Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 21/PP/2022-C

Processo de Parecer n.º 21/PP/2022-C

Assunto: Documentos a entregar ao cliente

 

Por comunicação escrita, enviada via correio registado e remetida ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Ilustre Colega, Senhora Dr.ª AM…, Advogada, com cédula profissional n.º …C e domicílio profissional na Rua …, solicita a emissão de parecer sobre questão que coloca nos seguintes termos:

 

“À Advogada requerente já foi solicitado pelos seus clientes, por diversas vezes, directamente ou por intermédio do seu escritório, o envio de cópias de peças processuais por si elaboradas – desde defesas escritas em processos de contraordenação, a simples requerimentos, a Petições Iniciais, Contestações ou outras peças de complexidade mais elevada. O mesmo já sucedeu, inclusivamente, com outros Colegas de escritório.

É entendimento da Advogada requerente que não se encontra obrigada a facultar tais elementos. Na verdade, e salvo o devido respeito por opinião diversa, entende a requerente que a questão formulada diz respeito às relações entre advogado e cliente, encontrando a sua previsão legal no artigo 101º do Estatuto da Ordem dos Advogados. De acordo com esta norma, entende a Advogada requente que, para que se possa considerar a existência de uma obrigação de facultar cópias de tais elementos, os mesmos teriam de ser pertença do cliente ou, em alternativa, ser a sua entrega necessária em virtude da necessidade premente e atendível do cliente. Não sendo o caso, a simples disponibilidade da Mandatária em facultar a consulta presencial de todos os elementos será suficiente para acautelar os interesses do cliente, não sendo tal política contrária ao Estatuto da Ordem dos Advogados.

Acreditando ser uma questão pertinente, e porque nem sempre a resposta apresentada aos clientes é acolhida pelos mesmos, vem requerer a V.ªs Ex.ªs a emissão de parecer.”

 

O Conselho Regional de Coimbra tem competência para a emissão do parecer solicitado, não apenas por estar em causa situação verificada em local pertencente à sua área de competência territorial, mas ainda porque configura questão de carácter profissional diretamente submetida à sua apreciação, nos termos do previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 54º do EOA.

Tem sido entendido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados, que questões de carácter profissional são todas as que assumem natureza estatutária, resultantes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas do Estatuto, bem como, de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados.

 

Assim, do cotejo da referida comunicação, resulta que a questão formulada se insere na apreciação das normas Estatutárias relativa aos deveres do Advogado para com os seus clientes, conforme aliás reflexão efetuada pela Exma. Advogada na comunicação que endereçou a este Conselho Regional.

Pelo que, impõem-se saber se constitui dever do advogado (para com os seus clientes) facultar cópia das peças processuais, requerimentos ou outros documentos, elaborados por advogado e que resultem do exercício do seu mandato.

 

Refira-se, que a questão dirigida a este Conselho Regional para emissão de parecer, não se subsume a uma concreta situação, mas, e de um modo geral, à (in)existência da obrigação de entrega de cópia desses documentos, quando solicitado pelo cliente, e neste conspecto, limitar-nos-emos a refletir e interpretar as normas estatutárias que regulam a matéria.

 

Ora, o Estatuto da Ordem dos Advogados, no que se refere à relação entre o advogado e o cliente, preceitua na norma contida no artigo 101.º sob a epígrafe “Valores e documentos do cliente”, o seguinte:

Valores e documentos do cliente

1- O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objetos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesas, logo que tal lhe seja solicitado.

2 - Quando cesse a representação, o advogado deve restituir ao cliente os valores, objetos ou documentos deste que se encontrem em seu poder.

3 - O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis.

4 - Deve, porém, o advogado restituir tais valores e objetos, independentemente do pagamento a que tenha direito, se o cliente tiver prestado caução arbitrada pelo conselho regional.

5 - Pode o conselho regional, antes do pagamento e a requerimento do advogado ou do cliente, mandar entregar a este quaisquer objetos e valores quando os que fiquem em poder do advogado sejam manifestamente suficientes para pagamento do crédito.”

 

Assim, resulta inequivocamente da supracitada norma Estatutária que, findo o mandato, o Advogado deve restituir os valores, objetos ou documentos que lhe foram entregues/confiados pelo cliente e que, se encontrem em seu poder, conforme preconiza o n.º 2 do artigo.

A interpretação da referida norma conduz, inquestionavelmente, ao dever do advogado na

obrigação de restituição de tudo quanto pertença ao cliente.

 

Por outro lado, decorre do n.º 3 do citado normativo, as situações em que, cessado o mandato, é legítima a retenção desses documentos, no entanto, o advogado apenas pode exercer direito de retenção relativamente àqueles valores, objetos ou documentos (os referidos no n.º 2), que lhe foram confiados pelo cliente e que não sejam necessários para a prova do direito do cliente, ou relativamente àqueles cuja retenção não cause prejuízos irreparáveis, (cfr. n.º 3 artigo 101.º do EOA).

 

Assim, e salvo melhor entendimento, a obrigação de entrega ao cliente de documentos que tenham sido confiados ao advogado, não se estende, em regra, às peças processuais ou a outros documentos que resultem do trabalho intelectual do Advogado e produzidos no desempenho do mandato, quer no plano judicial quer extrajudicial.

Pois, o conceito de “valores e documentos do cliente” nos termos que se encontram definidos no artigo 101.º do EOA, e o alcance da citada norma, não compreende, em regra, os documentos elaborados por advogado, nomeadamente, as peças processuais, tal como, esses documentos não assumem valor e relevância nas situações em que é lícito o exercício do direito de retenção pelo advogado, para garantia das obrigações em causa e estabelecidas no n.º 3 do artigo 101.º do EOA.

 

Assim, em regra, a entrega, ao cliente, ainda que mediante solicitação, de cópia de peças processuais ou de outros documentos que resultem do trabalho intelectual do advogado, e produzidos no desempenho do mandato, não encontra fundamento no Estatuto da Ordem dos Advogados, enquanto uma obrigação do advogado.

 

Em questão similar pronunciou-se recentemente este Conselho Regional, no PARECER Nº 11/PP/2022-C relatado pelo Ilustre Colega Emanuel Simões, e que de um modo esclarecedor formulou as seguintes conclusões:

I. As peças processuais, cartas de interpelação ou outros documentos que resultem do trabalho e criatividade intelectual do Advogado(a), não devem ser considerados documentos ou valores do cliente, ao abrigo do disposto no artigo 101.º do EOA.

 II. Por regra, o Advogado(a) não é obrigado a entregar ao cliente os documentos que resultem do seu trabalho e criatividade intelectual, ainda que os tenha produzido por conta do mesmo.”

 

Acresce que, o legítimo interesse do cliente em aceder aos documentos de um processo em que é parte, encontra-se garantida pelas leis do processo que regulam a publicidade e o acesso aos processos judiciais.

Nos termos do artigo 163.º, n.º 2, do Código de Processo Civil “A publicidade do processo implica o direito de exame e consulta do processo por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, e na secretaria, bem como o de obtenção de cópias ou certidões de quaisquer peças nele incorporadas, pelas partes, por qualquer pessoa capaz de exercer o mandato judicial ou por quem nisso revele interesse atendível”.

 

E, a Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, que regulamenta a tramitação eletrónica dos processos nos tribunais judiciais e a respetiva consulta, prevê no artigo 27.º-A, sob epígrafe “consulta de processos pelas partes e por quem revele interesse atendível”, a possibilidade de qualquer cidadão aceder e consultar os processos em que é parte e que corram nos tribunais judiciais e nos tribunais administrativos e fiscais.

 

Assim é garantido às partes (ao cliente), o acesso aos atos processuais e aos documentos que fazem parte do processo, onde se incluem as peças processuais e requerimentos elaborados pelo respetivo mandatário.

 

Ainda, e porque julgamos com relevância para a análise da questão suscitada pela Ilustre Advogada, e percorrendo, as normas ínsitas no Estatuto da Ordem dos Advogados, designadamente, as previstas no Título III - Capítulo II sob a epígrafe “Relações com os clientes” não se vislumbra nos normativos inseridos no citado Capítulo, o dever do advogado em fazer aquela entrega e/ou enviar ao constituinte, cópia das peças processuais que resultem do exercício do mandato.

 

E, sendo embora certo que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 100º do E.O.A., nas relações com o cliente deve o advogado, sempre que lhe for solicitado, prestar informação sobre o andamento das questões que lhe foram confiadas, porém, da interpretação da referida norma tal “informação” não se confunde, manifestamente, com qualquer obrigação de facultar o trabalho técnico-jurídico elaborado no âmbito da questão confiada, pois que, do ponto de vista da relação advogado/cliente, o que se exige é que o advogado preste toda a informação necessária à compreensão das questões confiadas, e não, que este forneça as peças processuais em si mesmas consideradas.

 

O Estatuto da Ordem dos Advogados consagra, como obrigação do advogado para com o cliente, a de prestar todas as informações solicitadas sobre a evolução do processo, e não a de fornecer cópias de documentos ou peças processuais, uma vez que, tais cópias estão desde logo acessíveis, no tribunal, às partes, nos mesmos termos em que se encontram acessíveis aos respetivos mandatários.

 

Assim, resulta da interpretação das citadas normas Estatutárias, que a entrega, ao cliente, ainda que mediante solicitação, de cópia de peças processuais ou documentos elaborados pelo Advogado e que resultem do seu trabalho intelectual não encontra consagração no Estatuto da Ordem dos Advogados, enquanto obrigação do Advogado.

E, uma interpretação das normas do Estatuto, em sentido diverso, conceberia uma obrigação deontológica que não tem qualquer suporte na Lei, nos usos, nos costumes e nas tradições profissionais – n.º 1 do artigo 88.º do EOA.

 

Em consequência, formulam-se as seguintes Conclusões:

I.     As peças processuais, ou outros documentos que resultem do trabalho intelectual do Advogado, não devem ser considerados documentos ou valores do cliente, ao abrigo do disposto no artigo 101.º do EOA;

II.   Por regra, o Advogado não tem a obrigação de entrega de peças processuais que resultem do seu trabalho intelectual e que tenham sido produzidos no desempenho do mandato, por não estar tal dever consignado no EOA.

 

É este o nosso parecer.

 

Luisa Peneda Cardoso

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