Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 6/PP/2022-C

Parecer n.º 6/2022

Assunto: Patrono nomeado através de apoio judiciário/mandato no mesmo processo

 

Por comunicação escrita, datada de 28.03.2022, remetida através de correio eletrónico, dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exma. Senhora Dr.ª CFC..., Advogada, portadora da cédula profissional n.º …C, com escritório na Rua …, solicitou a emissão de parecer, ao abrigo do disposto no artigo 54.º, n.º 1, al. f) do EOA, e que coloca nos seguintes termos, que por facilidade na respetiva análise se transcreve:

Em 13 de janeiro de 2022, foi a requerente nomeada para patrocinar MJRAD..., no processo de Apoio Judiciário n.º …/2022, deferido na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo, bem como nomeação e pagamento faseado da compensação de patrona, sendo a pretensão divórcio, regulação das responsabilidades parentais e partilha, conforme cópia da notificação do deferimento e nomeação que aqui se juntam – docs. 1 e 2.

Após reunião com a beneficiária do apoio judiciário, chegou-se à conclusão de que havia fortes hipóteses de se alcançar acordo e, assim, evitar recorrer aos Tribunais, que sempre seria mais moroso e dispendioso para as partes.

Acordo a que se chegou, refira-se que com a colaboração do Ilustre Mandatário da parte contrária, tendo sido enviado, em 21 de março de 2022, o requerimento de divórcio, respetivos acordos e comprovativo de concessão de apoio judiciário para a Conservatória do Registo Civil de ….

Sucede que, no dia seguinte, portanto, em 22.03.2022, foi a ora requerente contactada telefonicamente por um funcionário da Conservatória, informando que a Sra. Conservadora não aceitava o apoio judiciário da Sra. MJRAD... (entre outros pontos), porquanto, mesmo que se ultrapassasse a questão de constar “divórcio sem consentimento do outro cônjuge” no campo “tipo de ação”, a Sra. Conservadora não aceita a modalidade de pagamento faseado.

De imediato foi a Sra. MJRAD... informada de tal facto, sendo esclarecida que, para poder ter acesso ao apoio judiciário, poder-se-ia requerer a alteração do tipo de ação junto da Segurança Social, com o risco de, mesmo assim, não ser posteriormente aceite pela Sra. Conservadora e ter se de impugnar esta decisão ou, então, teria de ser intentada a ação de divórcio em Tribunal, o que seria mais dispendioso e moroso e, em boa verdade, um verdadeiro absurdo, porquanto as partes estavam (e estão) de acordo.

Face à urgência da situação, não só formalizar a dissolução do casamento, como regular as responsabilidades parentais, a Sra. MJRAD... decidiu prescindir do apoio judiciário, tendo, para tanto enviado e-mail para o Centro Distrital de … da Segurança Social – doc. 3

Sucede que, prescindindo a Sra. MJRAD... do apoio judiciário, salvo melhor entendimento, fica a ora requerente sem possibilidade de pedir o pagamento dos seus honorários no âmbito do apoio judiciário.

Encontrando-se o processo na reta final, isto é, após mais de dois meses de reuniões, negociações, contactos diversos, vicissitudes junto a Ordem dos Advogados para prorrogação do prazo, elaboração do requerimento de divórcio e respetivos acordos, e pretendendo a Sra. MJRAD... manter-se representada pela ora requerente, como manifestou ser essa a sua vontade, não havendo, assim, motivo para fazer cessar o patrocínio, mas havendo, sim, a necessidade de acautelar a compensação económica adequada pelos serviços efetivamente prestados, vem a requerente pedir parecer no seguinte sentido:

Face ao supra exposto, pode a requerente apresentar nota de honorários à antiga patrocinada, que prescindiu do apoio judiciário (deferido na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento faseado da compensação de patrona) ou se tal representa violação de deveres para com a comunidade, mormente o disposto na al. h), do n.º2, do art. 90.º do EOA ou, ainda, se é feita uma interpretação extensiva às outras matérias do disposto sobre o processo penal no n.º 2 do art. 43.º da Lei 34/2004, de 29/07”.

 

O pedido de parecer formulado encontra-se instruído com três documentos, que correspondem à notificação dirigida à beneficiária da decisão proferida no âmbito da proteção jurídica pelo Instituto da Segurança Social, I.P., (doc. 1), ofício da Ordem dos Advogados com a comunicação de nomeação da Exma. Advogada Requerente (doc. 2), email dirigido ao Ex.mo Senhor Diretor do Serviço de Segurança Social de ... - Serviço de Apoio Judiciário, subscrito pela beneficiária do apoio judiciário com a comunicação/pedido de anulação do pedido de apoio judiciário requerido, invocando para o efeito a recusa na aceitação do pagamento faseado de custas, pela Conservatória do Registo Civil de … (doc.3).

 

Nos termos do que se encontra definido no artigo 54º nº 1 al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, o Conselho Regional de Coimbra tem competência para a emissão do parecer solicitado, porque configura questão de carácter profissional diretamente submetida à sua apreciação.

 

Tem sido entendido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados que questões de carácter profissional são todas as que assumem natureza estatutária, resultantes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas do Estatuto, bem como, do Regime Jurídico das Sociedades de Advogados e de todo o leque de normas regulamentares, pelo que, se procede à emissão de parecer nos seguintes termos:

 

Do quadro fáctico enunciado e supra transcrito, resulta que, a Exma. Advogada Requerente foi nomeada no âmbito do sistema do apoio judiciário para patrocinar a beneficiária MJRAD..., no processo de Apoio Judiciário n.º …/2022, deferido na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo, bem como nomeação e pagamento faseado da compensação de patrona, sendo a pretensão da beneficiária a proposição da ação de divórcio litigioso (divórcio sem consentimento de outro cônjuge), conforma se alcança da exposição efetuada e dos documentos que instruem o presente pedido de parecer.

 

No âmbito do exercício do patrocínio judiciário e, em representação da beneficiária, a Exma. Advogada Requerente, após análise das circunstâncias subjacentes à pretensão da beneficiária e ponderação técnico-jurídica dos elementos do processo, conduziu o mesmo - de forma a atingir o fim que a sua representada pretendia - na modalidade de divórcio por mútuo consentimento, e nessa sequência, e com a sobredita finalidade, o processo foi remetido para a Conservatória do Registo Civil de ....

Sucede, no entanto, que a Senhora Conservadora não aceitou a modalidade de pagamento atribuída no âmbito do apoio judiciário – pagamento faseado de taxa de justiça – nesse seguimento, e conforme se extrai da exposição apresentada pela Exma. Advogada Requerente, ponderadas as pretensões em causa em cotejo com as regras processuais aplicáveis, foi definido que a solução ajustável à situação passaria por prescindir/anular o pedido de apoio judiciário formulado, e para o efeito a beneficiária do apoio judiciário formalizou a sua pretensão através de email dirigido ao Ex.mo Senhor Diretor do Serviço de Segurança Social de ..., Serviço de Apoio Judiciário, conforme documento que instrui o presente pedido de parecer ao qual foi atribuído o número 3.

 

Conforme resulta da cronologia normativamente estabelecida, e no sentido de ver acautelada a compensação económica adequada pelos serviços efetivamente prestados, a Exma. Advogada Requerente, no pedido de parecer que agora se emite – coloca e em síntese a seguinte questão: “(…) pode a requerente apresentar nota de honorários à antiga patrocinada, que prescindiu do apoio judiciário (deferido na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento faseado da compensação de patrona) ou se tal representa violação de deveres para com a comunidade, mormente o disposto na al. h), do n.º2, do art. 90.º do EOA ou, ainda, se é feita uma interpretação extensiva às outras matérias do disposto sobre o processo penal no n.º 2 do art. 43.º da Lei 34/2004, de 29/07”.

 

Ora, a ponderação da situação fáctica supra reproduzida para emissão de parecer solicitado assenta, sobretudo, na análise da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, na sua versão atualizada (Lei do Apoio Judiciário), que regula o Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais, e ainda na ponderação dos Princípios Deontológicos - conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico, que encontram consagração sobretudo, no Estatuto da Ordem dos Advogados, normas, que a Exma. Advogada Requerente, desde logo antecipa na sua exposição.

 

Um dos objetivos do Instituto de Apoio Judiciário é assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos, conforme preceitua desde logo o artigo 1.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, sob epígrafe - Finalidades.

O apoio judiciário abrange o patrocínio judiciário – nomeação e pagamento da compensação de patrono, pagamento e compensação de defensor oficioso, nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono, pagamento faseado da compensação de defensor oficioso e atribuição de agente de execução – e a assistência judiciária – dispensa da taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo.

 

O regime jurídico do sistema de proteção jurídica, prevê ainda os princípios e procedimentos aplicáveis ao patrono nomeado e, no âmbito do respetivo regime, no que à constituição de mandatário se refere, verifica-se que o impedimento à aceitação de mandato forense por defensor anteriormente nomeado, encontra previsão no nº 2 do artigo 43º, e dispõe esse normativo que, “O defensor nomeado não pode, no mesmo processo, aceitar mandato do mesmo arguido.”

A norma supra identificada é uma norma especial para o processo penal, como resulta do próprio título do capítulo IV em que se insere - Disposições especiais sobre processo penal – e, por conseguinte, para os demais âmbitos processuais - como é o caso do processo civil - não existe uma norma de conteúdo idêntico.

 

Entende-se, no entanto, que, a citada norma pretende acautelar os interesses do arguido, no sentido de que nenhuma vantagem trará a constituição de mandatário no mesmo processo onde o mesmo foi nomeado, e ainda que essa disciplina resulta do dever imposto aos advogados de não aceitar mandato ou prestação de serviços profissionais que não resulte da escolha direta e livre do mandante ou interessado, principio que encontra consagração estatutária no EOA como infra se pretende demostrar.

 

Reportando-nos assim ao caso concreto, e embora se entenda que a Lei do apoio judiciário não contem uma norma específica adaptada ao processo civil, que regule as situações de constituição de mandatário, como sucede especificamente no âmbito aplicável ao processo penal, o Estatuto da Ordem dos Advogados contém normativos ajustados à situação em análise pois que, como é evidente, toda a disciplina de deontologia profissional, contida nos artigos do EOA vincula, o advogado que seja nomeado patrono oficioso.

 

Assim e com interesse para a presente discussão importa ter em consideração o disposto nos artigos 90º e 98.º do EOA, sendo estas normas verdadeiras decorrências dos princípios gerais previstos no artigo 88º do mesmo diploma.

 

Recorrendo ao disposto no n.º 1 do artigo 88º do EOA, temos que, “(…) o advogado deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem.

Constituindo afloramento deste princípio geral as disposições relativas, designadamente, aos deveres do advogado para com a comunidade, onde encontra previsão a proibição de angariação de clientela, pois que, e de entre os deveres elencados no EOA, resulta do preceituado na alínea h) do n.º 2 do artigo 90.º que o advogado tem o dever de “não solicitar clientes, por si ou por interposta pessoa”, sendo esta uma regra que deve pautar o comportamento do advogado no exercício da sua atividade.

O Advogado tem um papel importante enquanto servidor da Justiça, que lhe impõe uma conduta social e ética de reconhecida importância, estando-lhe vedados comportamentos que vulgarizem o exercício da advocacia.

 

Resulta ainda do n.º 1 artigo 98.º do EOA que, “O advogado não pode aceitar o patrocínio ou a prestação de quaisquer serviços profissionais se para tal não tiver sido livremente mandatado pelo cliente (…)”, uma vez que, tal forma de escolha é a única que garante a necessária relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, como impõe a disciplina jurídica prevista na citada norma, pois devem ser os clientes a dirigirem-se ao Advogado com vista ao estabelecimento da relação de patrocínio.

 

Com esta limitação procura-se também defender a dignidade da profissão, a independência e o decoro.

 

E, ao preterir estas regras e princípios, o patrono fica sujeito a consequências disciplinares, próprias do seu Estatuto Profissional, e emergentes das normas estatutárias a que supra se faz referência.

 

Ora, o procedimento tendente à nomeação de patrono ao requerente do apoio judiciário na modalidade de patrocínio judiciário, não está dependente da escolha direta e livre do beneficiário da proteção jurídica, uma vez que, a nomeação traduz uma indicação de patrono através de um ato exterior e alheio à esfera volitiva do beneficiário e a ser praticado por terceiro – considerando que a nomeação é efetuada pela Ordem dos Advogados, de forma aleatória e automática, através de sistema eletrónico (SInOA) – cfr artigo 45º, n.º1 da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na sua atual redação e artigo 2º da Portaria n.º 10/2008, de 03 de Janeiro, que Regulamenta a Lei de Acesso ao Direito - ato com o qual o beneficiário do apoio judiciário terá, em princípio, que se conformar.

 

Temos assim que, a aceitação de mandato judicial por advogado anteriormente nomeado patrono no mesmo processo, conforme se verifica, não resulta de escolha livre e direta do respetivo beneficiário/interessado.

E neste conspecto, resulta das normas estatutárias aplicáveis que é dever do advogado não aceitar o mandato que não resulte de escolha direta e livre pelo mandante (cfr. artº.98º nº. 1 do Estatuo da Ordem dos Advogados).

 

Perante o exposto, apresenta-se-nos, assim, como sufragável o entendimento de que, a apresentação de nota de honorários à antiga patrocinada – o que desde logo pressupõe a constituição prévia de mandato judicial pela via da procuração forense - ato unilateral, pelo qual o mandante (cliente) confere ao mandatário (advogado) poderes de representação - colide manifestamente, com o princípio da dignidade da profissão, quer pelo facto de configurar angariação de clientela, em violação da alínea h) do n.º 2 do artigo 90.º, quer pela violação do princípio da escolha livre do advogado pelo mandante ou interessado, como impõe o n.º 1 do artigo 98.º, ambos do EOA.

 

Conclusão:

i)  O Artigo 90º do Estatuto da Ordem dos Advogados dispõe, no seu nº 2, alínea h) que constituem, em especial, deveres do advogado para com a comunidade, a não solicitação de clientes, por si ou por interposta pessoa.

ii) Constitui dever estatutariamente consagrado do advogado, não aceitar mandato que não resulte de escolha direta e livre pelo mandante (cfr. artº.98º nº. 1 do Estatuo da Ordem dos Advogados).

iii) O Advogado nomeado patrono de um beneficiário no âmbito da proteção jurídica, fica impedido de exercer o mandato no mesmo processo para o qual foi nomeado oficiosamente, constituindo tal aceitação angariação de clientela, que atenta contra a dignidade da profissão, em violação da do artigo 88.º n.º 1, alínea h) do n.º 2 do artigo 90.º, do EOA, quer ainda pela violação do princípio da escolha livre do advogado pelo mandante ou interessado, como impõe o n.º 1 do artigo 98.º do EOA.

 

É este o nosso parecer.

 

Luísa Peneda Cardoso | Teresa Letras | Sílvia Carreira | Maria de Fátima Duro | Sandra Gil Saraiva | João Amado

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