Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 4/PP/2022-C

Parecer n.º 04/PP/2022-C

Assunto: Conflito de Interesses

 

Por comunicação escrita datada de 09 de março de 2022 remetida por ordem do Exmo. Senhor Dr. Juiz de Direito do Juízo Local Cível de … – Juiz … – do Tribunal Judicial da Comarca de … ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, foi requerido que este Conselho se pronuncie sobre questão colocada nos termos que passam a enunciar-se:

 

“(…) Se aprecie se relativamente ao Ilustre mandatário da Autora, Dr. JPC..., NIF …, cédula profissional n.º …C, com escritório na Praça …, está, dado o disposto no artigo 99. ° do Estatuto da Ordem dos Advogados, numa situação de conflito de interesses”.

 

O pedido formulado encontra-se instruído com uma certidão integrada por um despacho proferido nos autos de ação de divisão de coisa comum n.º 3575/21.0..., transitado em julgado em 24.02.2022, e por dois requerimentos, datados de 15.10.2021 e de 22.10.2021, respectivamente.

 

Consta do despacho supra identificado, que para facilidade de análise se transcreve, o seguinte:

 

“ (…) Citado para os termos da presente acção, veio o Réu “requerer que seja reconhecido - pelo Tribunal ou pela Ordem dos Advogados parte, quer do Sr. Dr. JPC..., quer do Advogado Estagiário e colega de escritório do mesmo, Sr. Dr. PAA..., de intervirem no presente processo, uma vez que como bem o demonstra nomeadamente a escritura junta como doc. n. 2, 0 Sr. Dr. JPC… foi, além de advogado dos dois litigantes aqui presentes, também procurador de ambos no negócio de aquisição da habitação a que se reportam os presentes autos estando, por conseguinte, impedido de litigar em nome de um dos interessados contra o outro; e bem assim de substabelecer em seu colega de escritório (ainda para mais Advogado Estagiário, que nem sequer tem competência, em razão do valor da causa, para intervir no Processo”.

A Autora respondeu, pugnando pelo indeferimento do requerido e pela consideração de que a A. constituiu validamente advogado, nos termos do art. 40° a 47° e ss. do Código Civil.

A esta resposta seguiram-se mais uma resposta do R. e outra do A. cujo desentranhamento, por inadmissíveis, se determina - art. 293° do C.P.C.

(…)

S.m.o., a apreciação da questão suscitada é da competência da Ordem dos Advogados.

Efectivamente, o incidente deduzido pelo Réu insere-se na previsão do art. 99° do Estatuto da Ordem dos Advogados, que regula as situações de “Conflito de Interesses”.

Tal como se decidiu no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-7-2011, a propósito das incompatibilidades e impedimentos, mas aplicável igualmente aos conflitos de interesses, “nos termos do n° 5 do artigo 76.° daquele estatuto, "as incompatibilidades ou os impedimentos são declarados e aplicados pelo conselho geral ou pelo conselho distrital que for o competente". Significa isso que não é no processo onde o advogado está a exercer a advocacia que se decidirá se ele está impedido de actuar nessas vestes; não é da competência do tribunal declarar a existência de alguma das "incompatibilidades ou [d]os impedimentos" previstos nos artigos 76.° a 78.° do Estatuto da Ordem dos Advogados” — Proc. n.® 730/08.9TBLSA-o.ci, publicado em www.dgsi.pt.

Assim, mesmo que no caso dos autos se verifica-se uma situação de conflito de interesses, a mesma não poderia ser apreciada nesta sede.

(…)

Transitado em julgado, extraia certidão desta decisão e dos requerimentos de 15-10-2021 e de 22-10-2021 e remeta à Ordem dos Advogados para que, entendendo- se oportuno, se aprecie se o Ilustre mandatário da A., está, dado o disposto no artigo 99. ° do Estatuto da Ordem dos Advogados, numa situação de conflito de interesses.”

(…)

 

Por sua vez, o requerimento de 15.10.2021 junto aqueles autos por ANMCC..., através do seu mandatário Senhor Dr. JMR..., levanta a questão do conflito de interesses, decorrente do impedimento para intervir no âmbito do identificado processo, quer do Senhor Advogado Dr. JPC..., quer do Advogado Estagiário e colega de escritório, Senhor Dr. PAA..., nele se exarando que:

“(…) notificado do teor da Douta Petição contra si intentada vem, antes de Contestar, requerer que seja reconhecido - pelo Tribunal ou pela Ordem dos Advogados - o impedimento por parte, quer do Senhor Dr JPC..., quer do Advogado Estagiário e colega de escritório do mesmo, Sr Dr PAA..., de intervirem no presente Processo, uma vez que como bem o demonstra nomeadamente a Escritura junta como doc n°2, o Senhor Dr Paulo Cavalheiro foi, além de Advogado dos dois litigantes aqui presentes, também procurador de ambos no negócio de aquisição da habitação a que se reportam os presentes Autos estando, por conseguinte impedido de litigar em nome de um dos interessados contra o outro; e bem assim de substabelecer em seu colega de escritório (ainda para mais Advogado Estagiário, que nem sequer tem competência, em razão do valor da causa, para intervir no Processo)”.

 

O segundo requerimento, datado de 22.10.2021 e apresentado ao abrigo do exercício do direito ao contraditório, foi junto àqueles autos pela Autora MGSS..., através do seu mandatário, Senhor Dr. JPC..., dele constando, com relevo para a questão sob apreciação, o seguinte:

 

“(…) Corresponde à verdade que o Mandatário da Requerente foi Procurador Conjunto, dela e do Requerido, no acto notarial de compra e venda do imóvel objecto do presente processo;”

(…)

Como também é verdade que, munido de competente Procuração Forense conjunta, deu entrada a um requerimento, no processo n.º 981/05.8... que correu termos no extinto Juízo de Cível da Comarca de ... - Doc, 1 e 2.”

(…)

Tal como deles se extrai, tal requerimento visou tão-somente o cancelamento de uma penhora que onerava a dita moradia, à data da outorga da escritura de compra e venda, cancelamento esse que foi aliás concedido como se extrai da douta decisão transitada de que igualmente se junta cópia - cfr. Doc. 2”

 

Concluindo que, “(…) A A. constituiu validamente Advogado, nos termos do art. 40.º a 47.º segs. do Código Civil.”

 

O requerimento vindo de referir foi instruído com dois documentos – um requerimento dirigido aos autos de Processo n.º 981/05.8... do 1° Juízo Cível da Comarca de ..., subscrito pelo Senhor Advogado Dr. JPC..., em representação de ANMCC... e de MGSS..., através do qual requereu a emissão de certidão da sentença proferida em 10.01.2007, que, declarando extinta a execução com fundamento no pagamento da quantia exequenda, ordenou o levantamento da penhora e, outrossim, o cancelamento do respectivo registo; e a certidão que, na sequência daquele, veio a ser emitida em 16.09.2013.

 

Nos termos do estatuído no artigo 54º nº 1, al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, porque o Conselho Regional de Coimbra tem competência territorial e material para a emissão do parecer solicitado, outrossim atento o facto de ter por objeto questão de carácter profissional, emite-se parecer nos termos que seguem:

 

A questão colocada pelo Tribunal Judicial da Comarca de ... demanda a emissão de juízo quanto à (in) admissibilidade de intervenção do Sr. Dr. JPC..., como mandatário da Autora, no processo de divisão de coisa comum que a opõe a ANMCC..., subsumindo-se, desta feita, ao enquadramento e disciplina do conflito de interesses.

 

A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente sob o artigo 99.º do E.O.A, resulta da confluência e consagração dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, tendo-se por entendimento pacífico que a respectiva regulação deriva expressamente do princípio geral da independência, consagrado no artigo 89.º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

 

Com efeito, no exercício da profissão, o Advogado está vinculado ao cumprimento do vasto leque de deveres estabelecidos no Estatuto da Ordem dos Advogados, impondo-se-lhe uma observância conscienciosa, contínua e intransigente, indispensável a assegurar e a garantir a dignidade e o prestígio da profissão.

Sendo pacífico o entendimento de que para aferir da (in) existência de um conflito de interesses se revela fundamental a análise do caso concreto, optou o legislador por, ainda assim, consagrar um universo de situações em que o dever de recusa do patrocínio se impõe, não porque em concreto e no imediato se verifique um conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

 

É resulta do teor do artigo 99.º do EOA (que se transcreve):

Artigo 99.º

Conflito de Interesses

1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

À luz das enunciadas previsões normativas contidas sob os números 1 e 2 temos que o advogado deve recusar o patrocínio:

- De questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;

- De questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;

- De questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

 

Resulta, ainda, do inciso que compõe o nº 3 do citado artigo que o Advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

 

Por outro lado, dispõe a norma vertida sob o nº 4 que se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, ou se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito; e sob a que compõe o n.º 5, que o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente.

 

Da concatenação de tais normas resulta que uma tal disciplina visa, em primeira linha, defender a comunidade em geral e os clientes em particular de eventuais atuações ilícitas de advogados menos escrupulosos- conluiados, ou não, com outros clientes.

 

Importa, igualmente e de forma congruente com o entendimento vindo de expressar, realçar o facto de a matéria do conflito de interesses ser, também, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe, sempre que colocado numa concreta situação suscetível de conformar um tal quadro, avaliar se o mandato cuja atribuição subsiste/ perspetiva não esbarra/esbarrará noutro conferido, ao ponto de se verificar um objetivo impedimento ao exercício livre e sem constrangimentos da sua atividade, e tal como exigido pelas normas que compõem o seu Estatuto Profissional.

 

Da factualidade recenseada extrai-se que a apreciação do caso sob análise há-de ser feita à luz da segunda parte do n.º 1 do artigo 99.º do EOA, segundo o qual, “O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão (…) conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.”

 

Da leitura do expediente remetido a este Conselho pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., pela particular importância que assume na análise a empreender, extraiu-se que:

 

O Senhor Advogado Dr. JPC... foi procurador de ANMCC... e de MGSS... no acto notarial de compra e venda do imóvel objeto do processo especial de divisão de coisa comum. No uso dos poderes conferidos pelos indicados mandantes através de procuração forense conjunta, o mesmo Senhor Advogado deu entrada de um requerimento para emissão de certidão do processo n.º 981/05.8... do extinto Juízo de Cível da Comarca de ..., com vista a assegurar o cancelamento de uma penhora que, à data da outorga da aludida escritura de compra e venda, onerava o imóvel objecto daquele sobredito negócio.

 

Nos autos de divisão de coisa comum intentada contra ANMCC por MGSS..., o Senhor Advogado patrocina a Autora, sendo que - conforme se extrai do despacho proferido nos autos e cuja cópia compõe a certidão junta ao pedido de parecer que agora se emite -  na petição inicial com que aqueles se iniciaram foi alegado, entre o mais, que a dita A. é proprietária, na proporção de ½, do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo 5.547º ( sem identificação da freguesia a que pertence) e descrito na Segunda Conservato´ria do Registo Predial de ... sob o nu´mero 2.185 (igualmente sem referência à freguesia a que pertence), sito na Urbanizac¸a~o de …. Conclui-se peticionando que, face à indivisibilidade em substância, se proceda à adjudicação ou venda do bem.

 

Resulta ainda da documentação remetida pelo Tribunal, designadamente no despacho exarado a fls..., que:

“(…) MGSS... instaurou a acção especial de divisão de coisa comum, contra ANMCC..., alegando que é proprietária, na proporção de ½ do prédio urbano destinado a habitação e composto de cave, rés-do-chão e primeiro andar, inscrito na matriz predial sob o art. 5547° e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2185 - sito na Urbanização de….

O Réu é proprietário de do referido prédio.

Atenta a sua natureza, o bem é indivisível em substância, pelo que pretende que se proceda à respectiva adjudicação ou venda.

O Réu apresentou contestação na qual, em síntese, impugna a qualidade de comproprietária da A., considerando que a mesma não pagou qualquer montante pelo imóvel, a cujo o direito de compropriedade agora se arroga.

Por todo o exposto, face à natureza do imóvel em causa, o qual é indivisível em substância, reconheço tal indivisibilidade e fixo os quinhões de Autora e Réu na proporção de ½ para cada um.

(…)

Para a realização de uma conferência, com vista ao acordo dos interessados na respectiva adjudicação a algum deles, preenchendo-se em dinheiro a quota do outro, ou à venda, na falta desse acordo.”

 

Ora, o que importa ajuizar no caso concreto é se, ao assumir a representação da Autora o Sr. Advogado se coloca numa situação de conflito de interesses, nos termos da previsão contida no artigo 99.º do EOA.

 

Conforme resulta da cronologia normativamente estabelecida, qualquer situação de conflito de interesses deverá ser sempre analisada por reporte a uma ação/causa ou assunto anteriormente tratado, e na/o qual o Senhor Advogado tenha tido já intervenção (qualquer intervenção), como estabelece a lei, ou, conforme estatui o segundo segmento da norma contida no n.º 1 do artigo 99.º do EOA, quando se esteja perante uma questão que seja conexa com aquela em que tenha intervindo anteriormente.

 

Constitui entendimento jurisprudencial da Ordem dos Advogados que “conexão” significa “relação evidente entre várias causas, de modo que a decisão de uma dependa das outras ou que a decisão de todas dependa da subsistência ou valoração de certos factos.”

 

Importa, ainda, anotar que a emissão de juízo sobre a (in)existência de conflito de interesses decorre da apreciação concreta da conexão da matéria em causa e da natureza litigiosa dos interesses que cada uma das partes/ clientes pretende acautelar.

 

Analisando a situação concreta, temos que a ação de divisão de coisa comum se destina ao exercício do direito atribuído no artigo 1.412.º do CC, nos termos do qual, em geral, nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, sendo pressuposto do exercício daquele direito a existência de uma situação de compropriedade, e finalidade a efetivação do direito à respetiva divisão do bem.

 

A disciplina processual deste tipo de ação especial- contida nos artigos 926.º a 929.º do Código de Processo Civil- comporta duas fases distintas: uma essencialmente declarativa e outra de natureza executiva. Naquela avaliam-se os elementos integrantes do direito de compropriedade invocado - quer quanto à divisibilidade do bem, quer quanto à quota de cada comproprietário - de modo a que, operada que seja tal verificação e definição - ou seja, assentes os factos que conduzem à verificação da compropriedade do bem em causa, decidida a questão da (in) divisibilidade e realizada a fixação dos quinhões de cada consorte- se dê execução ao direito real declarado - fase executiva –, que, por seu turno, comporta o preenchimento dos respetivos quinhões, mediante adjudicação a algum dos interessados ou à venda do bem.

 

Revisitando agora a factualidade enunciada, constata-se que nos autos em análise foi encerrada a fase declarativa da ação de divisão de coisa comum e - seguindo a disciplina jurídica prevista no n.º 2 do art.º 926.º C.P.C. - sumariamente decidido pelo Tribunal, face à indivisibilidade em substância do imóvel ali em causa, o reconhecimento da indivisibilidade e a fixação dos quinhões de Autora e Réu na proporção de ½ para cada um. Nessa sequência foi convocada a realização de uma conferência com vista ao acordo dos interessados quanto à eventual adjudicação, ao preenchimento da quota em dinheiro, ou à venda do bem, entrando a ação na correspondente fase executiva.

 

Adiante-se, desde já, que o facto de, de se encontrarem fixados nos autos de ação de divisão de coisa comum os quinhões titulados por cada comproprietário, realizada a adjudicação a qualquer uma das partes, preenchida em dinheiro a quota do outro comproprietário ou realizada a venda a terceiro, não compromete a apreciação a fazer quanto à existência de conflito de interesses decorrente da anterior

intervenção do Senhor Advogado na escritura de compra e venda do imóvel, na qual, no uso de procuração conjunta, representou a agora Autora e o Réu.

 

 Com efeito, podendo argumentar-se que aquela anterior intervenção em nada influenciou, ou influencia, o desfecho da ação de divisão de coisa comum - não existindo por conseguinte, conexão e/ou relação evidente entre ambas as intervenções -  não podemos deixar de anotar que as partes detêm posições antagónicas e expressamente conflituantes no indicado processo, desde logo  em resultado do facto de haver sido instaurada a própria acção de divisão de coisa comum, mas a que, inevitavelmente acresce, aquele outro de o Réu ter apresentado contestação no âmbito da qual, “em síntese, impugna a qualidade de comproprietária da A., considerando que a mesma não pagou qualquer montante pelo imóvel, a cujo o direito de compropriedade agora se arroga”.

 

Revela-se, assim, indiscutível que nos identificados autos as partes assumem posições divergentes quanto ao bem em causa - quer na vertente real, quer na vertente obrigacional –; posições essas que poderão vir a projectar-se na elaboração de outras construções jurídicas, nomeadamente no quadro do direito das obrigações – desta feita para discussão de créditos entre os consortes (e já não, atento o trânsito em julgado da respectiva decisão, no que se refere às quotas em presença, cuja fixação em ½ para cada comproprietário se mostra insusceptível de revisão ou alteração.)

 

Ora, o conhecimento da factualidade e das circunstâncias subjacentes à celebração do negócio de compra e venda do imóvel objeto da ação de divisão de coisa comum, advindo por via do exercício do patrocínio de ambas as partes pelo mesmo Senhor Advogado é suscetível de, pelo menos em abstrato e do ponto de vista hipotético, ser usado quer na ação de divisão de coisa comum, quer numa eventual acção que, conexa com esta, tenha por objeto o “deve e haver” de cada um dos comproprietários relativamente ao outro.

 

Em face do exposto e ainda que se entendesse inexistir qualquer outra circunstância relevante, afigura-se que, no caso em análise, os interesses das partes são distintos e/ ou potencialmente conflituantes;  ainda que os concretos termos sujeitos a controvérsia possam não ser apreciados na ação de divisão de coisa comum, mas em sede de acção autónoma.

 

Apresenta-se-nos, assim, como único sufragável o entendimento de que o Advogado cujo patrocínio teve por objecto uma  concreta uma questão (objecto de acção judicial ou não) não poderá, findo o tratamento da mesma, intervir noutro pleito que se encontre em íntima conexão com aquela outra (como sucede no caso concreto), assumindo a representação e defesa de interesses opostos aos de anterior constituinte.

 

Com efeito, para se concluir pela existência de um conflito de interesses à luz do preceituado no artigo 99º do EOA, não se impõe a sua efetiva verificação, bastando-se, a comprovação da conexão do assunto em causa e a mera suscetibilidade de abstratamente a situação relatada se afigurar potenciadora de violação dos deveres deontológicos do advogado, pois que, a mera possibilidade da existência de um conflito de interesses é, a nosso ver, inaceitável para a Advocacia.

 

Entendemos assim que, no caso concreto, por existência de evidente conflito de interesses, o Senhor Advogado em causa não se encontrava em condições de aceitar o mandato da Autora para, em sua representação, intervir nos autos de ação especial de divisão de coisa comum.

 

Em consequência, formulam-se as seguintes conclusões:

 

1.      A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente sob o artigo 99.º do E.O.A, resulta da confluência e consagração dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, tendo-se por entendimento pacífico que a respectiva regulação deriva expressamente do princípio geral da independência, consagrado no artigo 89.º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

2.      A matéria do conflito de interesses é, também, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe, sempre que colocado numa concreta situação suscetível de conformar um tal quadro, avaliar se o mandato cuja atribuição subsiste/ perspectiva não esbarra/esbarrará noutro conferido, ao ponto de se verificar um objetivo impedimento ao exercício livre e sem constrangimentos da sua atividade, e tal como exigido pelas normas que compõem o seu Estatuto Profissional.

3.      Ainda que para aferir da (in) existência de um conflito de interesses se revele fundamental a análise do caso concreto, o legislador optou por, ainda assim, consagrar um universo de situações em que o dever de recusa do patrocínio se impõe, não porque em concreto e no imediato se verifique um conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

4.      O Advogado cujo patrocínio teve por objecto uma  concreta questão (objecto de acção judicial ou não) não poderá, findo o tratamento da mesma, intervir noutro pleito que se encontre em íntima conexão com aquela outra (como sucede no caso concreto), assumindo a representação e defesa de interesses opostos aos de anterior constituinte.

5.      O Advogado que, no uso de procuração conjunta, tenha intervindo em escritura de compra e venda de imóvel objecto de acção de divisão de coisa comum, não pode nesta acção em que as partes assumem posições divergentes quanto ao bem em causa - quer na vertente real, quer na vertente obrigacional – assumir o patrocínio de uma delas contra a outra que, anteriormente, tenha sido, também, sua constituinte, ainda que os concretos termos sujeitos a controvérsia possam não ser apreciados na ação de divisão de coisa comum, mas em sede de acção autónoma.

 

É este o nosso parecer.

 

Teresa Letras | Luísa Peneda Cardoso

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