Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 23/PP/2021-C

Parecer n.º 23/PP/2021-C

Assunto: Conflito de interesses – Advogado nomeado instrutor de processo disciplinar

 

Através de mail datado de 21/12/2021, dirigido ao Conselho de Deontologia de Coimbra, veio Sr. Dr. DMA…, advogado, portador da cédula profissional nº …C, requerer que  a emissão de Parecer sobre a questão que de seguida se enuncia:

 “- tendo sido mandatado – com procuração forense – por uma determinada entidade patronal na qualidade de instrutor em processo disciplinar contra trabalhador, e vindo a daquele processo disciplinar judicialmente impugnada pelo trabalhadro (decisão foi de suspensão do contrato por 30 dias), pergunto se se verfica conflito de interesses – por interveção noutra qualidade no processo disciplinar – que deva obstar à minha intervenção enquanto mandatário forense da mesma entidade patronal no processo judicial.

Salvo o devido respeito, poderá argumentar-se que a intervenção enquanto instrutor cai no âmbito do mandato forense constituído, pelo que, não se verificaria intervenção noutra qualidade;

Porém, temos nota de entendimentos diversos, desde logo, em última análise, qualquer das partes poderia entender requerer que o Instrutor fosse ouvido na qualidade de testemunha – e neste caso, não se tratando de matéria sujeita ao sigilo profissional, o instrutor poderia ser ouvido?.”

 

Atento o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo ao Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo à questão colocada.

 

O nosso parecer é balizado pelas  duas questões concretas que nos são colocadas –  a primeira delas, consiste em saber se o advogado nomeado instrutor em processo disciplinar laboral pode representar a entidade empregadora, enquanto advogado, no processo de impugnação da decisão disciplinar proferida no processo disciplinar; a segunda questão consiste em saber se o que foi instrutor no processo disciplinar pode ser testemunha no processo judicial de impugnação da decisão disciplinar e no qual representada a empregadora enquanto seu advogado.

 

No que concerne à primeira questão, temos de convocar duas normas essenciais para a sua análise: o Artigo 1º da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto que nos define quais são os atos próprios do advogado e o artigo 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que nos define o que é o conflito de interesses.

Vejamos:

Lei dos Atos Próprios dos Advogados e Solicitadores

Artigo 1.º

Actos próprios dos advogados e dos solicitadores

1 - Apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores.

2 - Podem ainda exercer consulta jurídica juristas de reconhecido mérito e os mestres e doutores em Direito cujo grau seja reconhecido em Portugal, inscritos para o efeito na Ordem dos Advogados nos termos de um processo especial a definir no Estatuto da Ordem dos Advogados.

3 - Exceptua-se do disposto no n.º 1 a elaboração de pareceres escritos por docentes das faculdades de Direito.

4 - No âmbito da competência que resulta do artigo 173.º-C do Estatuto da Ordem dos Advogados e do artigo 77.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, podem ser praticados actos próprios dos advogados e dos solicitadores por quem não seja licenciado em Direito.

5 - Sem prejuízo do disposto nas leis de processo, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores:

a)      O exercício do mandato forense;

b)      A consulta jurídica.

6 - São ainda actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes:

a)      A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais;

b)      A negociação tendente à cobrança de créditos;

c)       O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários.

7 - Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.

8 - Para os efeitos do disposto no número anterior, não se consideram praticados no interesse de terceiros os actos praticados pelos representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, nessa qualidade, salvo se, no caso da cobrança de dívidas, esta constituir o objecto ou actividade principal destas pessoas.

9 - São também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

10 - Nos casos em que o processo penal determinar que o arguido seja assistido por defensor, esta função é obrigatoriamente exercida por advogado, nos termos da lei.

11 - O exercício do mandato forense e da consulta jurídica pelos solicitadores está sujeito aos limites do seu estatuto e da legislação processual.

Estatuto da Ordem dos Advogados

Artigo 99.º

Conflito de interesses

 1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.

Analisados estes dois preceitos legais, a resposta à primeira questão é  fácil e óbvia:  não existe qualquer conflito de interesses entre o exercício da função de instrutor em processo disciplinar nomeado pela entidade empregadora e a representação desta enquanto advogado no processo judicial de impugnação da decisão disciplinar.

Vejamos,

 

Com o conflito de interesses visa-se acautelar os valores da legalidade, dignidade, independência, segredo profissional, lealdade, confiança e ética.

 

As normas que prevêem o conflito de interesses, assumem uma tripla função:

a)      Defesa da comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de atuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;

b)      Defesa do próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;

c)       Defesa da própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia a eventualidade de se generalizarem as atuações dos advogados em situação de conflito de interesses.

 

Ora, seguramente, na situação que analisamos não se corre nenhum dos riscos que a norma do artigo 99º do EOA dos pretendem acautelar, desde logo, porque o cliente do advogado é sempre o mesmo: a entidade empregadora.

 

Por outro lado, o exercício da função de instrutor no processo disciplinar não é um ato próprio de advogado, face ao disposto no artigo 1º da Lei nº 49/2004, de 24 de agosto. Pese embora se entenda que o advogado é porventura quem melhor preparado está para exercer as funções que cabem a instrutor no processo disciplinar laboral, o certo é que tal função pode ser exercida por qualquer pessoa, pois não exclusiva do advogado.

 

De resto, bastará, a este propósito,  ler os pareceres emitidos quer pelo Conselho Regional de Coimbra – parecer 6/2006 – e, pelo Conselho Regional de Lisboa – parecer 3/2010, publicados no sítio da internet da Ordem dos Advogados.

No parecer emitido pelo Conselho Regional de Coimbra podemos ler “Entendemos que nada obsta a que um advogado que exerce funções para um cliente possa simultaneamente desempenhar as funções de instrutor de um processo disciplinar, nomeado para tal pelo seu cliente que é o empregador. Mais: sendo o advogado do referido empregador, será porventura o instrutor mais bem posicionado para melhor poder aconselhar  o seu cliente, atentas as circunstâncias referidas no nº 2 do artigo 398º do Código do Trabalho e, consequentemente, para melhor aquilatar, no caso em concreto, da probabilidade séria de existência de justa causa para despedimento”.

Já no parecer emitido pelo Conselho Regional de Lisboa podemos ler Entendemos que o exercício das estritas funções de instrutor de um processo disciplinar de natureza laboral não constitui acto próprio de advogado. O advogado que pratique actos de instrução num processo disciplinar não está no exercício da profissão.

 

Existem várias funções e actividades que são exercidas por advogados (por estarem porventura melhor preparados para as exercer) sem que constituam actos próprios da profissão. Lembramo-nos da função de Árbitro em tribunal arbitral, da actividade de mediação de conflitos e, em particular, a da mediação familiar, bem como da função de perito em processo civil. O mesmo se passa, em nossa opinião, no caso em que um advogado é nomeado instrutor de um processo disciplinar. O instrutor não está a exercer o mandato forense, nem a prestar consulta jurídica, nem a praticar quaisquer actos de advocacia tal como definidos nos nºs 5 e 6 do artigo 1º da Lei dos Actos Próprios (Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto).”

 

Posto isto, podemos concluir esta primeira questão afirmando que o advogado, quando exercer as funções de instrutor de processo disciplinar laboral, não está a praticar um ato próprio de advogado e, por isso, não existe conflito de interesses quando representa a entidade empregadora no processo judicial de impugnação da decisão disciplinar.

 

No que respeita à segunda questão, já por diversas vezes a Ordem dos Advogados  se pronunciou sobre a matéria e concluiu sempre da mesma forma, o advogado constituído num processo não pode nele depor como testemunha, mesmo que substabeleça ou renuncie ao mandato.  Esta tem sido a opinião unânime da Ordem dos Advogados, pelo que, nos limitamos a convocar para aqui, por todos, dois pareceres: o parecer nº 35/PP/2015-P, emitido pelo Conselho Regional do Porto e o parecer nº 1/PP/2020-C, emitido pelo Conselho Regional de Coimbra, que retratam tal posição.

 

Concluindo:

1.       As funções de instrutor de um processo disciplinar de natureza laboral não constituem acto próprio de advogado, razão pela qual a prática dos atos que nelas se integram não se constitui como elemento ou pressuposto de juízo sobre a (in)existência de conflito de interesses.

2.       Não existe conflito de interesses entre o exercício de funções de instrutor de processo disciplinar e a representação da mesma entidade empregadora em processo de impugnação da sanção disciplinar que naquele tenha sido aplicada.

3.       O advogado constituído num processo, não pode no mesmo depor como testemunha, ainda que substabeleça ou renuncie ao mandato.

 

É  este, salvo melhor opinião, o meu parecer.

 

António Sá Gonçalves

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