Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 2/PP/2023-C

PROCESSO DE PARECER Nº 2/PP/2023-C

 

Por requerimento datado de 24 de janeiro de 2023, dirigido à Exma Senhora Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, veio o Exmo Senhor Dr. HC..., advogado, portador da cédula profissional …L, com domicílio profissional em C…, solicitar emissão de parecer sobre se comunicações por si identificadas estão ou não sujeitas a sigilo profissional. Com tal pedido juntou 3 documentos: petição inicial (sem os documentos que a integram), contestação (sem os documentos que a integram); e conjunto de comunicações eletrónicas trocadas entre mandatários das partes em fase extrajudicial, as quais não foram juntas ao processo judicial.

Refere, em síntese, o Ilustre advogado requerente que:

a)      Em litígio em que representa uma agência imobiliária contra dois clientes, em fase extrajudicial, trocou correspondência com a mandatária destes últimos, a Ex.ma Senhora Dr.ª AM..., advogada, portadora da cédula profissional 4…c, com domicílio profissional em C…;

b)      Propôs a respetiva ação judicial, omitindo “propositadamente as conversas com a ilustre Colega, que decorreram por correio eletrónico na sequência das decorridas entre as partes” (fls 2);

c)       Na contestação, as referidas comunicações não foram juntas aos autos, mas as mesmas são citadas nos seguintes termos:

57.º

Em troca de emails enviados entre os mandatários da Autora e da Ré, foi proposta pela mandatária dos Réus, uma reunião com a presença de todos os intervenientes, inclusive os supostos Promitentes Compradores a fim de se aferir da possibilidade de uma possível transação visto que entre Autora e Ré já não existia qualquer relação de confiança, pelos motivos supra expostos.

58.º

Pois bem, o mandatário da Autora não só negou a possibilidade de tal reunião como continuou com o propósito de celebração do contrato promessa de compra e venda, de acordo com as cláusulas impostas pela sua cliente num total desprezo pela posição dos Réus quanto às premissas para realização de tal contrato” (fls 3 e fls 21).

O processo judicial em causa é a ação de processo comum 20…/22….B, que corre termos no Juízo Local Cível de C… – Juiz 2.

Termina o seu requerimento, dizendo considerar “na linha do que foi decidido por es[t]e Conselho Regional no Parecer nº 12/PP/2022-C, que as comunicações em causa podem ser usadas como prova, entend[endo] não o fazer sem validação de V. Ex.a” e pedindo que seja emitido parecer sobre se as comunicações em causa estão, ou não, sujeitas a sigilo.

Atento o formato com que as comunicações eletrónicas trocadas entre mandatários foram enviadas a este Conselho Regional, por notificação datada de 23 de fevereiro de 2022, foi solicitado o envio de cópia dos emails originais, o que veio a suceder nesse mesmo dia, tendo sido juntas as seguintes comunicações eletrónicas, que se dão aqui por integralmente reproduzidas:

1.       Email enviado pela Senhora Dr.ª AM... ao Senhor Dr. HC..., datado de 25 de maio de 2022, às 07:00 (fls. 34);

2.       Email enviado pelo Senhor Dr. HC... à Senhora Dr.ª AM..., datado de 25 de maio de 2022, às 09:10 (fls. 35);

3.       Email enviado pela Senhora Dr.ª AM... ao Senhor Dr. HC..., datado de 26 de maio de 2022, às 08:49 (fls. 36);

4.       Email enviado pelo Senhor Dr. HC... à Senhora Dr.ª AM..., datado de 26 de maio de 2022, às 11:32 (fls. 37);

5.       Email enviado pela Senhora Dr.ª AM... ao Senhor Dr. HC..., datado de 31 de maio de 2022, às 17:13 (fls. 38);

6.       Email enviado pelo Senhor Dr. HC... à Senhora Dr.ª AM..., datado de 1 de junho de 2022, às 09:11 (fls. 39);

7.       Email enviado pela Senhora Dr.ª AM... ao Senhor Dr. HC..., datado de 3 de junho de 2022, às 09:01 (fls. 40);

8.       Email enviado pelo Senhor Dr. HC... à Senhora Dr.ª AM..., datado de 3 de junho de 2022, às 09:51 (fls. 41);

9.       Email enviado pela Senhora Dr.ª AM... ao Senhor Dr. HC..., datado de 6 de junho de 2022, às 11:53 (fls. 42);

10.   Email enviado pelo Senhor Dr. HC... à Senhora Dr.ª AM..., datado de 6 de junho de 2022, às 17:47 (fls. 43 e 44);

11.   Email enviado pela Senhora Dr.ª AM... ao Senhor Dr. HC..., datado de 7 de junho de 2022, às 09:48 (fls. 45);

12.   Email enviado pelo Senhor Dr. HC... à Senhora Dr.ª AM..., datado de 7 de junho de 2022, às 13:23 (fls. 46 e 47);

13.   Email enviado pela Senhora Dr.ª AM... ao Senhor Dr. HC..., datado de 7 de junho de 2022, às 16:19 (fls. 48);

14.   Email enviado pelo Senhor Dr. HC... à Senhora Dr.ª AM..., datado de 15 de junho de 2022, às 20:43 (fls. 49 e 50);

15.   Email enviado pela Senhora Dr.ª AM... ao Senhor Dr. HC..., datado de 17 de junho de 2022, às 18:46 (fls. 51).

Nas comunicações eletrónicas enviadas pelo Senhor Dr. HC... à Senhora Dr.ª AM... consta o seguinte “aviso de confidencialidade”: “O conteúdo desta mensagem de correio eletrónico (e eventuais ficheiros anexos) é confidencial e destinado exclusivamente ao conhecimento e uso exclusivo do respetivo destinatário e contem, designadamente para os efeitos do disposto no artigo 108.º, n.º 1, do estatuto da Ordem dos Advogados, matéria confidencial e legalmente protegida. Caso tenha recebido esta mensagem por engano, agradecemos que nos contacte via e-mail ou por telefone e elimine esta mensagem e eventuais ficheiros anexos sem que, por qualquer meio, os reproduza” (fls 35, 37, 39, 43, 44, 46, 47, 49).

Em 13 de Março de 2023, o Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados recebeu a notificação, elaborada em 8 de março de 2023, referente ao Proc. 20…/22….B, que corre termos no Juízo Local Cível de C… – Juiz 2, na qual se solicita informação sobre o parecer emitido por este Conselho Regional na sequência do requerido pelo Ilustre advogado requerente.

***

Nos termos do artigo 54.º, n.º 1, alínea f), do Estatuto da Ordem dos advogados (EOA), compete ao Conselho Regional de Coimbra, pronunciar-se sobre as questões de caráter profissional, no âmbito da sua competência territorial. Como tem sido entendimento pacífico, são questões de caráter profissional aquelas que se prendem com o exercício da advocacia e que decorrem do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam a profissão, nomeadamente das normas do Estatuto da Ordem dos Advogados ou dos regulamentos elaborados por esta Ordem Profissional.

A questão colocada pelo Senhor Dr. HC... subsume-se, assim, nas competências deste Conselho Regional, colidindo, indubitavelmente, com matéria conexa ao dever de segredo profissional.

***

A questão colocada a este Conselho Regional encontra-se assim balizada pelo requerido: as comunicações acima enumeradas (1 a 15) trocadas entre mandatários estão sujeitas a segredo profissional?

Estabelece o artigo 92.º, n.º 1, do EOA, que o “advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”. As diversas alíneas do n.º 1 do referido artigo 92.º do EOA são decomposições, meramente exemplificativas, de factos abrangidos pela cláusula geral estipulada no corpo do n.º 1. De entre essas enunciações exemplificativas consta, com relevância para o presente caso, o disposto na alínea e) – “factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio” – e na alínea f) –  “factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo”. Esclarece que o n.º 3 do artigo 92.º do EOA que o dever de guardar segredo profissional abrange além dos factos materiais suscetíveis de alegação, também, os documentos que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

Nos termos do n.º 4 do artigo 92.º do EOA, a desvinculação do segredo profissional só pode ocorrer “desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento” – precisamente o Regulamento de Dispensa de Sigilo, que estabelece os requisitos e tramitação de tal pedido de desvinculação e denota a exigência da excecionalidade da concessão de tal desvinculação.

Nos termos do artigo 113.º do EOA, sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha caráter confidencial, deve exprimir claramente tal intenção, sendo certo que, em tais circunstâncias, essas comunicações não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não podendo, consequentemente, o advogado requerer a sua desvinculação do segredo profissional nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 92.º do EOA.

Assim, para que determinada correspondência fique sujeita ao regime da confidencialidade estatuído no artigo 113.º do EOA, é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a)      que as comunicações sejam trocadas exclusivamente entre advogados ou entre advogados e solicitadores;

b)      que haja referência expressa e clara à confidencialidade nos termos e para efeito do disposto no artigo 113.º do EOA;

c)       que os factos devem ser efetivamente sigilosos nos termos e para efeito do disposto no artigo 92.º, n.º 1 do EOA. 

No caso em apreço, emerge, assim, como indispensável para o sentido do parecer a emitir a indagação sobre se:

a)      O aviso de confidencialidade aposto nas comunicações eletrónicas do Senhor Dr. HC... se subsume à previsão do nº 2 do artigo 113º do EOA, em termos que impeçam o recurso ao expediente previsto no nº 4 do artigo 92.º do EOA e à sua utilização como meio de prova.

b)      A materialidade em causa está, ou não, a coberto do dever de segredo.

***

Apreciando.

Quanto à primeira questão, como acima se referiu, nas comunicações eletrónicas enviadas pelo Senhor Dr. HC... à Senhora Dr.ª AM... consta o seguinte “aviso de confidencialidade”: “O conteúdo desta mensagem de correio eletrónico (e eventuais ficheiros anexos) é confidencial e destinado exclusivamente ao conhecimento e uso exclusivo do respetivo destinatário e contem, designadamente para os efeitos do disposto no artigo 108.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, matéria confidencial e legalmente protegida. Caso tenha recebido esta mensagem por engano, agradecemos que nos contacte via e-mail ou por telefone e elimine esta mensagem e eventuais ficheiros anexos sem que, por qualquer meio, os reproduza[1].

A referida nota de confidencialidade encontra-se abaixo da assinatura do declarante, não é reproduzida no corpo da mensagem enviada pelo mandatário, repetida ou assinalada de forma especial em qualquer outro local da mensagem.

Dos três requisitos acima enunciados para a sujeição ao regime da confidencialidade estatuído no artigo 113.º do EOA, não há dúvida que o primeiro se encontra preenchido: a correspondência é dirigida por um advogado a outro advogado, ambos no exercício da sua profissão e em representação dos respetivos clientes.

Para a ausência de preenchimento do segundo requisito enunciado – referência expressa e clara à confidencialidade nos termos e para efeito do disposto no artigo 113.º do EOA – invoca o Requerente a argumentação expendida no parecer 12/PP/2022-C. No referido parecer, defendeu-se que “neste aspeto, temos defendido, tal como o Conselho Regional de Lisboa e o Conselho Regional do Porto, que a simples a referência no “template” do mail ao conteúdo confidencial da comunicação não é suficiente para concluir pela absoluta confidencialidade da correspondência, pois, para que determinada correspondência fique abrangida pelo dever de reserva previsto no artigo 113º do EOA, o seu subscritor terá, expressa e claramente, de referir que a mesma tem carácter confidencial, o que não é o caso. Aliás, o conteúdo da mensagem de confidencialidade inserida nos mails analisados leva-nos a concluir que a mesma se destina a quaisquer terceiros que, por qualquer razão externa à vontade do seu declarante, tenham acesso ao mail. Veja-se que o declarante utiliza a expressão “pode conter “e não “contém” ou “a esta mensagem é atribuído carater de confidencialidade ao abrigo do disposto no artigo 113º do EOA”.  Acresce que, o declarante não se referiu à confidencialidade da sua mensagem ou, por qualquer forma, a deixou subentendida em qualquer outra parte do texto, não existindo, por isso, quaisquer elementos, à exceção da referida menção genérica incluída na mensagem abaixo da assinatura e contatos do declarante, que permitam supor a existência da intenção do seu autor de atribuir caráter de confidencialidade à sua mensagem, nos termos prescritos no artigo 113º do EOA”. Na verdade, o artigo 113.º do EOA não pretendeu abranger as mensagens de confidencialidade genéricas que usualmente são utilizadas em “modelos” ou “templates” de emails, devendo a menção do carácter confidencial do que é transmitido ser expresso e inequívoco.

No caso em apreço, ao contrário do caso constante no Parecer 12/PP/2022-C, o aviso de confidencialidade aposto pelo Senhor Dr. HC... nas suas comunicações eletrónicas diz expressamente que o conteúdo da mensagem “é confidencial” (e não que “pode ser confidencial”) e que “contem, designadamente para os efeitos do disposto no artigo 108.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, matéria confidencial e legalmente protegida” (e não que “pode conter matéria confidencial”). Não obstante, também se verifica que se trata de uma frase genérica, relegada para o final do email, escrita com letras mais pequenas que as do corpo do email, enviada de forma sistemática e indiscriminada em todos os emails enviados pelo remetente. Ora, esta prática, como tem sido entendimento deste Conselho Regional, ainda que haja a indicação do artigo 113º, não assegura o caráter absolutamente confidencial da correspondência. Não se encontra, assim, preenchido o segundo requisito enunciado.

A apreciação do terceiro requisito – os factos devem ser efetivamente sigilosos nos termos e para efeito do disposto no artigo 92.º, n.º 1 do EOA – confunde-se com a segunda questão submetida a apreciação, pelo que serão analisados conjuntamente.

O artigo 92.º do EOA não impõe uma proibição absoluta de revelação de correspondência subscrita por Advogado, mas, antes, a proibição de revelação dessa correspondência quando aí sejam revelados factos sujeitos a segredo profissional, ou seja, factos sigilosos. A questão essencial é, assim, a de apurar se os factos constantes das comunicações em apreciação estão ou não sujeitos a tal obrigação.

Cotejando as comunicações cuja apreciação nos é solicitada, constatamos que as mesmas contêm cariz negocial, reportando factos que chegaram ao conhecimento dos respetivos advogados no contexto do exercício das suas funções e durante negociações para resolução extrajudicial do litígio, traduzindo um itinerário de negociações entre as partes, denunciando a tentativa de uma resolução (malograda) extrajudicial do diferendo que afasta as partes, nada permitindo descartar que os factos aí expressos não se encontrem imbuídos numa matriz de confiança.

Com fundamento em todo o exposto, somos, assim, de parecer que a matéria constante da correspondência (acima enunciada 1 a 15) trocada entre os advogados identificados está sujeita a segredo profissional, subsumindo-se nas alíneas e) e f) do artigo 92.º do EOA. A revelação das comunicações em causa depende de prévia decisão de levantamento do segredo profissional, a qual, caso seja do interesse do Senhor Advogado Requerente, deve ser requerida nos termos do n.º 4 do artigo 92.º e do Regulamento de Dispensa de Sigilo Profissional.

 



[1] Acredita-se que a referência ao artigo 108.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, se reporte à versão ínsita no Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro, e, entretanto, revogado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, que aprovou o atual Estatuto da Ordem dos Advogados. Na versão em vigor, a matéria atinente à correspondência entre advogados e entre estes e solicitadores encontra-se inscrita no artigo 113.º.

 

Paula Fernando

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