria sociedade, na qual são imputados factos à ré RMLL… que, na opinião do autor, são suscetíveis de determinar a sua suspensão do cargo e a sua destituição.

b.      Ter sido arrolada como testemunha a Sra. Advogada Dra. SJM....

 

2.      Da contestação do processo nº …/20.3T8SR

a.      Junção pelas rés de cópia de relatório de exame médico legal efetuado no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais que correu termos pelo Juízo de Família e Menores de Lisboa – Juiz 3, sob o processo nº …/15.8T8LSB-A, no qual era interveniente, enquanto pai, o autor RPMBN....

b.      Junção pelas rés de cópia da decisão sumária proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, no processo nº …/16.3SFLSB.E1 – secção criminal, onde foi arguido RPMBN..., acusado pela prática de um crime de abuso sexual de menores agravado.

c.       As rés são representadas pela Sra. Advogada Dra. SJM....

 

3.      Do Processo nº …/17.9T9ABT

a.      Junção do despacho de arquivamento e acusação, no qual é assistente RPMBN… e arguida a Sra. Advogada SCJSM..., que usa o nome abreviado SJM..., e do qual consta que a arguida representou o assistente nos processos referidos nas alíneas a) e b) do número antecedente.

 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo às questões colocadas.

 

A propósito de conflito de interesses, o Estatuto da Ordem dos Advogados, no seu artigo 99º, diz-nos o seguinte:

1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessrá de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5- O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 – Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.

Conforme se refere no Parecer nº 28/PP/2020-C, do Conselho Regional de Coimbra, relatado pela Exma. Conselheira Sra. Dra. Luis Peneda Cardoso, “à luz do enunciado normativo, as situações previstas nos números 1 e 2 determinam que o advogado deve recusar o patrocínio:

- De questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;

- De questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;

- De questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

Resulta ainda do nº 3 do citado artigo que o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

Por outro lado, dispõe o nº 4 que, se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como, se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

Segundo o n.º 5, o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, procurando-se, assim, defender a comunidade e os clientes dos advogados em especial, de atuações ilícitas destes, conluiados ou não, com outros clientes, bem como, defender o advogado da hipótese de sobre ele recair a suspeita de uma atuação visando qualquer outro fim, que não a defesa intransigente dos direitos e interesses do seu cliente.”

Refere-se ainda naquele Parecer que “A referida norma funda-se em razões de preservação dos valores da lealdade, isenção, independência, confiança e, mesmo, decoro, fundamentais no exercício da advocacia.

Lê-se ainda no referido parecer que: “No entanto, a matéria do conflito de interesses é também uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe, pois, avaliar se o novo mandato não o impedirá de exercer, de forma livre e sem quaisquer constrangimentos, a sua atividade, conforme exigido pelas normas ínsitas no Estatuto Profissional.”

É, pois, à luz destes normativos e desta interpretação que deve ser encontrada a solução para o caso em apreço.

Refira-se, ainda, que finalidade prevista no artigo 99.º do EOA é evitar o risco sério, ainda que apenas potencial, do conflito de interesses dos clientes do advogado, quando o interesse de um é contrário ao interesse de outro.

Respondendo às questões concretas colocadas pela Sra. Magistrada titular do processo nº …/20.3T8STR, e no contexto objetivo supra relatado, desde já, avançamos que o advogado que é indicado como testemunha na petição não está, por regra, impedido de subscrever a contestação desse mesmo processo.

Com efeito, o facto de o autor arrolar como testemunha um advogado, não pode, com exceção das situações a coberto do disposto no artigo 99º do EOA, impedir esse advogado de aceitar mandato para contestar a ação onde foi arrolado como testemunha. Interpretação contrária levaria, no seu limite, à possibilidade de o autor impedir que certo e determinado advogado, ou até mais do que um, pudesse subscrever contestação da ação por si proposta, o que sempre violaria o princípio da livre escolha de advogado. Daí que não se possa acolher a ideia de que indicado como testemunha do autor num determinado processo, o advogado está, sem mais, impedido de ser advogado do réu nesse mesmo processo.

Já o contrário merece, obviamente, resposta diferente: constituído mandatário no processo, o advogado não pode depor como testemunha nesse mesmo processo.

Neste sentido, encontramos vasta doutrina e jurisprudência da OA no sentido de que um advogado não pode ser testemunha num processo onde está ou já esteve constituído como mandatário.

A jurisprudência da Ordem assenta, designadamente, na posição do Senhor Bastonário Augusto Lopes Cardoso (Do Segredo Profissional na Advocacia, ed. Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, a pp. 82 e 83), expressa na vigência do EOA aprovado pelo DL nº 84/84, de 16 de março, que sob o expressivo título “depoimentos sempre proibidos”, refere o seguinte:   “Deverá deixar-se bem claro que é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído. É que, embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia.  Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a ação, as principais condicionantes do seu decurso. Se o seu depoimento veio a tornar-se necessário, muito mal estruturou o seu trabalho e não pode já emendar a mão. A absoluta necessidade não pode resultar, nesse caso, do modo como foi proposta a ação e antes deve ser aferida objetivamente.  Isto também se aplica a outro tipo de situações que na essência não diferem da que analisámos. Referimo-nos a que não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trata de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que em antes ocupara.”

 

Também Orlando Guedes da Costa, no seu “Direito Profissional do Advogado”, Almedina, 3ª edição, 2005, a p. 342, escreveu:  “Cumpre salientar que nunca pode ser autorizado o depoimento de Advogado em processo principal ou em processo apenso, em que esteja ou tenha sido constituído mandatário judicial, mesmo depois de substabelecer sem reserva ou de renunciar ao mandato, pois quem é ou foi participante na administração da Justiça, como decorre do art. 6.º - nº 1 da LOFTJ, em determinado processo, não pode nele ser testemunha, como igualmente não pode o advogado aceitar mandato em processo em que já tenha intervindo em outra qualidade, como impõe o art. 94.º - nº 1 do EOA.”

Posto isto, importa agora verificar se ocorre a situação de conflito de interesses quanto à segunda questão colocada pela Sra. Magistrada titular do processo …/20.3T8STR e que, em suma, consiste em saber se a Sra. Advogada, que é arguida num processo-crime em que é assistente o autor desta ação nº …/20.3T8STR, pode subscrever a contestação e representar os réus.

Esta segunda questão, a nosso ver, não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas nos números 1, 2, 3 e 4 do mencionado artigo 99º do EOA.  Efetivamente, tendo em consideração as circunstâncias fácticas trazidas ao nosso conhecimento, não estamos perante uma questão em que a Sra. Advogada, Dra. SJM..., tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou que seja conexa com outra que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

Também não estamos perante uma situação em que a Sra. Advogada supra referida represente a parte contrária noutra causa pendente, nem perante uma situação de aconselhamento, atuação ou representação de dois clientes sobre o mesmo assunto ou assunto conexo em que exista conflito de interesses desses clientes, ou ainda, perante uma situação em que possa existir ou possa surgir um conflito de interesses entre dois ou mais clientes da Sra. Advogada visada, que possa pôr em causa o segredo profissional ou implique diminuição da independência da Sra. Advogada, pelo que, a resposta a dar à pergunta formulada também seria negativa.

Sucede, porém, que, conforme prescreve a segunda parte do nº 5 do artigo 99º do EOA, o advogado está obrigado a não aceitar o patrocínio de um novo cliente quando, do conhecimento dos assuntos de um outro anterior cliente, possam resultar vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo.

Analisada a situação em causa, não podemos olvidar que a Sra. Advogada, a instruir a contestação por si subscrita, usou diversos documentos extraídos de processos onde representou o Sr. RPMBN..., ou seja, usou o seu conhecimento que detinha de assuntos de um anterior cliente, que até é parte contrária no processo atual, para estruturar e elaborar a defesa dos interesses dos clientes que agora representa, tudo com vista a criar uma situação que, eventualmente, permita a estes últimos obter vantagens ilegítimas ou injustificadas, Ora, a nosso ver, tal situação configura-se como de conflito de interesses– a prevista no nº 5 do artigo 99º do EOA - o que determina a obrigação de renúncia ao mandato.

 Conclusões:

1.    A indicação de um advogado como testemunha na petição inicial não impede o mesmo advogado de subscrever a contestação dessa mesma acção, ainda que, em consequência desta assunção de mandato, tal advogado não possa vir a depor como testemunha no mesmo processo.

2.    Contudo, antes de contestar, o Advogado deve verificar se, em concreto, existe conflito de interesses entre os interesses do autor que patrocinou em processo anterior e que o indicou como testemunha e os interesses do réu que pretende patrocinar, seja pelo facto de o objeto dos dois processos e as questões que neles se discutem serem as mesmas, seja por, entre os mesmos, existir conexão, seja, ainda, pelo facto de o Advogado ter tido conhecimento de factos de que possa resultar vantagem ilegítima ou injustificada para o novo cliente ou perigo de violação de segredo profissional.

3.    O advogado não está impedido de representar a parte contrária num processo em que o autor é sujeito processual noutro processo contra o mesmo advogado, a não ser que o objeto dos dois processos e as questões que neles se discutem sejam as mesmas, seja por, entre os mesmos, existir conexão, seja, ainda, pelo facto de o Advogado ter tido conhecimento de factos de que possa resultar vantagem ilegítima ou injustificada para o novo cliente ou perigo de violação de segredo profissional.

4.    Tendo em consideração que a Sra. Advogada que subscreve a contestação do processo nº …/20.3T8STR fez uso de documentos que vieram ao seu conhecimento enquanto mandatária do autor noutros processos judiciais, mostra-se verificada a situação de conflito de interesses definida no nº 5 do artigo 99º do EOA, devendo a Sra. Advogada renunciar ao mandato.

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso parecer.

 

António Sá Gonçalves

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