Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 1/PP/2023-C

Processo de Parecer n.º 01/PP/2023-C

Assunto: Conflito de Interesses (Processo Penal)

 

Por requerimento dirigido à Exma. Senhora Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados em 16 de janeiro de 2023, remetido simultaneamente por correio registado com aviso de recepção e por correio electrónico, veio a Ilustre Advogada Dra. MLD…, titular da cédula profissional nº …c, com domicilio profissional na Rua da …., requerer a emissão de parecer quanto à eventual existência de conflito de interesses no exercício do patrocínio forense de dois intervenientes no mesmo processo judicial, assumindo um deles a posição processual de arguido e o outro a posição de assistente que deduziu pedido de indemnização civil apenas e tão-somente contra outro arguido distinto do arguido representado pela Ilustre Consulente.

De modo a assegurar a total fidelidade do pedido formulado, opta-se pela respectiva transcrição ipsis litteris:

“MLD…, advogada, titular da Cédula Profissional …C, com escritório em Rua da …, vem Pedir a V.Ex.a Parecer sobre (in) existência de incompatibilidade no exercício do mandato, o que faz nos seguintes termos:

  1. A ora signatária foi procurada por dois irmãos, a saber JCP... e NP...,
  2. Pediram ambos que os representasse no âmbito do Processo-crime 1../….0GC…, que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca da …, Juízo Central Criminal da …, Juiz 2;
  3. JCP... é demandante cível neste processo e Assistente; JCP..., não obstante os vários Arguidos no Processo (4), apenas apresenta Pedido Cível e apenas pretende a condenação do Arguido AMS...;
  4. NP... é Arguido no Processo porque AMS... contra si participou uma agressão física;
  5. Não existe qualquer incompatibilidade entre as versões do Assistente e demandante JCP… e do Arguido NP...;
  6. Pelo contrário tanto o Assistente e demandante, como todos os outros Arguidos, excepção feita ao AMS..., descrevem historicamente os factos sumariamente da seguinte forma:
    1. JCP... e NP... estiveram numa festa da aldeia em que estavam todos os Arguidos no referido processo;
    2. AMS... já tinha agredido pelo menos uma pessoa na festa, provocou e ameaçou NP... e JCP... e, por fim, agrediu fisicamente este último;
    3. Apenas AMS... afirma que NP... o atacou (a AMS...) com murros e pontapés;
    4. Os demais arguidos no processo corroboram a versão de NP... e de JCP....”
  7. Pelo exposto não há qualquer conflito de interesses na defesa do Arguido NP... com o mandato conferido por JCP...; Pois ambos, apesar de um ser Arguido e outro Assistente, têm exactamente o mesmo interesse neste processo, pretendem a condenação do Arguido AMS... e a absolvição de NP...;
  8. A ora subscritora e requerente não tem qualquer dúvida quanto ao que afirma e para tanto envia, para conhecimento, o despacho de pronúncia e a contestação do Arguido NP...;
  9. Esta questão foi, aliás, discutida em sede de instrução e os demais Advogados presentes, incluindo o Ilustre Defensor Constituído do Arguido AMS..., Dr. AI…, nenhum conflito viram nesta dupla assunção de papel, do mesmo modo que o Senhor Juiz de Instrução entendeu não existir conflito de interesses;
  10. Porém, porque poderá suscitar-se alguma dúvida e não pretende a ora signatária ter qualquer comportamento que possa ser deontologicamente censurável ou conflituante, requer-se o presente Parecer.

 

Requer-se a V.Ex.a e a este Conselho Regional Parecer que ateste a inexistência de incompatibilidade entre assumir a defesa de NP... e o mandato conferido pelo Assistente JCP....”

O pedido dirigido a este Conselho Regional encontra-se instruído com a junção da procuração forense emitida pelo Arguido NP..., pela procuração forense emitida pelo Assistente JCP…, ambas a favor da advogada Consulente e ambas datadas de 13 de setembro de 2021, com cópia da acusação, cópia das contestações deduzidas pelos Arguido NP... e pelo Arguido AMS..., cópia do Pedido de Indemnização Cível deduzido por este último arguido contra os demais co-arguidos, requerimento de constituição de assistente e Pedido de Indemnização cível deduzido por JCP... contra o Arguido AMS... e cópia da decisão instrutória.

Após análise de todos os elementos disponibilizados, temos que:

O Assistente JCP... apenas figura nos Autos como demandante cível em virtude das ofensas à integridade física que lhe foram infligidas pelo Arguido AMS..., contra quem deduz pedido de indemnização cível.

O Arguido NP... assume tal qualidade em consequência directa da queixa deduzida pelo também Arguido AMS... que lhe assaca a prática de um crime de ofensas à integridade física simples, imputação que, ademais faz aos restantes dois Arguidos no processo.

A decisão instrutória delimita e estabiliza o objecto da acusação pronunciando o arguido AMS... como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples e um crime de ofensas à integridade física grave perpetrados contra os também Arguidos João Paulo Silva Martins, José Manuel Corte Gonçalves e contra o demandante cível JCP....

Por seu turno o Arguido NP... foi pronunciado pela prática de um crime de ofensas à integridade física perpetradas contra o Arguido AMS... tendo este deduzido pedido de indeminização cível contra o primeiro.

Efectuada esta breve contextualização fáctica, importa, como questão prévia, aferir da legitimidade deste Conselho Regional para a emissão do parecer solicitado.

Com efeito, dispõe o artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro (doravante por uma questão de facilidade de exposição designado abreviadamente por EOA) que se insere na esfera das competências do Conselho Regional de Coimbra a pronúncia abstracta sobre questões que se suscitem na respectiva circunscrição territorial.

Conforme entendimento pacificamente acolhido na Ordem dos Advogados, as questões de carácter profissional são todas as que assumem natureza estatutária, resultantes do conjunto de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial das normas do Estatuto, e de todo o leque de normas regulamentares emanadas ao abrigo do poder regulamentar próprio conferido à Ordem dos Advogados.

A concreta temática suscitada no caso vertente, respeita a questão de carácter profissional atinente à aferição da eventual existência de conflito de interesses no exercício do mandato forense em representação de dois sujeitos processuais no mesmo processo judicial, situação que se verifica na área de competência territorial do Conselho Regional de Coimbra, impondo-se a emissão do correspondente parecer.

A matéria de carácter profissional colocada a apreciação, subsume-se ao instituto do denominado “conflito de interesses” regido estatutariamente no artigo 99º do EOA, cuja consagração legal radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade e constitui manifestação expressa do principio geral ínsito no artigo 89º do EOA segundo o qual “O Advogado no exercício da profissão mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

O Advogado no exercício da profissão está irremediavelmente vinculado ao rigoroso cumprimento dos deveres plasmados no EOA, impondo-se a sua escrupulosa observância de molde a garantir a dignidade e prestígio da advocacia.

O Advogado é parte integrante e essencial à Administração da Justiça, conforme consagração constitucional no artigo 208º da Constituição da República Portuguesa, replicado no artigo 88º do EOA, devendo, assim, assumir “um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem.”

Na configuração da advocacia como uma actividade de natureza liberal, que prossegue um notório e preponderante interesse público, é-lhe conferida uma elevada relevância social.

E é precisamente na senda do interesse público da advocacia que surge a consagração do instituto do conflito de interesses, com o objectivo de prosseguir a tripla função: a) de defesa da comunidade em geral e dos clientes das actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um qualquer advogado, conluiados ou não com algum ou alguns dos seus clientes; b) de defesa do próprio advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da profissão, visando qualquer outro interesse que não seja o da defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes; c) de defesa da dignificação da própria profissão.

Como bem ensina António Arnaut “(…) seria altamente desprestigiante para a classe que o Advogado pudesse intervir a favor de outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás no lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio”. (Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111)

A propósito dos deveres impostos ao Advogado nas relações estabelecidas com os seus clientes elenca o artigo 99º do EOA as situações em que este deve recusar o patrocínio face à iminência ou mera possibilidade de ver diminuída a respectiva independência, confiança, lealdade ou mesmo susceptíveis de contender com o mais caro dever de guardar sigilo profissional.

Neste conspecto o artigo 99º do EOA estabelece algumas das situações em que se impõe o dever de recusa do patrocínio, não porque concreta e imediatamente se verifique a existência de conflito de interesses, mas porque, objectivamente, tais situações são potenciadoras de gerar esse conflito.

O artigo 99º do EOA sob a epígrafe “Conflito de Interesses” preceitua o seguinte:

“1- O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 – O Advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os seus clientes, no âmbito desse conflito.

5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 – Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer a associação quer a cada um dos seus membros.” Itálico Nosso

Transpondo o preceito legal supra citado para o caso concreto em apreciação, não se nos assomam quaisquer dúvidas que os clientes da Advogada Requerente assumem posições processuais distintas e, em tese, normalmente antagónicas, pelo que, uma análise superficial da questão poderia conduzir-nos à conclusão aparentemente lógica de existência de conflito de interesses.

Com efeito, o arguido é por excelência o “sujeito passivo” do processo penal, no sentido que se trata da pessoa singular ou colectiva que é visada pelo processo de tal modo que a anterior legislação penal definia o arguido como “aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter perpetrado uma infracção cuja existência esteja suficientemente comprovada.”

Actualmente dispõe o artigo 57º, nº 1 do Código de Processo Penal (doravante em qualquer menção que seja efectuada a este diploma utilizar-se-á a designação abreviada de CPP), que “Assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal.”

Do artigo seguinte (58º do CPP) sob a epígrafe “Constituição de arguido” extrai-se que, por via de regra, a aquisição da qualidade de arguido, visa numa primeira linha satisfazer a necessidade de imposição de deveres ao sujeito passivo do processo penal, dotando o individuo em causa de um estatuto processual próprio que lhe assegure a possibilidade de efectivar a sua defesa no processo e que salvaguarde o exercício dos direitos, liberdades e garantia constitucionalmente e legalmente reconhecidos (artigo 60º do CPP), bem como, o exercício dos direitos previstos no artigo 61º do mesmo diploma.

Diversamente, no sistema penal vigente, a pessoa que sofre um crime, dependendo de determinados requisitos, pode assumir (em simultâneo ou separadamente) a qualidade de ofendido, assistente, lesado ou vítima.

De um modo genérico o ofendido é nos termos do disposto no artigo 113º do CPP é o titular do direito de queixa, ou seja, o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, sendo que, a respectiva abrangência de actuação é especialmente enfatizada nos crimes semipúblicos e particulares, no âmbito dos quais cabe ao ofendido a decisão de exercer ou não o direito de queixa e inclusive de desistir de tal queixa. Como bem refere Damião da Cunha, [1] o exercício do direito de queixa é um poder do ofendido (particular) no âmbito do processo penal, a quem é atribuído o “direito de opção” pela tutela jurídica, aqui particularmente pela tutela penal, que se enquadra “dentro de um procedimento de direito público” e que é insindicável, no sentido de não carecer de motivação (de explicação), desde que livremente exercido.

Não existe na legislação vigente uma definição do conceito de Assistente, sabendo-se que se podem constituir em tal qualidade as pessoas singulares e colectivas elencadas no artigo 68º do CPP, encontrando-se a respectiva posição processual definida no preceito seguinte (artigo 69º). Aos ofendidos que se constituam assistentes é admitida a dedução de pedido cível, como sucede no caso vertente, sendo que, por imperativo constante do artigo 70º do CPP são sempre representados por advogados.

Efectuado este breve enquadramento dos conceitos e posições processuais em causa e sem maiores delongas, temos que no caso que nos ocupa, os direitos jurídico penais exercitados pelo Assistente/ Demandante Cível visam apenas e tão-somente um dos arguidos, diverso do Arguido representando pela mesma mandatária e que de resto, prossegue o duplo e coincidente interesse de condenação do Arguido António Manuel Mora Seixo e a sua própria absolvição relativamente aos factos que lhe são imputados na acusação.

Na verdade, analisada a questão submetida à apreciação deste Conselho à luz dos interesses prosseguidos por cada um dos sujeitos processuais representados pela Ilustre Advogada Consulente, concluímos que, estamos perante interesses manifestamente coincidentes e, em consequência, existirá compatibilidade das defesas de cada um dos clientes, sem que tal represente ou possa acarretar o privilégio dos interesses de um em detrimento dos interesses do outro.

Assim, em face da manifesta confluência de interesses e posições patentes em ambas as defesas, tendemos para considerar que no caso em apreço, não se encontram preenchidas as circunstâncias plasmadas no artigo 99º do EOA, de cuja verificação emerge a existência de conflito de interesses.

Naturalmente que a posição deste Conselho Regional aqui vertida se estriba na factualidade existente na data da emissão do parecer e decorrente da análise minuciosa de todos os elementos juntos, que nos permite extrair a conclusão de que não obstante a circunstância dos dois sujeitos processuais representados pela Ilustre Consulente assumirem posições tendencial e diametralmente opostas, existe total confluência nos respectivos interesses, de modo que a defesa gizada para um aproveite in totum ao outro.

Não obstante o supra expendido, não se isenta a Advogada Requerente de uma especial atenção a eventuais ocorrências posteriores que possam sobrevir, designadamente em sede de julgamento, e que sejam susceptíveis de a colocar numa situação de conflito de interesses e consequentemente contender com o dever que se lhe impõe de em permanência pautar a sua actuação pelo estrito cumprimento dos deveres deontológicos.

Com efeito, a matéria do conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe ajuizar em permanência, se a assunção de dois mandatos, não o impedirá de exercer, de forma livre e sem quaisquer constrangimentos, a sua actividade, conforme erigido das normas ínsitas no seu estatuto profissional. 

O Advogado deve estar, sempre e em qualquer circunstância, acima de qualquer suspeita, garantindo o cumprimento dos deveres de isenção, independência, salvaguarda do dever de sigilo profissional, decoro, probidade e salvaguardar a dignidade da profissão, razão pela qual se impõe com especial acuidade que a Advogada requerente enquanto se mantiver a exercer os dois mandatos forenses que lhe foram confiados, afira em permanência da respectiva compatibilização com o cumprimento dos deveres deontológicos.

Concluindo:

1 – A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da advocacia diz respeito, encontra-se regulada no artigo 99º do EOA, que elenca as situações concretas em que o advogado deve recusar o patrocínio, por se afigurar que naqueles casos concretos a independência, confiança, lealdade e dever de guardar sigilo profissional, possam ficar irremediavelmente comprometidos;

2 – Não existe conflito de interesses na representação de dois ou mais intervenientes processuais, no mesmo processo judicial se as posições e interesses de todos forem conexos;

3 – Por via de regra, no âmbito dos processos de natureza criminal o arguido e o ofendido/ demandante cível assumem posições divergentes, porém, no caso em apreço em que se verifica a existência de quatro arguidos, os interesses do ofendido/ demandante cível encontram-se em consonância com os interesses do arguido patrocinado pela Advogada requerente, ambos confluindo para a condenação de arguido distinto no mesmo processo;

4 – No quadro actual conclui-se pela inexistência de qualquer conflito de interesses no exercício do mandato por conta dos dois clientes;

5 – Não obstante, a Advogada Requerente deverá em consciência e em permanência ajuizar da compatibilização do exercício dos dois mandatos que lhe foram conferidos com o estrito e rigoroso cumprimento dos deveres deontológicos, sendo que, na eventualidade de sobrevir alguma circunstância que contenda com tal desiderato, se lhe impõe que cesse de agir por conta dos dois clientes.

 

É este, salvo melhor entendimento, o nosso parecer,



[1] José Damião da Cunha, “A participação dos particulares no exercício da acção penal (Alguns aspectos), in RPCC, ano 8, fasc. 4º (Outubro-Dezembro 1998), pp. 601 e 612”

 

 

Sandra Gil Saraiva

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