Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 20/PP/2021-C

Parecer n.º 20/PP/2021-C

Assunto: Conflito de Interesses

 

Por comunicação escrita, datada de 20 de Dezembro de 2021, remetida através de correio electrónico dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, o Exmo. Senhor Dr. ASC, Advogado, portador da cédula profissional nº …L, com domicílio profissional no …, solicitou a emissão de parecer quanto à existência de conflito de interesses na situação concreta que expõe no petitório, que por razões de fidelidade, aqui se reproduz na íntegra:

 

“ASC, advogado portador da cédula profissional …L, com escritório profissional no …, vem, mui respeitosamente, nos termos e para os efeitos do artigo 54º, nº 1 al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro), solicitar o parecer/pronúncia deste venerando Conselho sobre questão de cariz profissional (deontológico) que lhe levanta dúvidas sobre qual o melhor enquadramento deontológico.

Pelo que vem mui respeitosamente expor o seguinte:

1.       No dia 6 de Dezembro de 2021, foi o ora signatário procurado por MIRE…, tendo reunido com a mesma nessa tarde.

2.       Mais foi outorgada procuração a favor do advogado ora signatário.

3.       Sendo que, o motivo da sra. MIRE… procurar os meus serviços se prende com o facto de estar a ser executada, juntamente com o seu marido, na qualidade de fiadores da sua filha.

4.       Pretendendo acompanhamento, por advogado, na celebração de um acordo que ponha fim/ suste a execução, uma vez que os pagamentos por conta que vem realizando se têm mostrado infrutíferos para fazer cessar as penhoras.

5.       Pois, segundo conta (não compareceu munida da documentação necessária) a sua casa de morada de família já foi colocada à venda por diversas ocasiões.

6.       Alguns momentos após o término da reunião, o ora signatário diligenciou no sentido de juntar procuração aos autos de execução, autuados sob o nº 174/11.5TB…, que correm termos no Juízo de Competência Genérica de … do Tribunal Judicial da Comarca de ….

7.       Todavia, ao consultar os intervenientes na plataforma Citius, o ora signatário apercebeu-se que a filha da sra. MIRE…, a Sra. MF…, se encontra representada pelo M.I. Advogado, o Dr. LCC….

8.       Sucede que, o Dr. LCC…, foi patrono do ora signatário e seu colega de escritório até 17 de Fevereiro de 2021.

9.       Mais se esclareça que, o ora signatário, nunca reuniu com a filha da sra. MF… sobre este assunto e, desconhecia que a mesma era representada pelo Dr. LCC….

10.    O ora signatário conhecia a situação precária da Sra. MF... uma vez que representou o companheiro desta em diligência em sede de processo de Insolvência, em substituição do seu patrono, o Dr. LCC..., que havia sido nomeado patrono daquele.

11.    Ao que acresce que, a neta da Sra. MIRE…, filha da Sra. MF..., estagiou (ano zero do curso de solicitadoria) durante 3 meses no escritório do Dr. LCC..., ao mesmo tempo que o ora signatário cumpria o seu estágio de advogado.

12.    E portanto, de facto apercebeu-se que a Sra. MF... trataria de assuntos pessoais com o Dr. LCC..., mas nunca interveio nesses processos, tanto quanto o ora signatário se consegue recordar.

13.    Dispõe o nº 1 do artigo 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados que “O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.” (negrito nosso)

14.    O ora signatário tem dúvidas em concretizar se, um fiador em acção executiva se pode considerar “parte contrária” ao devedor original.

15.    Motivo pelo qual não junto procuração aos autos supra referidos nem taopouco fez qualquer contacto com o Exequente.

16.    Tendo apenas tentado apurar, infrutiferamente, junto da Exma. Agente de Execução, se a procuração outorgada a favor do Dr. LCC..., o foi também em favor do advogado signatário, de forma a melhor instruir v. Exas.

Termos nos quais, mui respeitosamente se requer a v.Exa. se digne a determinar a emissão do respectivo parecer sobre uma eventual situação de incompatibilidade deontológica do ora signatário, por força do estatuído no artigo 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados, ou qualquer outro artigo que vos pareça relevante a presente questão.”

Com relevância para a emissão do parecer solicitado, veio, o Advogado Requerente, por mensagem de correio electrónico datada de 15 de Janeiro de 2022, dirigida ao Exmo. Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra, transmitir que, em complemento do ponto 16 do pedido de parecer formulado e supra transcrito ipsis litteris, foi informado pela Agente de Execução de que a procuração junta aos Autos pelo Dr. LCC..., foi igualmente outorgada a seu favor.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro (doravante por uma questão de facilidade de exposição designado abreviadamente por EOA), compete aos Conselhos Regionais a pronúncia abstracta sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua circunscrição territorial.

Com efeito, na esteira do entendimento unânime da Ordem dos Advogados, as questões de carácter profissional são todas as que assumem natureza estatutária, resultantes do conjunto de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas do Estatuto, bem como, de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio conferido à ordem dos Advogados.

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Regional configura, precisamente, uma questão de carácter profissional, subsumível ao denominado “Conflito de Interesses”, regido estatutariamente no artigo 99º do EOA, cuja consagração radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade e constitui expressa manifestação do principio geral previsto no artigo 89º do EOA, segundo o qual “O Advogado, no exercício da profissão mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

Com efeito, o Advogado, no exercício da profissão está inevitavelmente vinculado ao rigoroso cumprimento dos deveres plasmados no EOA, impondo-se a sua escrupulosa observância de molde a garantir a dignidade e prestígio da advocacia.

O artigo 208º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 88º do EOA instituem a essencialidade do Advogado à Administração da Justiça, atribuindo-lhe um conjunto de direitos e deveres para cumprimento de tal desígnio. Deste modo, o Advogado enquanto parte integrante e essencial à Administração da Justiça deve assumir “um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem.”

A advocacia é uma actividade de natureza liberal, mas que prossegue um notório e preponderante interesse público, circunstância que lhe confere elevada relevância social.

E é precisamente na senda do interesse público da advocacia que surge a consagração do instituto do conflito de interesses, com o objectivo de cumprir a tripla função: a) de defender a comunidade em geral e os clientes de um qualquer advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de outros advogados, conluiados ou não com algum ou alguns dos seus clientes; b) de defesa do próprio advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes; c) de defesa da dignificação da própria profissão;

Seguindo de perto os ensinamentos de António Arnaut “(…) seria altamente desprestigiante para a classe que o Advogado pudesse intervir a favor de outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás no lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio.”, in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág.111

O conflito de interesses, como já se referiu, radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, apelando, numa primeira linha, à consciência profissional do Advogado, ao seu decoro e dignidade profissional, devendo o advogado, em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de conflito de interesses entre os seus clientes.

A propósito dos deveres impostos ao Advogado nas relações estabelecidas com os seus clientes, dispõe o artigo 99º do EOA, elencando situações concretas em que este deve recusar patrocínio face à iminência ou mera possibilidade de ver diminuída a respectiva independência, confiança, lealdade ou mesmo contender com o dever de guardar sigilo profissional.

Assim o advogado deve recusar ou abster-se de aceitar o patrocínio sempre que se verifique qualquer uma das situações expressas no artigo 99º do EOA, que preceitua o seguinte:

 

“1- O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 – O Advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os seus clientes, no âmbito desse conflito.

5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 – Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer a associação quer a cada um dos seus membros.”

 

O preceito supra citado identifica algumas das situações em que o dever de recusa do patrocínio se impõe, não porque em concreto e no imediato se verifique a existência de conflito de interesses, mas porque, objectivamente, tais situações se afiguram potenciadoras desse conflito.

Ora, sendo à luz do normativo citado que deve ser enquadrada e solucionada a situação vertente, antecipa-se, desde já, que apesar da aparente simplicidade do caso em análise, se afigura que face à factualidade descrita pelo Advogado consulente, propendemos para a existência de um conflito de interesses.

 

Vejamos,

 

Com relevância para a situação em análise, temos que, a executada na qualidade de mutuária constituiu seus mandatários, designadamente, o Dr. LCC... e o advogado Requerente – à data advogado estagiário - para assumirem o respectivo patrocínio no processo judicial com o nº 174/11.5TB…, que corre termos pelo Juízo de Competência Genérica de …, Tribunal Judicial da Comarca de ….

Nada refere o advogado requerente quanto à renúncia ao mandato que lhe foi conferido por via da outorga da procuração forense enunciada, admitindo-se, como certo que tal patrocínio se mantém, irrelevando em nosso humilde entendimento, a circunstância de o advogado consulente não se recordar de ter efectuado qualquer intervenção no sobredito processo judicial, porquanto, o certo é que, para além da existência e regularidade da procuração emitida a seu favor, sempre aquele se encontra abrangido pela previsão contida no nº 6 do artigo 99º do EOA.

No sobredito processo executivo, figura, ademais, como executada MIRE…, mercê da fiança prestada à mutuária, sendo manifesto que ambas ocupam a posição processual de executadas, pelo que, numa análise perfunctória e abstracta tenderíamos a concluir pela existência de uma similitude dos interesses em defesa.

Sucede que, como bem sabemos, quer por decorrência das vivências diárias quer das normas legais vigentes, apenas é possível concluir pela in (existência) de conflito de interesses, mediante a apreciação concreta da conexão da matéria em causa e da natureza litigiosa dos interesses que cada uma das partes/ clientes pretende acautelar, não sendo porém, despiciendo anotar que, atenta a exposição da factualidade apresentada pelo advogado requerente se nos afigura que no caso vertente as partes detêm posições antagónicas e potencialmente conflituantes, ainda que, no futuro.

Com efeito o fiador garante pessoalmente perante o credor a satisfação do respectivo direito de crédito, assumindo na íntegra o conteúdo da obrigação principal, abrangendo as consequências legais e contratuais da mora e culpa do devedor.

É precisamente a garantia pessoal prestada perante o credor da sua filha, que motiva a respectiva legitimidade para figurar na acção executiva na qualidade de executada e, em consequência, responsável pelo pagamento da dívida exequenda.

Porém nos exactos termos prescritos pelo artigo 644º do Código Civil, sob a epígrafe “sub-rogação” “O fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos”, podendo, exigir o respectivo cumprimento do devedor principal.

Atento o supra exposto e mesmo que não se verifique a ocorrência de qualquer outra circunstância relevante, já se afigura que os interesses das partes no caso em análise são distintos ou potencialmente conflituantes.

Não ignorando que o advogado requerente consta indubitavelmente do mandato forense conferido pela executada/ mutuária ao respectivo patrono, não pode, salvo o devido respeito por entendimento diverso, assumir agora o patrocínio da fiadora/ executada no mesmo processo executivo, sob pena de violação dos números 1 e 3 do artigo 99º do EOA.

Para se concluir pela existência de um conflito de interesses à luz do preceituado no artigo 99º do EOA, não se impõe a sua efectiva verificação, bastando-se, a comprovação da conexão do assunto em causa e a mera susceptibilidade de abstractamente a situação relatada se afigurar potenciadora de violação dos deveres deontológicos do advogado.

O advogado deve estar, sempre e em qualquer circunstância, acima de qualquer suspeita, garantindo o cumprimento dos deveres de isenção, independência, salvaguarda do dever de sigilo profissional, decoro, probidade e dignidade da profissão, razão pela qual o advogado requerente deverá declinar o patrocínio da executada/ fiadora na mesma acção executiva onde já patrocina a executada/ mutuária, sob pena de incorrer em infracção disciplinar aferida ao abrigo do estatuído no artigo 115º do EOA.

 

Conclusões:

 

1 – A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da Advocacia diz respeito, encontra-se regulada no artigo 99º do EOA, que elenca situações concretas em que o Advogado deve recusar o patrocínio, por se afigurar que naqueles casos concretos a independência, confiança, lealdade e dever de guardar sigilo profissional, podem ficar irremediavelmente comprometidos;

2 – A previsão da referida norma, que numa primeira linha remete sempre sempre para a consciência individual do advogado, visa assegurar a protecção da comunidade em geral, defender o próprio advogado e dignificar a profissão, por via da preservação dos valores da lealdade, isenção, independência, confiança e decoro, tão caros ao exercício da advocacia;

3 – Com efeito, o advogado que tem intervenção num processo executivo, com mandato regularmente conferido pela executada /mutuária, não pode aceitar o patrocínio, no mesmo processo judicial, da executada na qualidade de fiadora, em virtude da inequívoca conexão do assunto em causa e da credível existência de interesses conflituantes de cada uma das partes.

 

É este o nosso parecer.

 

Sandra Gil Saraiva

Topo