Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 3/PP/2023-C

PROCESSO DE PARECER N.º 03/PP/2023-C

Incompatibilidades e impedimentos – Vice-Presidente de direcção de Instituição Particular de Solidariedade Social.

 

Por comunicação datada de 31 de Janeiro de 2023 e dirigida ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, o senhor Advogado Dr. SP... veio requerer a emissão de parecer, nos termos que infra se transcrevem:

 

                “ (...) Neste circunstancialismo, vem o advogado signatário, nos termos e ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1, do art.º 54 do EOA, requerer a V. Ex.ª a emissão de parecer sobre se existem incompatibilidades e impedimentos ou conflito de interesses para o exercício do cargo de Vice-Presidente de Direcção da IPSS em causa pelo aqui signatário que, no âmbito de um contrato com essa IPSS, presta serviços de acessoria jurídica enquanto Advogado com honorários fixos, e que se encontra inscrito no Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais, ou, caso assim se entenda, em alternativa, renunciando o Advogado signatário à prestação de serviços em causa e/ou à inscrição no SADT, pode desempenhar as funções de Vice-presidente de Direcção da IPSS referida, com remuneração, alterado que se mostre os estatutos daquela nessa parte.”

 

Ao abrigo do disposto nos artigos 54.º, nº 1, alínea f) e 85.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro, o presente pedido de parecer versa sobre impedimentos, incompatibilidades e conflito de interesses havidos com o exercício da advocacia, cuja apreciação compete ao Conselho Geral e aos Conselhos Regionais (artigo 81.º, nº 5, do EOA).

Assim, cumpre emitir o solicitado parecer.

 

O pedido de parecer que ora nos é colocado fragmenta-se em duas questões, que carecem de ser apreciadas, a saber: 

                                i.            O exercício do cargo de Vice-Presidente de uma Instituição Particular de Solidariedade Social é incompatível com o exercício da Advocacia?

                              ii.            O Advogado, na qualidade de Vice-Presidente de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, pode prestar serviços jurídico-forenses à mesma?

 

Vejamos,

 

I.                    DA CARACTERIZAÇÃO E QUALIFICAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO EM CAUSA – “IPSS”

 

 

De acordo com o artigo 2.º dos estatutos da Instituição Particular de Solidariedade Social aqui visada, juntos ao pedido de parecer e que transcrevemos: “1. O centro Paroquial de Solidariedade de SO... é uma instituição particular de solidariedade social, sem finalidade lucrativa, instituída pela Fábrica da Igreja Paroquial de SO..., erecta canonicamente por decreto do Bispo da diocese de C….

2. O Centro Paroquial de Solidariedade Social de SO... é uma pessoa jurídica pública da Igreja Católica, sujeito em direito canónico de obrigações e direitos consentâneos com a índole de fundação autónoma, composta por uma dotação ou universalidade de bens, para desempenhar, em nome da Igreja Católica, o múnus indicado neste estatutos, em ordem ao bem público eclesial, erecta canonicamente por decreto do Ordinário Diocesano estatutos aprovados por esta autoridade eclesiástica, de acordo com os cânones 113, 2, 116,1 e 2, e 117 do Código de Direito Canónico.

3. O Centro é uma pessoa jurídica canónica a que o Estado Português reconhece personalidade jurídica civil, que se rege pelo Direito Canónico e pelo Direito Português, aplicados pelas respectivas autoridades, e tem a mesma capacidade civil que o Direito Português atribuiu as pessoas colectivas de solidariedade social, gozando dos mesmos direitos e benefícios atribuídos às Instituições Particulares de Solidariedade Social, de acordo com os artigos 10.º a 12.º da Concordata de 18 Maio 2004.”

 

Estamos, pois, perante uma Instituição Particular de Solidariedade Social, adiante designada por “IPSS”, que se consubstancia numa pessoa colectiva, sem finalidade lucrativa, constituída exclusivamente por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de justiça e de solidariedade, contribuindo para a efectivação dos direitos sociais dos cidadãos, que não é administrada pelo Estado ou por outro organismo público - artigo 1.º Decreto-Lei nº 172-A/2014, de 14 de Novembro, alterado pela Lei n.º 76/2015, de 28 de Julho.

 

II.                  DAS INCOMPATIBILIDADES

 

As normas relativas às incompatibilidades e impedimentos encontram-se previstas nos artigos 81.º a 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).

 

Sob a epígrafe “Princípios gerais” dispõe o artigo 81º do EOA o que:

“1 – O Advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.

2 – O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

 O n.º 2 do artigo 81.º do EOA estabelece, assim, o princípio geral de que o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possa afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.

Por seu turno, no artigo 82.º do EOA é feita uma enumeração dos cargos, actividades ou funções que inequivocamente são incompatíveis com o exercício da advocacia, sem prejuízo da existência de outras situações que, não obstante a inexistência de expressa previsão legal, possam reputar-se incompatíveis com a advocacia.

Com o estabelecimento de um regime de incompatibilidades, visa-se, pois, proteger a generalidade dos demais deveres de isenção, independência e dignidade da profissão de Advogado, prevenindo, igualmente, situações de violação do dever de segredo profissional, conflito de interesses ou angariação de clientela pelo próprio ou por interposta pessoa, de molde a garantir que o Advogado cumpra a sua actuação livre de qualquer pressão, especialmente dos constrangimentos inerentes aos seus próprios interesses ou de influências exteriores.

Como refere o Dr. Carlos Mateus, na página 67 e 68 da sua obra “DEONTOLOGIA PROFISSIONAL - Contributo para a formação dos Advogados Portugueses”, “As incompatibilidades e impedimentos estão, como vimos, em estreita conexão com os princípios da integridade (artº 88) e da independência (artº 89º) e têm em vista evitar situações que possam traduzir-se em falta de independência do Advogado; perda de dignidade e de isenção no exercício da profissão; a promiscuidade do Advogado; a vantagem de um Advogado relativamente aos Colegas; e angariação ilícita de clientela por causa de outro cargo, função ou actividade que o Advogado venha a exercer“.

 

Ora, do catálogo das incompatibilidades descritas no artigo 82.º do EOA não se vislumbra qualquer incompatibilidade entre o exercício da advocacia e o facto de um Advogado integrar, na qualidade de Vice-Presidente, a direcção de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, ainda que esta seja uma pessoa colectiva de utilidade pública (que não seja administrada pelo Estado ou por outro organismo público).

 

 Aliás, salvo devido respeito por opinião contrária, participar nos órgãos de qualquer organização desta natureza, além de ser um direito constitucional - artigo 51.º da CRP - é um dever cívico de qualquer cidadão.

 

Acontece que, o senhor Advogado presta serviços jurídico-forenses à IPSS em causa, o que nos remete, inevitavelmente, para a segunda questão a ser respondida e que aqui transcrevemos:

 

O Advogado, na qualidade de Vice-Presidente de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, pode prestar serviços jurídico-forenses à mesma?

 

Adiantamos, antecipadamente, que não. Vejamos porquê:

 

III.                DOS IMPEDIMENTOS

 

No que concerne ao exercício do mandato, no âmbito do caso em concreto, deve atender-se ao consagrado no n.º 1 do artigo 83.º do EOA que refere que:

“1 - Os impedimentos diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão.

2 - O advogado está impedido de praticar atos profissionais e de mover qualquer influência junto de entidades, públicas ou privadas, onde desempenhe ou tenha desempenhado funções cujo exercício possa suscitar, em concreto, uma incompatibilidade, se aqueles atos ou influências entrarem em conflito com as regras deontológicas contidas no presente Estatuto, nomeadamente, os princípios gerais enunciados nos n.os 1 e 2 do artigo 81.º

3 - Os advogados que sejam membros das assembleias representativas das autarquias locais, bem como os respetivos adjuntos, assessores, secretários, trabalhadores com vínculo de emprego público ou outros contratados dos respetivos gabinetes ou serviços, estão impedidos, em qualquer foro, de patrocinar, diretamente ou por intermédio de sociedade de que sejam sócios, ações contra as respetivas autarquias locais, bem como de intervir em qualquer atividade da assembleia a que pertençam sobre assuntos em que tenham interesse profissional diretamente ou por intermédio de sociedade de advogados a que pertençam.

4 - Os advogados referidos na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior estão impedidos, em qualquer foro, de patrocinar ações pecuniárias contra o Estado.

5 - Os advogados a exercer funções de vereador sem tempo atribuído estão impedidos, em qualquer foro, de patrocinar, diretamente ou por intermédio de sociedade de que sejam sócios, ações contra a respetiva autarquia, bem como de intervir em qualquer atividade do executivo a que pertençam sobre assuntos em que tenham interesse profissional diretamente ou por intermédio de sociedade de advogados a que pertençam.

6 - Havendo dúvida sobre a existência de qualquer impedimento, que não haja sido logo assumido pelo advogado, compete ao respetivo conselho regional decidir.”

 

Os impedimentos diminuem amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica – artigo 83º, nº 1, do E.O.A.

 

Como refere o Dr. Fernando Sousa Magalhães, na página 109 do seu “Estatuto da Ordem dos Advogados – Anotado”, os impedimentos resultam de circunstâncias concretas que devem levar os Advogados a recusar o mandato ou a prestação de serviços em função de conflito de interesses ou de simples decoro, já que o exercício da profissão deve ser livre, independente e adequado à dignidade da função.

 

A existência de impedimentos deve, por isso, ser aferida casuisticamente, devendo o Advogado salvaguardar, antes de aceitar um mandato ou prestação de serviços, se daí resulta, ou não, uma situação que possa gerar um impedimento.

 

A acrescer, importa não esquecer o consagrado no artigo 81.º, n.º 1 e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados, que dispõem que:

“1 - O advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.

2 - O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

 

Isto é, o Advogado está impedido de praticar actos profissionais e de mover qualquer influência junto de entidades públicas e privadas, onde desempenhe ou tenha desempenhado funções cujo exercício possa suscitar, em concreto, uma incompatibilidade, se aqueles actos ou influências entrarem em conflito com as regras deontológicas e os princípios gerais previstos nos números 1 e 2 do citado artigo 81º do EOA.

 

Assim, além das situações expressamente previstas no aludido artigo 83.º, sempre que possam ser postos em causa os princípios da isenção e independência no exercício da advocacia, que se pretendem garantir com a consagração das incompatibilidades e dos impedimentos, existe impedimento para o exercício do mandato forense e da prestação de consulta jurídica.

 

Importa, ainda, ter presente que, o Advogado, no exercício da profissão, deve agir de forma livre de qualquer pressão exterior e deve abster-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente - artigo 89.º do EOA.

 

Também o Código de Deontologia dos Advogados Europeus (CDAE) consigna o valor da independência como um princípio geral, nomeadamente os Pontos 2.1, 2.5-1 e 3.2-2.

 

Mais, importa evitar que o Advogado seja colocado em situações em que, ainda que potencialmente, possa pôr em risco o dever de lealdade, a independência e o sigilo profissional previstos nos artigos 88.º, 89.º e 92.º do EOA, respectivamente.

 

Ora, como é consabido, os cargos susceptíveis de gerar mais “conflitos” no seio das organizações são os cargos de gestão superiores, uma vez que tais cargos e funções levam à determinação da forma de gestão e à vinculação de tais organizações perante terceiros.

 

Regressando ao caso em concreto, entendemos que, ao assumir o cargo de Vice-presidente da aludida IPSS e continuando a prestar apoio jurídico à mesma, o Colega consulente coloca em causa a isenção, a independência e o sigilo profissional.

 

Isto porque, no exercício das suas funções de Advogado estará, naturalmente, sujeito à pressão e envolvimento decorrente do cargo que exerce na direcção da IPSS que representa.

 

E o Advogado, no exercício das suas funções, não pode estar limitado quanto à forma de tratar uma questão, designadamente quanto ao resultado que deve ser obtido, por ter participado, por exemplo, na tomada de decisão, que resultou no litígio em causa.

 

De igual forma, pode igualmente surgir um conflito e/ou impedimento se, a título de exemplo, o Colega, na qualidade de Vice-Presidente da IPSS, for chamado a prestar depoimento ou declarações de parte no âmbito de um processo judicial que se encontre a patrocinar.

 

Por fim, sempre se dirá que, sem prejuízo do dever de independência e isenção, o Advogado está vinculado à obrigação de sigilo profissional no exercício das suas funções, não podendo tal dever ser afectado, ainda que negligentemente, como consequência da “confusão” de funções que se verifica.

 

Face ao exposto, entendemos que, no caso concreto, se verifica uma situação de impedimento de exercício da advocacia, nos termos do disposto no artigo 81.º, nº 1 e 2 e no artigo 83.º, n.º e 2 do EOA.

 

Pelo que, o senhor Advogado consulente não pode continuar a prestar serviços jurídico-forenses à dita IPSS, caso venha a integrar a direcção da mesma.

 

CONCLUSÕES

 

I.                    O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possam afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão (n.º 2 do artigo 81 do EOA).

II.                  O Advogado não está impedido de integrar os órgãos sociais de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, designadamente na qualidade de Vice-Presidente da direcção.

III.                O Advogado que exerça o cargo de Vice-Presidente de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, está impedido de a patrocinar, judicial ou extrajudicialmente, uma vez que a prática de tais serviços viola os princípios gerais enunciados no n.º 1 e no n.º 2 do artigo 81.º, aplicáveis por força do nº 2 do artigo 83º do EOA.

 

 

É este, salvo melhor opinião, o parecer que proponho à apreciação e deliberação do Conselho Regional de Coimbra.

 

Emanuel Simões

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