Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 16/PP/2022-C

Parecer n.º 16/PP/2022-C
Assunto: Conflito de Interesses


Por comunicação escrita, datada de 13 de Setembro de 2022, remetida através de correio electrónico dirigido ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, o Exmo. Senhor Dr. MC…, Advogado, portador da cédula profissional nº …C, com domicílio profissional no Bairro …, solicitou a emissão de parecer sobre a questão que o próprio sintetiza do modo transcrito: “Pode um advogado assumir o mandato de progenitor em processo pendente de regulação do exercício das responsabilidades parentais quando prestou anteriormente uma consulta jurídica á progenitora do menor tendo elaborado minuta de requerimento de divórcio e de acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais?”

Nos termos do disposto no artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro de 2015 (doravante designado abreviadamente EOA), compete aos Conselhos Regionais a pronúncia abstracta sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua circunscrição territorial.
Ora, a matéria colocada à apreciação deste Conselho Regional subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional, atinente à existência de eventual conflito de interesses, pelo que, cumpre assim, emitir o parecer solicitado.

O pedido de parecer dirigido a este Conselho Regional tem subjacente a factualidade que ipsis litteris se reproduz:

“Venho por este meio solicitar parecer sobre a seguinte questão: “Pode um advogado assumir o mandato de progenitor de menor em processo pendente de regulação do exercício das responsabilidades parentais quando prestou anteriormente uma consulta jurídica á progenitora do menor tendo elaborado minuta de requerimento de divórcio e de acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais?”

De facto, enquanto advogado em pratica individual, prestei há cerca de 3 meses uma consulta jurídica a uma senhora sendo o tema relativo ao exercício das responsabilidades parentais. Nessa consulta foi solicitada a elaboração de minuta de requerimentos de divórcio por mútuo consentimento, incluindo de acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, o que foi feito e enviado á referida senhora. Após tal, mais nenhum contacto tive com a mesma. Sucede que, recentemente, fui contactado por um senhor, o qual constatei que era o pai do menor fruto da relação com a senhora a quem tinha prestado consulta jurídica anteriormente. O intuito é que junte procuração a seu favor no processo pendente em tribunal de regulação do exercício das responsabilidades parentais, o qual foi instaurado por aquela, representada por outro advogado.

Assim, solicito um parecer breve quanto á questão supra colocada e se existe algum impedimento ou conflito de interesses em assumir o patrocínio forense na situação relatada.”


A questão colocada pelo Advogado Requerente é subsumível ao denominado “Conflito de Interesses”, regido estatutariamente no artigo 99º do EOA, cuja previsão resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 89º do EOA, de acordo com o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

Com efeito o Advogado, no exercício da respectiva profissão está vinculado ao rigoroso cumprimento dos deveres plasmados no EOA, impondo-se a sua escrupulosa observância de molde a assegurar e garantir a dignidade e prestígio da profissão.

O artigo 208º da Constituição da República Portuguesa e artigo 88º do EOA, encerram a essencialidade do Advogado à Administração da Justiça, conferindo-lhe um conjunto de direitos e deveres para alcançar tal desiderato. O Advogado enquanto participante essencial à Administração da Justiça deve assumir um “comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem”. De entre as obrigações profissionais do Advogado, ressaltam a honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade.

A advocacia é uma actividade de natureza liberal, mas que prossegue um notório e determinante interesse público o que lhe confere uma grande relevância social.

Na senda do interesse público da Advocacia, surge o instituto do conflito de interesses, como imperativo de defesa da comunidade em geral da irrefutável independência do Advogado no exercício da profissão, mesmo em relação ao cliente e aos seus próprios interesses, da defesa do sigilo profissional na medida em que algumas situações proibidas poderiam fazê-lo perigar e na confiança, decoro e lealdade que tem de existir entre Advogado e cliente, pressupostos do exercício do mandato forense.

O conflito de interesses, como já se referiu, radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado, apelando, numa primeira linha, à consciência profissional do Advogado, ao seu decoro e dignidade profissional, devendo em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de conflito de interesses dos seus clientes.

A propósito dos deveres impostos ao Advogado nas relações estabelecidas com os seus clientes, dispõe o artigo 99º do EOA, as situações concretas em que este deve recusar o patrocínio face à iminência ou mera possibilidade de ver diminuída a respectiva independência, confiança, lealdade ou mesmo contender o dever de sigilo profissional.

Assim o Advogado deve recusar ou abster-se de aceitar o patrocínio sempre que se verifique qualquer uma das seguintes situações, elencadas no artigo 99º do EOA:
“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”


No caso em análise e sem maiores considerandos, é inequívoco que o Advogado Requerente aquando da redacção do acordo de regulação das responsabilidades parentais actuou em representação dos interesses da progenitora, não podendo agora, representar o progenitor em acção judicial pendente que versa sobre a regulação do exercício das responsabilidades parentais reportadas à mesma criança.

No cotejo entre a previsão legal supra citada e a situação exposta pelo Advogado Requerente temos por certo que este tem necessariamente de recusar o patrocínio do progenitor por se tratar de questão conexa em que já interveio na qualidade de representante da progenitora, in casu, parte contrária. (nº 1 e nº 2 do artigo 99º do EOA)

Sufragamos, a este propósito, o entendimento de que o Advogado cujo patrocínio teve por objecto uma concreta questão (objecto de acção judicial ou não), não poderá, findo o tratamento da mesma, intervir noutro pleito que se encontre em estreita conexão com aquela, assumindo a representação da parte contrária titular de interesses opostos.

No ademais e ainda que não se encontrassem indubitavelmente preenchidos os pressupostos de recusa do patrocínio previstos no nº 1 e nº 2 do artigo 99º do EOA, sempre o Advogado consulente se deveria abster de aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, atenta a conflitualidade certamente existente entre os interesses da progenitora e do progenitor numa acção judicial destinada à regulação das responsabilidades parentais.

Na consideração que o Advogado deve estar, sempre e em qualquer circunstância, acima de qualquer suspeita, entendemos que, por razões de preservação da isenção, da independência, de salvaguarda do dever de sigilo, de decoro, de probidade, de dignidade e prestígio da profissão o Advogado Requerente se deve abster de aceitar o patrocínio do progenitor na acção de regulação de responsabilidades parentais.

Entendemos assim que, no caso concreto, por existência de evidente conflito de interesses, o Senhor Advogado, terá que se abster de aceitar o patrocínio do progenitor na acção destinada a regulação das responsabilidades parentais.

 

Em suma,

a) Nos termos do preceituado no artigo 99º, nº 1, nº 2 do EOA impõe-se ao advogado um dever de recusa do patrocínio: I) de questões em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou que seja conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária; II) contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado;
b) O nº 3 do mesmo preceito legal consigna que o Advogado “não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses dos clientes”;
c) Advogado cujo patrocínio teve por objecto uma concreta questão (objecto de acção judicial ou não), não poderá, findo o tratamento da mesma, intervir noutro pleito que se encontre em estreita conexão com aquela, assumindo a representação da parte contrária titular de interesses opostos.
d) No caso vertente é inequívoco que os interesses em discussão entre a progenitora (anteriormente representada pelo Advogado consulente) e o progenitor, sobre a mesma questão (conexa) de regulação das responsabilidades parentais são antagónicos, pelo que, não pode o Advogado assumir agora o patrocínio do progenitor no âmbito da acção judicial;
e) Concluindo-se, assim, que caso o Advogado Consulente tenha assumido a representação do progenitor na sobredita acção judicial, deverá, em obediência ao preceituado na parte final do nº 4 do artigo 99º do EOA cessar de imediato o patrocínio.

 

É este o nosso parecer.

 

Sandra Gil Saraiva

Topo