Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 4/PP/2023-C

PROCESSO DE PARECER Nº4/PP/2023-C

 

 

I. Relatório

 

1. Por requerimento de 02.02.2023, dirigido ao “Ex.mo Sr. Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem Advogados” – atualmente a Exma Senhora Presidente, Dra. Teresa Letras – e com data de entrada nos Serviços Administrativos em 06.02.2023 (Reg. 1145), veio o Exmo Senhor Dr. RAC..., advogado com domicílio profissional em A…, solicitar emissão de Parecer sobre “Existência do Dever de Segredo Profissional e Nulidade de Arguição e Prova de factos a ele sujeitos”[1];

2. Com tal pedido foram juntos 7 documentos: petição inicial e documentos que a integram; contestação e respetivos documentos; réplica; requerimento da Ré; requerimento da Autora; despacho de 31.10.2022; e conjunto de comunicações eletrónicas trocadas entre os mandatários das partes em fase extrajudicial, as quais não foram juntas ao processo judicial;

3. Resume o Exmo. requerente ter sido revelada na contestação a existência e o teor de transações negociais malogradas, além de ter sido omitida a informação de que as mesmas foram desenvolvidas entre os mandatários das partes – o Senhor Dr. RAC..., representando a Autora, e o Senhor Dr. AEV..., em representação da Ré;

4. Estas circunstâncias foram expressamente suscitadas na Réplica, onde a Autora “alert[ou] para o incumprimento de dever de Segredo Profissional (…) bem como das respetivas consequências.”[2];

5. Esclarece o Exmo. Requente que todos os factos constantes “do artigo 41º em diante da Contestação, são factos integrados em negociações havidas entre o Mandatário da Autora e o Mandatário da Ré, as quais não lograram dirimir o litígio”, tanto que se encontram a discuti-lo judicialmente[3];

6. Não obstante a alegada revelação, a Ré não juntou com a sua peça qualquer correspondência (eletrónica, no caso) trocada entre os mandatários;

7. Juntou, sim, comunicações eletrónicas diretamente trocadas entre as partes, em momento posterior à obtenção do acordo e na sequência da sua frustração – docs. 8 a 10 da contestação;

8. Segundo adianta, nessa correspondência “é feita referência expressa ao conteúdo das negociações entre os mandatários (…) e onde se discute o respetivo teor”[4], daí extraindo que, com tal procedimento, a Ré, “tenta depois fazer prova em juízo do teor das negociações por via indireta”[5];

9. Destaca o Exmo Requerente que “na assinatura aposta pelo (…) Signatário a esses emails constam as seguintes menções: «confidencial. Esta mensagem, e quaisquer anexos, é dirigida exclusivamente aos seus destinatários. Contém matéria confidencial legalmente protegida (artigo 113º, nº1 do Estatuto da Ordem dos Advogados (…))»”[6];

10. Entende[7], pois, que a matéria exposta na contestação “quebra com o estatuído na alínea f) do nº1 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados” e, portanto, “a prova direta e indireta que esta tenta produzir (ou vier a tentar…) sobre tais factos não pode ser valorada.”;

11. Afirma verificar-se violação do dever se sigilo profissional visto que, em momento algum, foi requerida a sua dispensa;

12. Informa o Senhor Dr. RAC... ter requerido ao Tribunal – o que se constata ter ocorrido na Réplica[8], apresentada em 06.07.2022 – que oficiasse o Conselho Regional de Coimbra (CRC) para que, “no âmbito de consulta, emita Parecer (…) tendo por referência o [por si ali] alegado”;

13. Decidiu o Tribunal que tal pedido devia ser formulado pelo aqui Requerente;

14. Coloca então as seguintes quatro questões, que pretende ver respondidas:

A. A existência de negociações (malogradas) entre Advogados, os factos conhecidos/ocorridos no decurso das mesmas, o teor das negociações e as declarações feitas no decurso das mesmas estão sujeitas a sigilo profissional?

B. A parte de um articulado em que se revele a existência de negociações (malogradas) entre Advogados, os factos conhecidos/ocorridos no decurso das mesmas, o teor das negociações e as declarações feitas no decurso das mesmas, deve ser considerada como não escrita, por violação do dever de sigilo profissional?

C. Pode ser valorada prova, direta ou indireta, da existência de negociações (malogradas) entre Advogados, os factos/ocorridos conhecidos no decurso das mesmas, o teor das negociações e as declarações feitas no decurso das mesmas?

D. No caso concreto acima sumariado – e por referência à documentação junta – existe violação do dever de sigilo profissional? E, em caso afirmativo, em que medida e com que consequências?”[9]

15. No requerimento inicial apresentado não é, em momento algum, mencionado caráter de urgência, ou tampouco se refere que está em curso um qualquer prazo;

16. Não consta do requerimento inicial qualquer menção expressa ao despacho judicial, (além da sua indicação na enumeração dos documentos juntos), e nem a qualquer prazo ali determinado, a cumprir pela Autora;

17. Compulsados os autos dá-se conta que tal Despacho, que se encontra entre a diversa correspondência eletrónica trocada:

- Tem a data de 31.10.22;

- Foi emitido na sequência da Réplica da Autora (de 06.07.2022) e Requerimento

da resposta da Ré (cuja data se desconhece);

- Determina que:

“1º. O A. deve esclarecer melhor em que consistem as nulidades que invoca, quais os

fundamentos legais que as estribam (….).

 2º É à A. que cumpre juntar o Parecer pretendido.

Prazo: 30 dias.” [10]

18. É a partir dele – porque, repete-se, nada resulta no requerimento inicial e os documentos juntos não foram devidamente organizados, em termos cronológicos – que se percebe o propósito e a atualidade do Requerimento presentado pela A. em 05.12.2022 (i.e., certamente cumprindo o prazo de 30 dias a contar da data da notificação do despacho), no qual reforça a sua posição, designadamente socorrendo-se de jurisprudência dos Tribunais superiores;

19. No art. 25º dessa peça processual (apresentada, portanto, depois do Tribunal ter determinado caber à autora a solicitação ao CRC), protesta a Autora juntar o parecer “logo que o mesmo seja emitido.”[11];

20. A Autora, porém, não o solicitou naquele prazo de 30 dias e, logo, não obteve o Parecer para, em tempo, o juntar ao processo judicial. Frisa-se que o presente Pedido de Parecer deu entrada em 06.02.2023, sensivelmente 3 meses depois daquele despacho e 2 meses depois do seu último Requerimento;

21. A petição inicial da ação de processo comum em causa, que corre sob o nº 15.../22….R, foi apresentada em 21.04.2022, tendo sido subscrita pelo Exmo Requerente e pelo Exmo Senhor Dr. RBP..., advogados a favor dos quais foi emitida procuração com plenos poderes[12];

22. Consta da p.i. que:

                “39. A Autora, para tentar evitar o presente litígio judicial, admitiu revogar o contrato, ficando a Caravana para a Ré e podendo esta levantar a garantia prestada [essa Caravana, “instalações modelares (mais pequenas)”[13]] nas estritas condições essenciais de lhe ser devolvida a quantia de Eur 38.000,00 (…) que já tinha pago e, ainda, de imediata e extrajudicial resolução do litígio.

No entanto,

40. Não houve consenso entre as Partes, mantendo-se a situação inalterada;

41. Ficando sem efeito e afastada aquela possibilidade, desde logo porque a Autora se vê forçada a recorrer aos meios judiciais.”[14]

23. Na contestação, apresentada em 31.05.2022, a Ré apresentou defesa invocando que:

                “45. Veio a ser estabelecido um acordo entre as partes;

                46. Nesse acordo, era agendada uma data para a Ré proceder ao levantamento dos módulos (…) ser devolvido os montantes recebidos peça Ré (…) aquando da assinatura do contrato, acrescido de (…) referentes à fatura de (…);

                47. Ainda com essa entrega ficariam saldadas todas as contas entre as partes, motivo pela qual eram emitidas notas de crédito das faturas emitidas [por ambas as partes].

                48. Ainda no âmbito desse acordo, a Ré não exigiria qualquer compensação pela recusa da Autora em devolver os seus bens.

                49. Alcançado esse acordo, foi agendada a data de 15 de Março 2022 para que fosse dado cumprimento ao mesmo.”

24. Desse ponto em diante, explica a Ré que, nesse dia de manhã, a Autora se recusou a autorizar o levantamento dos ditos módulos, impedindo mesmo o seu acesso ao local;
25. Fê-lo, não obstante a Ré, na pessoa do seu gerente, se ter deslocado propositadamente para cumprir o acordado, de Á… a Quarteira (Algarve), com homens e grua previamente contratados e pagos;

26. Perante a GNR, entretanto chamada, comprovou-se a recusa da Autora naquela entrega;

27. Quanto aos emails juntos como docs. 8 a 10 da contestação:

Doc. 8 – Cópia do email remetido por PS…, gerente da Autora, a FC…, a representar a Ré, com conhecimento, apenas, da Autora (email geral, sua contabilidade, delegação e pessoa concreta da empresa), às 12:47h do dia 15.03.2022:

Exmos Senhores,

Conforme combinado, declaramos que permitimos a entrada da autogrua da Vendap para proceder ao carregamento dos dois módulos de caução que integram a casa modelar (sic) que se encontra nas nossas instalações sitas em (…) Quarteira, a partir das 15h, conquanto que previamente e até essa hora tenha dado entrada na nossa conta com disponibilidade imediata o valor de Eur 38.000,00 relativos à devolução acordada.”

Agradecemos o envio prévio do comprovativo para que se possa validar o referido pagamento.”[15]

Doc. 9 – Cópia do email de resposta (com o anterior abaixo), enviado às 14:49 desse mesmo dia por FC..., em representação da Ré, a PS..., com conhecimento de 6 outras pessoas/departamentos cujos endereços e nomes não é possível identificar:

“Cara Drª PS...,

Não existe qualquer acordo ou combinação para levantar a casa a partir das 15 horas mediante prévio pagamento da quantia de 38.000 €.

O que estava acordado e que não foi cumprido da vossa parte, era o levantamento da casa da parte da manhã sendo simultâneo o pagamento e o levantamento.

Da nossa parte cumprimos com o acordado e tivemos as equipas à porta das vossas instalações da parte da manhã, tendo sido vedada a entrada.

Depois das nossas equipas se terem ido embora, enviam este email??

Com os melhores cumprimentos”[16]

     Doc. 10 – Composto por duas comunicações eletrónicas:

1.Cópia de email enviado pela dita gerente da Autora ao mesmo representante da Ré, às 10:22h do dia 16.03.2022,– desta feita, já com conhecimento, entre outros, a “V…Advogados”, onde se lê:

“Caro Sr. FC...

Relativamente ao email que enviou gostaria de esclarecer o seguinte:

1)      O seu patrão C... e alguns funcionários acompanhados por um camião da chapa simétrica que ontem depois de envio o nosso mail as 14h47 permaneceu toda a tarde em frente ao nosso estaleiro (como é possível comprovar pelo registo fotográficos e testemunhas) dirigiram-se ontem, a meio da manhã, ao nosso estaleiro sem acordo…”[17],[18]

2.  Cópia de email enviado àquela gerente por FC..., em representação da Ré, às 14:44h do dia 17.03.2022, , onde não é possível visualizar a parte superior da mensagem[19] e, por conseguinte, a quem foi dado conhecimento:

          “Em resposta ao seu email venho transmitir o seguinte:

1.      O que foi acordado entre os nossos advogados é o que consta do acordo redigido pelo seu advogado e enviado ao nosso advogado.

2.      Do acordo alcançado, disponibilizávamos todos os meios necessários para que o mesmo fosse cumprido, nomeadamente os meios logísticos e de ordem financeira”.

3.      O que não estava acordado foi a exigência feita pela V parte no dia anterior à entrega quando já tínhamos contratado e pago toda a logística.

4.      Exigência essa que passava pela obrigatoriedade de o serviço de grua ser feito pela V. empresa e faturado à nossa empresa.

5.      Lamentável o que se seguiu após essa exigência e que culminou com o não cumprimento do acordo alcançado por culpa da vossa parte.

6.      Lamentável também os recursos financeiros que gastámos para cumprir com o acordo e que não serviram para o propósito pretendido.

7.      Inglório o esforço humano da equipa que viajou para o Algarve e da equipa da Vendap que não puderam cumprir o seu objetivo.

8.      Como a senhora sabe, estamos representados por advogado, pelo que agradeço que não continue a enviar mais comunicações para a empresa e o que tiver a dizer e/ou transmitir que o faça para o nosso advogado.

Com os melhores cumprimentos,”[20]

28. O presente processo foi distribuído e recebido pela signatária em 17.02.2023;

29. Por email de 07.03.2023 a Senhora Dra BCL... enviou email ao CRC, solicitando a indicação de “uma data estimada para a conclusão do Parecer nº 4/PP/2023-C, uma vez que, o prosseguimento do processo nº 15.../22….R, a correr termos no Juiz 1- Juízo Central Cível de A… (…), se encontra dependente da emissão do mesmo.”;

30. A Senhora Dra BC… é, neste processo, “um terceiro” alheio aos processos (o judicial e o presente), apenas se deduzindo, pela utilização do logotipo do Exmo Requerente na sua mensagem, que integrará o seu escritório (“cba” não se encontra registada como sociedade de advogados);

31. O Conselho Regional de Coimbra analisa todo os pedidos que dão entrada com explícita indicação e fundamentação, pelos requerentes, do seu caráter de urgência, dando prioridade de decisão a todos os que têm diligências agendadas/prazos em curso;

32. Sempre se dirá, porém, que todos os Pareceres têm de ser aprovados em sessão do CRC, sendo que o que agora nos ocupa irá à próxima sessão deste órgão, que reúne quinzenalmente.

               

II. Apreciação

 

            A. A competência consultiva do Conselho Regional de Coimbra

 

                O Conselho Regional de Coimbra detém competência para a emissão do presente parecer, não apenas por estar subjacente situação verificada em localidade pertencente à sua área de competência territorial, mas ainda porque a mesma configura questão de carácter profissional expressamente submetida à sua apreciação, nos termos do art. 54º, nº1, al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).

                Procedendo à delimitando do âmbito material da norma, avança-se que questões de carácter profissional são todas aquelas que se prendem com o exercício da advocacia, tradicionalmente concebidas como decorrentes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam a profissão. Resultantes, em especial, das normas do nosso Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados.

                Porém, os poderes atribuídos aos Conselhos Regionais para a dita pronúncia têm, necessariamente, de ser entendidos e conciliados com a competência específica que é conferida, em áreas concretas, a outros órgãos da estrutura da Ordem dos Advogados. É o caso do poder disciplinar, e do de velar pelo cumprimento das normas de deontologia profissional, atribuído aos Conselhos de Deontologia (art. 58º do EOA).

                Uma tal consideração, com o respeito que é devido à estrutura orgânica e consequente repartição de funções e competências materiais para o seu exercício, determina, pois, que o Conselho Regional de Coimbra – no que importa à apreciação de assuntos referentes a deontologia ou ética profissional – apenas possa pronunciar-se, quanto a tais matérias, em termos de mera orientação, de estrita resposta à consulta colocada. Precisamente por, neste âmbito, deter unicamente competência consultiva, e carecer, portanto, de competência decisória. Por tal razão, não foi o Senhor Advogado visado notificado nos termos e para os efeitos do art. 121º do CPA.

                Tem sido prática deste Conselho responder às questões profissionais deste foro que lhe são colocadas, sem embargo de, em função do respeito pelo princípio da legalidade, comunicar os casos identificados como condutas passíveis de integrar, ou que integram, violação de deveres e princípios ético-deontológicos, ao Conselho de Deontologia de Coimbra, para os devidos efeitos.

                Esta concreta opção determina, não apenas a circunscrição da apreciação – estritamente a efetuar a partir dos elementos trazidos ao processo pelo requerente –, mas ainda a natureza não vinculativa da correspondente decisão, que não configura, nem pode alcançar relativamente à questão de fundo, uma decisão de mérito.

                Assim apresentada, a situação subsume-se ao identificado dispositivo, sendo que a resposta importará, naturalmente, no prisma da validade da prova.

                Isto, embora o efeito útil, direto e imediato, da posição ou juízo a emitir pelo CRC, aproveite ao próprio Tribunal da causa, em particular no momento da sua decisão. O interesse no sentido da resposta às questões colocadas é, em primeira instância, do Tribunal, que, no exercício da sua função jurisdicional, resultante do art. 202º da CRP e art. 2º, nº2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário[21], decidirá da validade dos meio probatórios.

 

            B. O Segredo Profissional do Advogado

 

Compulsados os autos e partindo do quadro factual apurado, entende-se que, para a devida apreciação das questões colocadas, emerge como imprescindível o enquadramento teórico do tema.

 

1. O dever de guardar segredo profissional

 

O segredo profissional inscreve-se “no património cultural da advocacia”[22], constituindo “um dos pilares em que a advocacia firma a sua dignidade e independência. Mas é também condição da sua existência.”[23]

Este especial dever pressupõe – e exige – uma “relação de causalidade necessária”[24] entre o exercício das funções e o conhecimento dos factos sigilosos, precisamente “em termos de causalidade adequada.”[25]

Ora, é no nº1 do art. 92º do EOA, que o legislador define o âmbito subjetivo da obrigação de sigilo: o próprio advogado que, no exercício das suas funções, toma conhecimento de (certos) factos. Dúvidas não restarão de que consubstancia uma obrigação daquele que exerce a profissão. Logo, será sempre dever que impende exclusivamente sobre um Advogado.

O EOA e, no que aqui importa, esta sua norma, é aplicável linearmente, como se viu, a Advogados e Advogados-Estagiários[26] inscritos na Ordem dos Advogados, não vinculando – além dos que com estes colaboram – terceiros. 

                Para aferir se determinada matéria está, ou não, sujeita ao dever de segredo profissional, há que averiguar a natureza dos factos, verificando se os mesmos se enquadram em alguma das alíneas enunciativas daquela norma, ou se caem na cláusula geral estipulada pelo nº1.

                A amplitude aplicativa da norma resulta, desde logo, do emprego pelo legislador do vocábulo “designadamente”, que a transforma numa norma aberta, i.e., de caráter que, não sendo taxativo, é, antes, meramente indicativo. Como, aliás, foi explicado na Consulta 1/2009 do então Conselho Distrital de Lisboa[27], sufragando o entendimento do Bastonário Lopes Cardoso: “Sob a fórmula constante do [atual nº1 do art. 92º] do EOA, encontra-se aquela que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos. As demais regras previstas nas alíneas da mesma, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação. O sentido da letra de tal disposição, bem como a utilização do advérbio «designadamente», não deixam, a este propósito, grandes margens para dúvidas.” [28]

                Salienta-se que a expressão utilizada na formulação desse segmento normativo, no que respeita a “todos os factos” que o advogado é obrigado a guardar segredo no exercício da sua profissão, deverá ser interpretada cum grano salis, e não no seu estrito sentido literal, sob pena de se ultrapassar a ratio do comando legal, esvaziando de sentido o próprio sigilo[29]. Assim, como ensina Sousa Magalhães, “O conceito de «factos» para efeito do sigilo profissional é um conceito amplo e compreende não só os factos materiais susceptíveis de alegação, como os próprios documentos”[30].

               A exegese implica, pois, um trabalho de equilíbrio e razoabilidade, com início no reconhecimento de que factos há que são transmitidos ao advogado precisamente para que este os leve e transmita, os dê a conhecer a terceiros, sejam outras pessoas ou mesmo processos judiciais[31]. Tal como outros existem que não se encontram, sequer, abrangidos pela obrigação do segredo advocatício.

Impõe-se, pois, determinar ab initio o conteúdo do nomen iuris “segredo”. Ora, a Ordem dos Advogados tem já um considerável filão jurisprudencial[32] que, através do que é designado “triplo crivo”,  identifica o que é “segredo”, permitindo traçar o perímetro da norma estatutária. O sigilo dependerá, então:

  1. Da forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
  2. Do teor do próprio facto; e
  3. Das concretas circunstâncias do conhecimento e da revelação.

A natureza da questão exige uma prévia análise casuística, levando a concluir, contudo, no que se acompanha de perto Rodrigo Santiago, que “estarão a coberto do segredo facto ou factos relativamente aos quais a pessoa com quem ele ou eles respeitem tenham um «interesse objectivamente fundado» em que se mantenham reservados.”[33]

              

2. A concessão de dispensa de sigilo profissional

 

Sendo certo que o Exmo. Requerente solicita parecer “sobre Existência de Quebra do Dever de Segredo Profissional e …”[34], e ainda “de Nulidade de Arguição e Prova de Factos a ele sujeitos”, deixando claro que “é entendimento da Autora que a exposição (…) na contestação quebra com o estatuído”[35] no EOA, importa fixar as coordenadas axiais da problemática.

               2.1. A possibilidade legal de levantamento do sigilo

 

               A excecional possibilidade de desvinculação do Segredo Profissional encontra-se consagrada no nº4 do mencionado art. 92º do EOA, a interpretar rigorosamente no seu sentido literal. Na mesma linha, refletindo o nosso entendimento tradicional, o Regulamento de Dispensa de Sigilo determina, no nº1 do art. 4º, que a autorização de cessação do segredo tem caráter excecional. Ou seja, e a contrario, a regra é a da manutenção do segredo advocatício, pelo indeferimento do levantamento da sua obrigação.

               Como não podia deixar de ser. Sendo este o mais importante e característico dever do advogado, na verdade, “uma questão de honra e de dignidade profissional”[36], naturalmente que só poderá ceder em circunstâncias de exceção, verificados que sejam os estritos requisitos legais. Além de que o seu levantamento terá de ser apreciado, e decidido, dentro de precisos e rigorosos limites, escalpelizando a situação e os factos a desvelar, e realizando uma minuciosa subsunção legal. Sempre, atendendo aos superiores interesses a salvaguardar.

Tanto mais que “Uma banalização da desvinculação dos Advogados do dever de guardarem segredo profissional descaracterizaria e desvirtuaria a Advocacia perante a comunidade.”[37] Atente-se: A obrigação de segredo profissional, há muito estabelecida no interesse geral, é indissociável da imagem do advogado. [38]  De tal modo que a violação deste especial dever extravasa o Homem e o profissional que o desrespeitou e, com tal atitude, atraiçoou quem confiou em si. Na verdade, “fere uma sociedade inteira, porque retira à profissão, uma das bases sobre que a sociedade se apoia, ou seja, a confiança que a deve cercar.”[39]

                É absolutamente determinante que a consciência da amplitude do dever de guardar segredo profissional, i.e., a consciência da sua dimensão ético-profissional, social e mesmo cívica, e bem como das suas efetivas repercussões, esteja a tal ponto imprimida na pessoa do próprio advogado, que se assuma, mais do que como uma regra, como um imperativo de conduta. Que integre e faça parte da essência do advogado e, assim, da profissão que exerce e da forma como a exerce. 

               Como adianta Carlos Pinto de Abreu, “não perdendo, todavia, o horizonte mais vasto que a preservação da imagem pública do advogado implica, como face da mesma moeda que garante e justifica as prerrogativas no exercício da advocacia, nomeadamente o dever de sigilo profissional”[40]. Trata-se do dever-ser do advogado.

 

                2.2. Legitimidade para o pedido de dispensa de sigilo

 

                Estabelecido que está que o segredo profissional subjacente ao desenvolvimento desta atividade é um segredo do profissional, i.e., do próprio Advogado enquanto profissional que, integrado numa associação pública representativa da sua classe – a pessoa coletiva de direito público[41] que é a Ordem dos Advogados –, se encontra sujeito à sua disciplina, é este a única pessoa com legitimidade para requerer a correspondente desvinculação, conforme resulta diretamente do art. 2º do Regulamento 94/2006, de 25 de Maio[42].

Carece, portanto, de legitimidade para tal efeito, não apenas o seu cliente, como qualquer terceiro, como seja a contraparte de um processo ou o Tribunal. É esta, pois, “a única perspetiva coerente com a natureza do Instituto.”[43]

A menos que se verifique uma situação de quebra, ou obrigação. Exatamente porque o levantamento do dever de sigilo que onera o Advogado pode ocorrer, além do caso especial de revelação por obrigação ex lege (branqueamento de capitais), por uma dúplice via – voluntariamente, mediante pedido de dispensa, ou através do incidente de quebra de sigilo.

 

               2.3. Momento do pedido de desvinculação

 

O levantamento do segredo advocatício encontra-se subordinado a condição: a prévia autorização do/a Presidente do Conselho Regional, que averiguará as circunstâncias extraordinárias da absoluta necessidade da desvinculação, tendo exclusivamente como fim “a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes” (art. 92º, nº4 do EOA).

               A dispensa de segredo profissional tem, pois, forçosamente, de ser solicitada em momento prévio à revelação do segredo, a priori. Sob pena de, após a sua divulgação, tal formulação ser desprovida de qualquer sentido. Na verdade, nessa ocasião já não existe segredo, assistindo-se a uma verdadeira impossibilidade de autorização.

               Qualquer pedido de levantamento de sigilo efetuado posteriormente à exposição dos factos sigilosos importa que não possa, já, emitir-se decisão – seja de deferimento ou indeferimento. Tendo deixado de haver segredo a dispensar, a situação apresenta-se como um non liquet, implicando a comunicação ao Conselho de Deontologia, por violação do dever.

              

3. A prova obtida com violação de segredo profissional

 

               A violação do dever de sigilo é geradora de responsabilidade disciplinar do Advogado, além de o fazer incorrer em responsabilidade penal e civil. 

               No entanto, tem ainda implicações imediatas a nível processual, no campo da prova, encontrando-se a correspondente cominação especificamente prevista no próprio dispositivo. Com efeito, preceitua o nº5 do art. 92º do EOA que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”, traduzindo-se numa expressa proibição de valoração da prova. “O que significa que, quando se emprega o termo «prova» neste contexto, se pensa no resultado obtido através de um determinado meio de prova.”[44]

               A prova assim obtida é materialmente proibida constituindo, consequentemente, prova ilícita[45]. Será, então, nula, com sujeição ao regime geral das nulidades processuais[46] sempre que “possa influir no exame ou decisão da causa” (art. 195º, nº1 CPC).

               Rodrigo Santiago aborda o tema nas suas Considerações Acerca do Regime Estatutário do Segredo Profissional dos Advogados, adiantando que, “da perspetiva processual – seja ela civil, seja penal, seja estatutária, ou qualquer outra – o dever de guarda de segredo profissional corporiza aquilo que nesta sede a doutrina vem chamando de «regra de proibição de produção de prova»”, rematando que “Como quer que seja ou deva ser: o referido nº5 do artigo [92º atual] constitui comando da maior importância pela respetiva aplicação a vastos âmbitos do processo civil e do penal, «heteronomamente determinada».”[47]

III. Pronúncia

 

Delineada a necessária perspetiva teórica da matéria, passam a apreciar-se as questões colocadas pelo Exmo. Requerente.

Em causa está, por um lado, a eventual revelação, em peça processual, de factos sigilosos conhecidos em sede de negociações que se frustraram e, por outro lado, a junção à mesma peça de 4 emails que não foram trocados entre Advogados mas, antes, diretamente pelas partes entre si.

E quanto a estes se responde já não estarem a coberto do sigilo profissional do Advogado, pelas razões já enunciadas. Isto – adianta-se sem qualquer hesitação – independentemente do seu conteúdo.

Assume pertinência esclarecer um aspeto prático determinante da proteção da confidencialidade das comunicações dos advogados, consignada no art. 113º do EOA. Perpassa deste normativo a condição de, para obtenção daquele resultado de “absoluta confidencialidade”, o advogado “exprimir claramente tal intenção”. É inequívoco o intuito do legislador, devendo, pois, o nº1 desta previsão legal ser interpretado de acordo com a força e gravidade que imprime. Assim, dúvidas não restarão de que, uma frase com menções genéricas que se relega para o final de um email, figurando na zona da assinatura do remetente e abaixo da mesma, por regra escrita com letras mais pequenas que as do corpo do email, ou intercalada (e “sumida”) entre a imagem de um logotipo, surgindo – e seguindo – de forma sistemática e indiscriminada em todos os emails enviados pelo remetente, não integra, ainda que com a indicação do artigo 113º, o preceito da lei. E, por conseguinte, não assegura o caráter absolutamente confidencial da correspondência – no caso, eletrónica.

Além de que as características destas comunicações – incluídas com tão pouco destaque e seguindo, como se disse, sistematicamente em todos os emails – não permitem, de per si, adivinhar ou fazer supor que traduzem uma efetiva vontade do seu autor. Na verdade, uma tal utilização banaliza a própria mensagem, retirando-lhe o significado. Entendimento este que é, atualmente, consensual[48]. Para que se considere que o Advogado “exprimiu claramente” (nos termos da lei) que uma comunicação está protegida pela confidencialidade conferida por força da lei, tal referência há-de ser inequivocamente incluída no próprio texto, constando, portanto, do corpo do email.

Aqui chegados, verifica-se que a resposta cabal às questões do Exmo. Requerente – maxime a formulada na al. D. demanda uma última apreciação, desta feita no que toca à alegada exposição, nos articulados, de matéria reservada concernente a transações que se goraram. Para o que ora se parte relembrando que, em sede de negociações, a obrigação de segredo do advogado se estende, numa primeira linha, “A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio” (al. e) do art. 92º, nº1 do EOA). Sendo que abrange ainda “(…) factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.” (al. f)).

Existem, todavia, notórias diferenças no regime destes dois tipos de negociações subordinadas a segredo profissional.

A verdadeira matriz do conteúdo da alínea e) reside no dever de sigilo referente a factos dados a conhecer pela outra parte (ou seu representante). Em causa estão, portanto, negociações dirigidas à resolução amigável de um litígio ou diferendo, retirando-se, a contrario sensu, que “factos relativos a negociações que tenham em vista outros fins que não estes, não se encontram protegidos.”[49]

Assinala-se a grande diferença entre estas duas concretizações do segredo advocatício: “Enquanto que, na alínea e), a fonte dos factos era a parte contrária do cliente ou seu representante no litígio ou diferendo, aqui [al. f)] não importa a origem dos factos.

 Mas, mais importante ainda, se naquela prévia previsão [al. e)] os factos tinham que estar ligados a litígio ou diferendo, ou seja, se a vivência de um litígio ou diferendo é já uma realidade, que se pretende solucionar; no presente caso [al. f)] o litígio ou diferendo não existe (ainda).”[50] O que se observa, tipicamente, em negociações malogradas para celebração de um qualquer contrato – malograram-se antes de ir a Tribunal.

 

Na situação vertente, existem nos autos elementos que permitem afirmar que, desde início das divergências (se não mesmo antes, aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda subjacente) as partes estiveram sempre representadas por mandatários. Os quais, tendo tratado da resolução extrajudicial do dissídio, encetaram e desenvolveram negociações que alcançaram bom porto, tendo sido obtido acordo.

Revela o Exmo. Requerente na petição inicial, em síntese, os termos do acordo, afirmando que[51] “A Autora, para tentar evitar o presente litígio judicial, admitiu revogar o contrato, ficando a Caravana para a Ré e podendo esta levantar a garantia prestada [essa Caravana, “instalações modelares (mais pequenas)”[52]] nas estritas condições essenciais de lhe ser devolvida a quantia de Eur 38.000,00 (…) que já tinha pago e, ainda, de imediata e extrajudicial resolução do litígio.”[53]

Efetivamente, e sem qualquer outra concretização, sabe-se apenas que, estando tudo acertado, no dia combinado (15.03.2020) a Autora, através da sua gerente, PS..., impediu a Ré, na pessoa de Fábio Costa, de retirar a dita “casa modelar” com recurso a grua e equipa de funcionários – previamente contratados, e pagos, para realização daquele trabalho.

Não tendo os respetivos mandatários estado presentes no local, e perante o sucedido, nesse dia e nos dois seguintes os representantes de ambas as partes trataram diretamente um com o outro, designadamente através da troca de emails. Emails que apenas cessaram quando aquele representante da Ré, em mensagem eletrónica de 17.03.2023, o solicitou expressamente – “estamos representados por advogado, pelo que agradeço que não continue a enviar mais comunicações para a empresa e o que tiver a dizer e/ou transmitir que o faça para o nosso advogado.”[54]

É contra a junção destas mensagens eletrónica, e ainda contra a matéria alegada na defesa da Ré por impugnação do que foi invocado (nos arts. 39º a 41º da p.i.) que se insurge o Exmo. Requerente, pretendendo obter respostas.

Sendo certo que já se afirmou que uma tal troca de correspondência entre os clientes não pode incluir-se no segredo do advogado, fazemos nossas as palavras da Exma. Senhora Juíza do processo: “às partes e a terceiros o que é destes; aos Senhores Advogados o que é dos Senhores Advogados.”[55] Tão simples quanto assim colocado.

Circunscritos estamos, agora, ao campo das negociações conduzidas por advogados e à sua particular proteção e, em específico, às negociações malogradas – como deixa expresso o Exmo. Requerente na sua p.i. – relativamente às quais tem a jurisprudência da nossa Ordem estabelecido uma tripla justificação de reserva, uma vez que visa:

1. Garantir a independência do advogado;

2. Proteger os interesses legítimos e expectativas do seu cliente; e ainda

3. Proteger os interesses legítimos da parte contrária, e bem assim do seu mandatário.

Sublinhe-se que “nas negociações transaccionais malogradas, a obrigação de segredo tem especial relevo porque as partes estiveram dispostas a fazer cedências, a abdicar do que julgam ser o seu direito, na convicção de que «mais vale um mau acordo do que uma boa demanda» ou (…) «mais vale um pássaro na mão que dois a voar», e seria muito perturbador para a justiça, influenciando psicologicamente a apreciação da prova, dar a conhecer o que ocorreu nas negociações que se malograram, de nada adiantando para o desfecho do processo saber o que alguém, em negociação transaccional malograda, estava disposto a aceitar.”[56]                

                A ininvocabilidade das negociações e dos seus precisos termos deriva igualmente da obrigação de respeito pelos deveres recíprocos entre advogados, prima facie pelo dever de lealdade (art. 108º do EOA), mais do que, estamos em crer, do dever de solidariedade entre Colegas (art. 111º do EOA), como tem vindo ultimamente a defender-se. Contudo, não é a violação de tais deveres que implica, como consequência imediata, a violação do dever de sigilo profissional. Sucede apenas que a divulgação de factos conhecidos durante negociações para acordo amigável é mais grave quando envolve outro Colega[57]. Entramos já, portanto, no domínio das relações entre Colegas.

Note-se, porém, que apenas “aludir, na petição ou noutra peça processual, a que houve negociações para um acordo entre as partes acompanhadas pelos seus mandatários, acordo que não foi formalizado, alegadamente por recusa da parte contrária, não é revelar factos cobertos pelo sigilo profissional (…) nem é invocação proibida de negociações transacionais, quer estas devam qualificar-se como negociações para acordo amigável (…) quer devam qualificar-se como transações malogradas.”[58]

Convém, aliás, destacar, que “Nenhum Autor nem nenhuma decisão dos órgãos da Ordem sustentaram, porém, alguma vez, que aquele normativo (…) proibia a simples alusão a negociações”[59].

Em consonância com o exposto, e concatenando, afastada que está a junção de correspondência entre as partes, a questão central dos presentes autos envolve matéria respeitante a negociações tendentes à composição extrajudicial de litígio que, a final, se goraram. No entanto, atenta a formulação das questões que o Exmo. Requerente coloca sob consulta, e sendo certo que o próprio já as respondeu, atesta-se que pretende apenas ver confirmada a sua posição, a tese que traçou e defende. Quer que confirmemos o que já alegou, e procurou provar com a junção, logo na réplica, de um parecer do Conselho Regional do Porto e ainda com invocação expressa, e citações, de acórdãos dos Tribunais superiores.

No que tange a matéria sigilosa revelada em articulados, o Bastonário Lopes Cardoso, na sua obra «Do segredo Profissional na Advocacia», integra-a nos “modos de revelação proibidos” e, em concreto, na “Narração escrita dos factos”. E conclui que, quando tal sucede no processo, no exercício do mandato, “Ninguém poderá questionar que essa atitude, por si mesma, já constitui ofensa à obrigação de sigilo (…).[60]  Na verdade, consubstanciando já exposição de facto protegidos pelo segredo profissional, será absurdo pretender mais tarde, ou seja, «a posteriori» solicitar apenas autorização para juntar documentos destinados, por exemplo, a provar os quesitos onde os factos sigilosos, porque antes articulados, já estão contidos.”[61]

 

IV. DECISÃO

 

Com fundamento em todo o exposto, entende responder-se às questões do Exmo. Requerente nos seguintes termos:

A. A existência de negociações (malogradas) entre Advogados, os factos conhecidos/ocorridos no decurso das mesmas, o teor das negociações e as declarações feitas no decurso das mesmas estão sujeitas a sigilo profissional?

O Art. 92º do EOA, sob a epígrafe “Segredo profissional” prevê expressamente na al. f) do seu nº1 as situações identificadas pelo Exmo Requente.

B. A parte de um articulado em que se revele a existência de negociações (malogradas) entre Advogados, os factos conhecidos/ocorridos no decurso das mesmas, o teor das negociações e as declarações feitas no decurso das mesmas, deve ser considerada como não escrita, por violação do dever de sigilo profissional?

Caso resulte inequívoco que os factos vertidos em peças processuais se estavam a coberto do sigilo advocatício, há lugar à aplicação da inerente consequência, prevista no nº5 do art. 92º do EOA.

C. Pode ser valorada prova, direta ou indireta, da existência de negociações (malogradas) entre Advogados, os factos/ocorridos conhecidos no decurso das mesmas, o teor das negociações e as declarações feitas no decurso das mesmas?

O nº5 do art. 92º do EOA encerra resposta direta – “Os atos praticados pelo advogado com violação do segredo profissional não podem fazer prova em juízo.”

D. No caso concreto acima sumariado – e por referência à documentação junta – existe violação do dever de sigilo profissional? E, em caso afirmativo, em que medida e com que consequências?”[62]

Existe revelação expressa da existência e teor de negociações malogradas no art. 39º da petição inicial, o que determina a aplicação da cominação prevista no citado nº5 do art. 92º. Em sede de contestação foi vertido o teor de correspondência eletrónica trocada diretamente entre as partes e, para prova do alegado, foram juntos os correspondentes documentos. Ora, não estando, nem podendo estar, as partes/terceiros sujeitas ao sigilo profissional (do Advogado), a correspondência em causa não está submetida ao dever de segredo (nunca podendo haver lugar a aplicação do art. 92º do EOA), de modo que a sua transmissão em articulados nunca implicaria qualquer sanção do nº5. Porém, o Senhor mandatário da Ré revelou, no seu articulado, matéria que não consta dos mencionados emails, ocorrendo, nos arts. 47º e 48º da contestação exposição de factos relativos a negociações malogradas, em função do que, como consequência, há lugar ao determinado no nº5 do art. 92º do EOA.

 



[1] A fls. 2 dos presentes autos.

[2] Idem.

[3] Ibidem.

[4] A fls. 3 dos presentes autos.

[5] Idem.

[6] A fls. 3 dos presentes autos.

[7] A fls. 3 e 4 dos presentes autos.

[8] A fls 123 dos presentes autos.

[9] A fls 4 dos presentes autos.

[10] A fls. 152 e 153 dos presentes autos.

[11] A fls. 149 dos presentes autos.

[12] A fls. 80 dos presentes autos.

[13] Art. 35º da p.i., a fls. 23 dos presentes autos.

[14] A fls. 24 dos presentes autos.

[15] A fls. 109 dos presentes autos.

[16] A fls. 109 verso dos presentes autos.

[17] A fl. 110 dos presentes autos.

[18] Não é possível ler o restante conteúdo - a impressão da página cortou, na parte inferior, o email.

[19] Também cortada pela impressão.

[20] A fl. 110 dos presentes autos.

[21]  Lei 40-A/2016, de 22 de Dezembro.

[22] Fernando Fragoso Marques, ROA, Ano 59, Ano vol. I, pg. 379.

[23] Idem.

[24]  Fernando Sousa Magalhães, EOA Anotado e Comentado, Almedina, 2015, 10ª ed., pg. 138 (nota 6).

[25]  Orlando Guedes da Costa, Direito Profissional do Advogado - Noções Elementares, Almedina, 8ª Edição Revista e Atualizada, pg. 389.

[26]  E a todos os que com estes colaboram.

[27]   Relatada por Rui Souto, e disponível em www.oa.pt

[28]  Do Segredo Profissional na Advocacia, CELOA, 1997, pgs. 31 e 32.

[29] Parecer nº49/PP/2011, e O Dever de Guardar Sigilo Profissional – Uma Aproximação Prática, Comunicação do VI

    Congresso dos Advogados Portugueses, Rui Souto, www.oa.pt

[30] Op. cit., pg. 138, nota 11.

[31] Neste sentido, o Parecer nº 133/05, do Presidente do Conselho Distrital de Lisboa.

[32]  Do Conselho Regional de Lisboa.

[33] ROA, 57, Vol I, pg. 237.

[34] A fls. 2 dos presentes autos.

[35] A fls. 3 dos presentes autos.

[36] Amílcar de Melo, Da Advocacia, ed. Almeida & Leitão, Lda., 2013, pg. 164.

[37] Parecer nº 44/PP/2009-G, do Conselho Geral, de 10.02.2010, Relatado por Ana Costa de Almeida.

[38] Maria Clara Lopes, Segredo Profissional, BOA nº10, pg. 13.

[39] Idem. Os destaques são da autoria de Maria Clara Lopes.

[40] Carlos Pinto de Abreu, Consulta nº29/2009, Pareceres do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Triénio 2008-2010, Volume I, pg. 363, publicado pelo CDL, disponível em www.oa.pt

[41] Art. 1º, 1 e 2 do EOA.

[42] Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.

[43]  Rui Souto, op. cit.

[44] Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, pg. 55.

[45] V.g., por todos, o Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.06.2012, Relatado por Henrique Antunes, www.dgsi.pt

[46] José Lebre de Freitas, et al., Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. II, pg. 536.

[47] Op. cit., pg. 233.

[48] Cita-se, por todos, o Parecer nº 6/PP/21-P do Conselho Regional do Porto, relatado por Joana Magina.

[49] Rui Souto, op. cit., pg. 10.

[50] Rui Souto, op. cit., pg. 10.

[51] O sublinhado é da nossa autoria.

[52] Art. 35º da p.i., a fls. 23 dos presentes autos.

[53] Art. 29º, a fls. 24 dos presentes autos.

[54] A fls. 110 dos presentes autos.

[55] A fls. 152 dos presentes autos.

[56] Orlando Guedes da Costa, op. cit., pgs. 393 e 394.

[57] Parecer do Conselho Geral, ROA 44, Vol. III, pg. 738, relatado por Luís Sáragga Leal.

[58] Orlando Guedes da Costa, op. cit., pgs 390 e 391.

[59] Op. cit, pg. 391.

[60] Op cit, pg. 38.

[61] Idem.

[62] A fls 4 dos presentes autos.

 

Marta Ávila

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