Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 20/PP/2022-C

Processo de Parecer n.º 20/PP/2022-C

 

Assunto: Incompatibilidade no exercício simultâneo da Advocacia e das funções de canal de denúncia interna nos termos e para os efeitos previstos na Lei nº 93/2021 de 20 de Dezembro.

 

Mediante comunicação de correio electrónico datada de 3 de Novembro de 2022 dirigida ao Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exma. Senhora Advogada MJC…, titular da Cédula Profissional …c, e domicílio profissional na Rua …, solicitou a emissão de parecer quanto à eventual incompatibilidade de funções no exercício da advocacia em simultâneo com a função de responsável pela recepção e tratamento de denúncias ao abrigo da Lei nº 93/2021 de 20 de Dezembro, colocando a questão nos termos que por uma questão de fidelidade se transcrevem:

 

“(…) vem pelo presente, ao abrigo do disposto no art. 54º, nº 1, al. f) do EOA, requerer a V.Exª se digne emitir parecer quanto à eventual existência de incompatibilidade na seguinte situação:

  1. A Advogada signatária é mandatária de uma sociedade comercial;
  2. Tal sociedade comercial pretende que a advogada signatária seja responsável pela recepção e tratamento das denúncias que possa vir a receber, ao abrigo da Lei nº 93/2021 de 20 de dezembro, que estabelece o regime geral de protecção de denunciantes de infracções.
  3. Coloca-se a questão de saber se existirá alguma incompatibilidade entre as duas funções, uma vez que no âmbito do tratamento das denúncias poderão ser ouvidas as partes que denunciam as eventuais infracções, as quais, em última instância, poderão dar origem a processos crime. E se no âmbito destes mesmos processos crime, a advogada signatária, tendo tratado as denúncias, poderá intervir como mandatária da sociedade comercial denunciada.

Nestes termos, requer a V.Exª se digne emitir parecer quanto à possibilidade de existir incompatibilidade numa situação em que a advogada é simultaneamente mandatária e responsável pela recepção e tratamento de denúncias ao abrigo da Lei 93/2021, de 20 de dezembro.”

 

Em face do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro (doravante designado abreviadamente por EOA), o Conselho Regional de Coimbra, deve pronunciar-se, no âmbito da sua competência territorial, sobre questões de carácter profissional, encontrando-se, assim, cumpridos os pressupostos formais para emissão do parecer solicitado, razão que determinou a respectiva distribuição à aqui Relatora.  

 

Estatutariamente a matéria dos impedimentos e incompatibilidades para o exercício da advocacia encontra-se regulada nos artigos 81º e seguintes do EOA.

As regras referentes às incompatibilidades e impedimentos visam, genericamente, a salvaguarda da isenção, independência e dignidade da profissão e encontram previsão legal nos artigos 81º e seguintes do EOA.

 Sob a epígrafe “Princípios Gerais”, dispõe o nº 1 do artigo 81º que “o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com a plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável”, prescrevendo o nº 2 do mesmo preceito legal que “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possa afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

Da norma citada resulta uma cláusula geral que visa prosseguir a dupla finalidade de defesa não só da relação do advogado com o seu cliente (na dimensão da isenção e independência), mas também da imagem da profissão na sociedade (dignidade).

Neste conspecto conclui-se que existirá incompatibilidade sempre que a actividade, cargo ou função que o Advogado se proponha exercer afecte, ou seja susceptível de afectar, a sua isenção e independência e a dignidade da profissão, ou de algum modo contenda com a autonomia técnica, isenção e independência que se exige ao Advogado no exercício da sua profissão de eminente interesse público.

A este propósito e sintetizando, citamos Orlando Guedes da Costa, sendo que, como bem refere o autor “A independência do Advogado traduz-se em plena liberdade perante o poder, a opinião pública, os tribunais e terceiros, não devendo o Advogado depender, em momento algum, de qualquer entidade. A dignidade do advogado tem que ver com a sua conduta no exercício da profissão e no seu comportamento público, com a probidade e com a honra e consideração pública que o Advogado deve merecer.”[1]

O artigo 82º, nº 1 do EOA, elenca a título meramente exemplificativo, por decorrência da utilização do advérbio “designadamente”, alguns cargos, funções e actividades que se consideram incompatíveis com o exercício da advocacia, concluindo-se, assim que, no que respeita ao elenco ali consignado, dúvidas não restam quanto à incompatibilidade com o exercício da advocacia.

Porém, existem outras funções cujo exercício contende com a prática da advocacia nos moldes estatutariamente previstos.

Analisadas as diversas alíneas do artigo 82º, nº 1 do EOA, constata-se que inexiste qualquer previsão expressa de incompatibilidade do exercício da advocacia com as funções de encarregada da recepção e tratamento das denúncias visadas pela Lei nº 93/2021 de 20 de Dezembro, o que bem se compreende, na medida em que a criação de tal figura é posterior à aprovação e entrada em vigor da actual redacção do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Como se disse supra, a existência de incompatibilidade não se esgota na enunciação não taxativa do sobredito preceito legal, impondo-se, assim, com reporte ao caso em análise aferir da eventual presença de uma incompatibilidade de natureza funcional.

Para o efeito e sem a pretensão de efectuar nesta sede uma análise exaustiva do diploma 93/2021 de 20 de Dezembro, impõem-se, efectuar uma breve resenha das respectivas imposições, de cujo conteúdo se extrai a conclusão que, a título antecipatório, se considera de inequívoca existência de incompatibilidade no desempenho das duas funções em apreciação no caso que nos ocupa.

 A Lei nº 93/2021 de 20 de Dezembro veio estabelecer o regime geral de protecção de denunciantes de infracções, transpondo para o direito nacional a Directiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, de 23 de Outubro de 2019 relativa à protecção das pessoas que denunciam violações do direito da União.

O mencionado diploma legal prevê e regula os mecanismos de admissibilidade e procedimentos aplicáveis às denúncias de infracções, efectuadas com fundamento em informações obtidas no âmbito da actividade profissional, mais consignando os mecanismos de defesa dos denunciantes.

Nos exactos termos consignados no artigo 2º, nº 1 da Lei nº 93/2021, as denúncias podem incidir sobre um vasto leque de infracções já cometidas, em curso, ou cujo cometimento possa razoavelmente prever-se, sem olvidar as tentativas de ocultação das mesmas, que advenham ao conhecimento do denunciante por informações obtidas no seu contexto profissional.

Beneficiam, assim, da protecção conferida ao denunciante, as pessoas físicas que denunciem ou divulguem publicamente infracções com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua actividade profissional, independentemente da natureza dessa actividade e do sector em que é exercida, sendo irrelevante que, tal actividade se encontre em curso, já tenha cessado, ou nem sequer se tenha constituído. (abrangendo aqui as infracções baseadas em informações obtidas ou conhecidas durante o processo de recrutamento, designadamente na fase de negociação pré-contratual de uma relação profissional constituída ou não).

Muito sumariamente, consideram-se infracções relevantes para denúncia ao abrigo do mencionado diploma legal, as relacionadas com o incumprimento de legislação no domínio da contratação pública, serviços, produtos e mercados financeiros, prevenção do branqueamento de capitais ou financiamento de terrorismo, segurança e conformidade dos produtos, segurança dos transportes, protecção do ambiente, protecção contra radiações e segurança nuclear, segurança dos alimentos, saúde e bem-estar animal, saúde pública, defesa do consumidor, protecção da privacidade e dados pessoais, segurança da rede e dos sistemas de informação, actos ilegais e lesivos do mercado interno e dos interesses financeiros da União Europeia e criminalidade violenta e organizada.

O diploma legal estabelece múltiplas obrigações e deveres tendentes à protecção dos denunciantes, aplicáveis às pessoas colectivas que empreguem 50 ou mais trabalhadores, incluindo o Estado e demais pessoas colectivas de direito público, ou, independentemente do número de trabalhadores, às pessoas colectivas abrangidas pela legislação relativa a serviços, produtos e mercados financeiros, prevenção de branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, segurança dos transportes e protecção do ambiente. (artigo 8º). Para as mencionadas entidades institui-se, designadamente:

  1. A obrigação de criação de um canal de denúncia interna, que permita a efectivação da denúncia incluindo anónima, por escrito ou verbalmente por parte de qualquer trabalhador;
  2. Obrigação de notificar o denunciante no prazo de 7 dias da recepção da denúncia e de o informar da respectiva admissibilidade e modo de apresentação de denúncia externa às autoridades competentes, identificadas no artigo 12º do diploma;
  3. Obrigação de no prazo máximo de três meses comunicar ao denunciante as medidas adoptadas para dar seguimento à denúncia;
  4. Dever de confidencialidade quanto à identidade dos denunciantes;
  5. Dever de registar e conservar as denúncias recebidas por um período mínimo de cinco anos;
  6. Proibição da prática de quaisquer actos retaliatórios contra os denunciantes;
  7. Protecção jurídica dos denunciantes;

 

O artigo 9º da Lei nº 93/2021, de 20 de Dezembro, sob a epígrafe “características dos canais de denúncia interna”, preceitua o que a seguir se transcreve ipsis litteris pela sua relevância para a compreensão, enquadramento e pronúncia quanto à questão em análise:

 

“1 – Os canais de denúncia interna permitem a apresentação e o seguimento seguros de denúncias, a fim de garantir a exaustividade, integridade e conservação da denúncia, a confidencialidade da identidade ou o anonimato dos denunciantes e a confidencialidade da identidade de terceiros mencionados na denúncia, e impedir o acesso de pessoas não autorizadas.

2 – Os canais de denúncia interna são operados internamente, para efeitos de recepção e seguimento das denúncias, por pessoas ou serviços designados para o efeito, sem prejuízo do número seguinte.

3 – Os canais de denúncia podem ser operados externamente, para efeitos de recepção de denúncias.

4 – Nas situações previstas nos nº (s) 2 e 3, deve ser garantida a independência, a imparcialidade, a confidencialidade, a protecção de dados, o sigilo e a ausência de conflitos de interesses no desempenho das funções

 

Do supra citado preceito decorre de modo inabalável que o responsável (ou responsáveis) pela recepção, tratamento e seguimento das denúncias, à semelhança do advogado, deve exercitar as suas funções de forma isenta, livre, independente, imparcial e confidencial.

Considerando o abrangente leque de matérias e condutas passíveis de denúncia é credível que não raras vezes (senão a maioria) a denunciada seja a entidade patronal (pessoa colectiva), sendo que, não só em face do teor literal do nº 4 do artigo 9º da Lei nº 93/2021 de 20 de Dezembro, mas também, pelo próprio escopo de protecção dos denunciantes subjacente ao diploma legal em causa, à entidade responsável pela recepção, tratamento e encaminhamento das denúncias impõe-se uma actuação imparcial e desprendida de quaisquer circunstâncias externas susceptíveis de condicionar a sua actuação e consequente prossecução do escopo do diploma legal, mesmo que, as denúncias sejam apresentadas contra a empresa.

A Advogada consulente é mandatária da empresa, sendo evidente que, no regular desempenho do seu mandato, quer no plano judicial quer extrajudicial, representa e prossegue, sempre, os interesses da sua cliente.

Em face do expendido e salvo melhor opinião, a Advogada consulente dificilmente estará apta a garantir a sua isenção e independência no exercício das funções de responsável pela recepção e tratamento de denúncias no plano da protecção do denunciante que a Lei nº 93/2021 de 20 de Dezembro visa assegurar, sempre que a denunciada seja a sua cliente, atenta a premente necessidade de prossecução e defesa dos interesses da sua representada, corolário do com desempenho do mandato forense.

É indubitável que o exercício simultâneo das duas actividades aqui em causa é funcionalmente incompatível, nem sequer se concebendo que, a Advogada requerente aquando da recepção de quaisquer denúncias em que a visada fosse a sua cliente, não assumisse, ab initio, uma posição parcial de defesa dos interesses desta em detrimento do adequado tratamento da situação no âmbito do exercício da outra função desempenhada.

O que redunda numa impossibilidade concreta de exercício das duas funções em condições que lhe são exigidas de independência e imparcialidade.

Neste conspecto e sem maiores considerandos, concluímos que existe uma manifesta incompatibilidade de natureza funcional entre o exercício da advocacia e o desempenho das funções de canal de denúncia interna tal como configurada no artigo 9º da Lei 93/2021 de 20 de Dezembro, por parte da Advogada Consulente, em face do preceituado no artigo 81º, nº 2 do EOA, porquanto, o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possa afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.

 

Conclusões:

 

1 – A previsão estatutária de regras aplicáveis em matéria de incompatibilidades de exercício de outras funções em simultâneo com a Advocacia visa salvaguardar a isenção, independência e dignidade da profissão;

2 – O artigo 82º, nº 1 do EOA contém um elenco não taxativo de funções incompatíveis com o exercício da advocacia;

3 – Ao abrigo do consignado no artigo 81º, nº 2 do EOA existirá incompatibilidade sempre que a actividade, cargo ou função que o Advogado se proponha exercer afecte, ou seja susceptível de afectar, a sua isenção e independência e a dignidade da profissão, ou de algum modo contenda com a autonomia técnica, isenção e independência que lhe são exigíveis;

4 – O regular desempenho do mandato forense conferido por uma empresa à Advogada é funcionalmente incompatível com o desempenho na mesma empresa das funções de canal interno responsável pela recepção e tratamento de denúncias ao abrigo da Lei nº 93/2021 de 20 de Dezembro, não só pela estipulação prevista no nº 4 do artigo 9º do sobredito diploma, mas também, porque objectivamente se afigura impossível a compatibilidade de tais actividades de modo isento e imparcial nas situações em que estejam em causa interesses manifestamente controvertidos.

 

É este o nosso parecer.



[1] Cit. “Direito Profissional do Advogado”, pág. 153, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

 

Sandra Gil Saraiva

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