Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 11/PP/2022-C

PARECER Nº 11/PP/2022-C

ASSUNTO: entrega de documentos ao cliente.

 

Por comunicação datada de 22-06-2022 dirigida a este Conselho Regional através de correio electrónico, veio a Sra. Dra. SRS…, Advogada, requerer pronúncia nos termos que aqui se transcrevem:

“(…)         1º- A ora requerente patrocinou um constituinte no âmbito de um processo penal, o qual possui nesse processo a qualidade de ofendido/assistente, tendo este apresentado a respetiva queixa no Tribunal no dia 19/02/2020.

2º- A procuração forense foi junta aos autos no dia 04/09/2020.

3º- O crime em causa no supra referido processo penal é o crime de injúrias, atendendo que os demais crimes foram arquivados pelo Ministério Público.

4º- Sucede que, no decurso do processo, mais concretamente no dia 18/05/2022, a ora requerente renunciou ao mandato que lhe foi conferido. 

5º- No dia 31/05/2022 o constituinte em causa, após diversos e-mails enviados à aqui subscritora (já esta havia renunciado ao mandato), solicitou-lhe o envio de cópia de uma carta e respetivo aviso de receção, que aquela havia elaborado, no dia 21/10/2019, no âmbito de uma prestação de serviços (carta de interpelação para pagamento de dívida).

6º- Para tal invocou que a referida cópia seria “para o caso de (ser necessário provar a boa fé de qualquer testemunha em tribunal)”.

7º- Referindo-se ao processo no qual a ora signatária renunciou ao mandato.

8º- Esclarece-se que a carta supra referida foi dirigida/remetida a um senhor que é um dos arguidos no processo em que renunciou ao mandato.

9º- Contudo, o teor da carta não está relacionado com os acontecimentos/factos do processo, nem com o crime pelo qual o arguido (nem qualquer um dos outros arguidos) vem acusado.

10º- Só agora, na data de 31/05/2022, veio aquele constituinte solicitar a cópia da carta, tendo já decorrido quase três anos após a elaboração do documento.

11º- Por ora a signatária não facultou cópia daquela carta, por a mesma não estar relacionada com o processo/crime em curso, não beneficiando no processo crime.

12º- E por a signatária entender que não tem obrigação de entregar, atendendo a que é um documento elaborado por si, da sua autoria e não um documento que lhe tenha sido entregue por aquele constituinte. 

Termos em que muito respeitosamente se requer a V. Exa. se digne emitir parecer sobre se a ora signatária deverá ou não de entregar a cópia da carta (e respetivo aviso de receção).”

 

Posteriormente, veio ainda a Sra. Dra., porquanto tal lhe foi solicitado, juntar cópia dos documentos a que fazia referência no seu pedido de parecer - carta de interpelação e respectivo aviso de recepção.              

 

Face ao disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 54.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e competindo a este Conselho Regional, no âmbito da sua competência territorial, pronunciar-se sobre questões de carácter profissional – que são as intrinsecamente estatutárias, ou seja, as que decorrem dos princípios, regras e praxes que comandam e orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente as que relevam das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por Lei e pelos órgãos da Ordem – cumpre emitir o solicitado parecer.

 

Questiona, pois, a Ilustre Colega se, a pedido de um cliente, cujo mandato já cessou, deve proceder à restituição de uma carta de interpelação que aquela elaborou em sua representação, bem como do respectivo aviso de recepção.

Vejamos,

Preceitua a norma contida no artigo 101.º da Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro (Estatuto da Ordem dos Advogados), sob a epígrafe “Valores e documentos do cliente”, o seguinte:

 

Valores e documentos do cliente

1 - O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objetos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesas, logo que tal lhe seja solicitado.

2 - Quando cesse a representação, o advogado deve restituir ao cliente os valores, objetos ou documentos deste que se encontrem em seu poder.

3 - O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção caa este prejuízos irreparáveis.

4 - Deve, porém, o advogado restituir tais valores e objetos, independentemente do pagamento a que tenha direito, se o cliente tiver prestado caução arbitrada pelo conselho regional.

5 - Pode o conselho regional, antes do pagamento e a requerimento do advogado ou do cliente, mandar entregar a este quaisquer objetos e valores quando os que fiquem em poder do advogado sejam manifestamente suficientes para pagamento do crédito. (nosso negrito)

Ora,

Se por um lado é inequívoco que, em regra, o (a) Advogado(a) deve restituir ao cliente os objectos, documentos e valores que por este lhe foram entregues e que são sua propriedade.

 

Por outro lado, importa aferir se a restituição de tais documentos é extensível aos que foram produzidos pelo (a) próprio Advogado(a) no exercício do seu mandato.

Isto é, se o (a) Advogado(a) também deve restituir ao cliente os documentos que resultam do seu trabalho e criatividade intelectual.

Ora, admitir que os documentos que resultam do trabalho e criatividade intelectual do Advogado são propriedade do cliente devendo, por consequência, serem restituídos ao mesmo após a cessação do respectivo mandato, consubstanciar-se-ia numa hipótese intolerável, que contrariaria o espírito do legislador.

A acrescer, se atentarmos no enunciado linguístico do artigo 101.º do EOA, apenas se poderá concluir que: por regra, findo o mandato, o(a) Advogado(a) apenas incorre na obrigação de entregar ao cliente o que, por direito, é propriedade deste, sendo que tal obrigação não se estende às peças processuais, cartas de interpelação ou outros documentos que advenham do trabalho e da criatividade intelectual do Advogado(a), ainda que tenham sido produzidos por conta do cliente.

De outra forma, estar-se-ia a criar uma obrigação deontológica que não tem respaldo na Lei, nos usos, nos costumes e nas tradições profissionais - artigo 88.º do EOA.

Sem prejuízo do supra exposto, admitimos que ao abrigo da parte final do disposto no n.º 3 do artigo 101.º do EOA, em situações extremas e sobejamente justificadas, o direito do Advogado(a) possa ceder em relação ao direito do cliente.

Porém, entendemos que tal cedência apenas deverá ocorrer no caso de tais documentos e valores serem estritamente necessários para prova de determinado direito do cliente ou no caso da retenção ou não entrega dos mesmos venha a causar prejuízos irreparáveis ao cliente, o que não foi demostrado no caso que aqui nos ocupa.

E assim sendo, a conduta da Ilustre Colega não merece, pois, censura.

 

CONCLUSÕES

I.                    As peças processuais, cartas de interpelação ou outros documentos que resultem do trabalho e criatividade intelectual do Advogado(a), não devem ser considerados documentos ou valores do cliente, ao abrigo do disposto no artigo 101.º do EOA.

II.                  Por regra, o Advogado(a) não é obrigado a entregar ao cliente os documentos que resultem do seu trabalho e criatividade intelectual, ainda que os tenha produzido por conta do mesmo.

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso parecer.

 

Emanuel Simões

Topo