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Parecer Nº 8/PP/2022-C

PARECER Nº 08/PP/2022-C

 

Assunto: prestação de serviços através de uma empresa ou outra organização, com vista à instrução e submissão de pedidos de vistos de residência.

 

Por comunicação[1] dirigida a este Conselho Regional através de correio electrónico, veio a Sra. Dra. KFK…, Advogada, requerer pronúncia sobre questão que ali coloca e que infra se transcreve:

“(…) Pode o advogado (a) atuar no âmbito de serviços consulares e administrativos, no que se refere a análise de documentos, preenchimento de formulários e orientações à sua clientela, nos processos de tratamento de vistos? Nomeadamente, vistos para os Estados Unidos da América?

Resumindo, pode atuar como despachante/intermediário na prestação desses serviços? 

Questiono porque tenho interesse em ter uma agência de vistos e serviços consulares no âmbito de imigração.

Desse modo, acautelando todos os interesse em causa, peço a V. Exas. Parecer sobre esta situação concreta, atendendo sempre, salvo melhor atendimento.”

 

Face ao disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 54.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo a este Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer respondendo às questões supra identificadas.

Vejamos,

Analisado o teor da aludida comunicação, são duas as questões que devem ser respondidas:

 

        I.    Pode um advogado(a) prestar “serviços consulares e administrativos”, designadamente instruindo e submetendo processos de tratamento de vistos?

      II.    A prestação de tais serviços pode ser efectuada através de uma agência, empresa ou outra organização?

 

Vista a situação fáctica, importa agora proceder ao enquadramento do respectivo quadro legal.

 

Preceitua a norma incriminadora contida no artigo 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, que define o sentido e o alcance dos actos próprios dos Advogados e dos solicitadores, sob a epígrafe “Crime de procuradoria ilícita”, o seguinte:

1-Quem em violação do disposto no artigo 1.º: a) Praticar actos próprios dos advogados e dos solicitadores; b) Auxiliar ou colaborar na prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - O procedimento criminal depende de queixa. 3 - Além do lesado, são titulares do direito de queixa a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores. 4 - A Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores têm legitimidade para se constituírem assistentes no procedimento criminal.

Por sua vez, o artigo 1.º do citado diploma legal estabelece que: 1 - Apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores. (…). 5 - Sem prejuízo do disposto nas leis de processo, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores: a) O exercício do mandato forense; b) A consulta jurídica. 6 - São ainda actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes: a) A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais; b) A negociação tendente à cobrança de créditos; c) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários. 7 - Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei. 8 - Para os efeitos do disposto no número anterior, não se consideram praticados no interesse de terceiros os actos praticados pelos representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, nessa qualidade, salvo se, no caso da cobrança de dívidas, esta constituir o objecto ou actividade principal destas pessoas. (nosso negrito)

E o n.º 1 do artigo 6.º que: com excepção dos escritórios ou gabinetes compostos exclusivamente por advogados, por solicitadores ou por advogados e solicitadores, as sociedades de advogados, as sociedades de solicitadores e os gabinetes de consulta jurídica organizados pela Ordem dos Advogados e pela Câmara dos Solicitadores, é proibido o funcionamento de escritório ou gabinete, constituído sob qualquer forma jurídica, que preste a terceiros serviços que compreendam, ainda que isolada ou marginalmente, a prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores.

A acrescer, os artigos 61.º a 63.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (consagrado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro), em conjugação com a Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, definem o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores.

Decorre destes normativos que, grosso modo, as funções do advogado respeitam a toda a actividade de representação do mandante, quer em tribunal (mandato forense), quer em negociações extrajudiciais ou diligências com vista à constituição, à alteração ou à extinção de relações jurídicas, mas, de igual modo, podem traduzir-se na actividade de mera consulta jurídica, ou seja, de aconselhamento jurídico a solicitação de terceiro.

Assim, o mandato forense está delineado no artigo 2.º da Lei n.º 49/2004, conjugado com o artigo 62.º do EOA e a consulta jurídica no artigo 3.º daquela lei e artigo 63.º do EOA.

O artigo 7.º da Lei nº 49/2004 é uma norma protectora de condutas pluri-ofensivas, conquanto o bem jurídico tutelado pela incriminação sob escrutínio é complexo, assentando na salvaguarda do exercício de funções por quem se encontra devida e legalmente habilitado, por um lado, e no limitar do exercício de tais funções em simultâneo com outras actividades e/ou profissões[2]. Assim, tutela o interesse público da integridade do sistema oficial de provimento e exercício da advocacia e da solicitadoria e a prossecução do interesse público da boa administração da justiça.

Trata-se de um crime de dano, exigindo a efectiva lesão do sistema oficial de provimento de dependentes de título público e da administração da Justiça[3]; de mera actividade[4], bastando-se com a prática dos actos próprios de advogado e/ou solicitador, tais como definidos na Lei nº 49/2004.

A conduta objectiva típica assenta na realização de actos próprios de advogado e/ou solicitador ou no auxílio e colaboração na realização de tais actos, os quais consistem no exercício do mandato forense e na prestação de consulta jurídica, assim como a elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, ou a prática de todos os actos que, nas modalidades acima referidas, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional.

Tem sido entendimento consentâneo que a prática de actos próprios dos advogados por pessoas destituídas dessa qualidade não constitui, sempre e em qualquer caso, o exercício de procuradoria ilegal.

Assim, serão critérios aferidores do preenchimento do elemento objectivo do tipo o carácter oneroso do mandato, a sua frequência, múltiplos outorgantes, o fim visado pelo mandato, e/ou ainda o rodeio da outorga do mandato de actos publicitários.

Ademais, o elemento subjectivo impõe a vontade de exercer actos próprios de advogado e/ou solicitador, persistindo o agente na conduta, ainda que consciente que não se encontra habilitado legalmente para a prática de tais actos, nomeadamente, por não ser detentor do necessário título profissional. Apresenta-se como um crime doloso, em qualquer das suas modalidades, admitindo, assim, o dolo eventual.

Regressando ao caso que aqui nos ocupa, importa referir que os vistos de longa duração, regulados nos termos da legislação nacional em vigor, podem ser de estada temporária ou para a obtenção de autorização de residência.

O visto de estada temporária destina-se a permitir a entrada para estadas em Portugal por período inferior a um ano.

O visto para obtenção de autorização de residência é válido para duas entradas e por quatro meses, período durante o qual o seu titular deverá solicitar junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras um título para fixação de residência.

Ora, se é certo que qualquer cidadão, elegível para o efeito, pode apresentar um pedido de visto de residência e instruir o respectivo processo junto dos serviços competentes, não é menos certo que a “Lei dos Actos” obriga à constituição de advogado ou solicitador para a prática daqueles actos quando praticados com carácter profissional/remunerado.

Com efeito, a prática individualizada de (um) acto constitui realidade diferente da prática reiterada de actos como exercício de actividade – como resulta desde logo da alínea a) do artigo 1º quando refere “actos”, no plural.

Entendimento este que é corroborado pelo n.º 7 do artigo 1º da Lei 49/2004, que refere que: consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.

Assim, ainda que não seja obrigatória a constituição de Advogado, designadamente para a prática de acto isolado, existirá procuradoria ilícita no caso da prática reiterada de actos daquela natureza ou da sua prática com carácter remunerado, profissional.

Desde logo porque, por um lado, qualquer exercício actividade profissional está dependente da verificação de múltiplos requisitos e obrigações de natureza técnica, administrativa, fiscal, por outro lado, porque tendo o mandato por objecto actos que o mandatário pratique com carácter reiterado ou profissional presume-se oneroso – cfr. artigo 1158º do Código Civil.

Assim, não existe, a nosso ver, qualquer impedimento legal em a requerente, na qualidade de Advogada, assumir o patrocínio de interessados no âmbito da instrução e tratamento de processos de vistos para a obtenção de autorização de residência.

Porém, o mesmo já não podemos dizer quando tais serviços sejam promovidos ou prestados por Advogado (a) através de uma agência, empresa, gabinete ou qualquer outra organização.

Pois que, apesar de à primeira vista poder parecer que sendo o acto em si praticado por quem tem competência legal para o fazer, ou seja, por um(a) Advogado(a), a questão estaria resolvida, assim não sucede.

Porquanto, como já se referiu, nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 1.º da Lei 49/2004, consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.

E nos termos do n.º 1 do artigo 6.º que: com excepção dos escritórios ou gabinetes compostos exclusivamente por advogados, por solicitadores ou por advogados e solicitadores, as sociedades de advogados, as sociedades de solicitadores e os gabinetes de consulta jurídica organizados pela Ordem dos Advogados e pela Câmara dos Solicitadores, é proibido o funcionamento de escritório ou gabinete, constituído sob qualquer forma jurídica, que preste a terceiros serviços que compreendam, ainda que isolada ou marginalmente, a prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores.

Isto é, sendo tais actos/serviços exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, incorreriam as mesmas na prática de um crime de procuradoria ilícita.

E não se poderá invocar que, sendo tais serviços prestados por Advogado(a), não existe qualquer impedimento, isto porque neste tipo de situações a relação material subjacente é, indubitavelmente, estabelecida entre a empresa e os clientes desta – devendo ser neste prisma, salvo melhor entendimento, que questão deve ser encarada.

Por fim, sempre se dirá que a prestação, por um(a) Advogado(a), de serviços a terceiros, que são clientes de uma empresa ou outra organização para a qual presta serviços de Advocacia, não sendo esses terceiros seus clientes, entra em colisão com o cumprimento de deveres deontológicos, quais sejam a dignidade e independência do Advogado - artigos 89.º do EOA - , o dever de segredo profissional a que está sujeito - artigo 92.º do EOA-, favorecendo, ainda, o aparecimento de situações de conflitos de interesses - artigo 99.º do EOA.

 

CONCLUSÕES:

        I.    Ao abrigo do disposto no artigo 6º e 7.º do Decreto-Lei nº49/2004 de 24 de Agosto, é ilegal e, por consequência, proibido, o funcionamento de uma agência, empresa, gabinete ou de qualquer outra organização que preste a terceiros serviços que compreendam, ainda que isolada ou marginalmente, a prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores;

      II.    A prestação, por um(a) Advogado(a), de serviços a terceiros, que são clientes de uma empresa ou outra organização para a qual presta serviços de Advocacia, não sendo esses terceiros seus clientes, entra em colisão com o cumprimento de deveres deontológicos, quais sejam a dignidade e independência do Advogado - artigos 89.º do EOA - , o dever de segredo profissional a que está sujeito - artigo 92.º do EOA-, favorecendo, ainda, o aparecimento de situações de conflitos de interesses - artigo 99.º do EOA.

 

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso parecer.

 


[1] Participação datada de 06-04-2022

[2] Leia-se, nesse sentido, José Pulo Ribeiro de Albuquerque e Carlos Alberto Casimiro Nunes, na obra de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Lisboa: Universidade Católica Editora, página 161.

[3] Idem, ibidem, página 163.

[4] Tese defendida por Paulo Pinto de Albuquerque, in Cometário ao Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homen, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008, página 841, ao contrário de Cristina Libano Monteiro que defende que se trata de um crime material ou de resultado in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, página 446.

 

 

Emanuel Simões

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