Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 5/PP/2023-C

Processo de Parecer (05/PP/2023-C)

 

1.     O Tribunal Administrativo e Fiscal de L…, no âmbito do respetivo Processo nº 17…/15.0B…A, solicitou a este Conselho Regional a “emissão de parecer … nos termos solicitados no requerimento com a referência 507… de …/2023”, no qual o Exmo. Colega Dr. NC…, titular da cédula profissional nº …C, mandatário de um interveniente nos referidos autos, questiona possíveis “problemáticas de atuação deontologicamente proibidas” (sic) da Exma. Colega Dra. ACA…, titular da cédula profissional nº …C, co-autora nos referidos autos (advogando em causa própria) e mandatária dos demais co-autores (seu cônjuge e filhas),

1.1.    porquanto uma das testemunhas arroladas pelos autores “tem uma relação de proximidade com a … Dr.ª ACA..., sendo dela cunhado”,

1.2.    o que concita dúvidas ao Exmo. Colega Dr. NC... em face das estatuições dos Artos 92º, 99º, nos 1 e 5, 109º e 112º/1d) do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), mais concretamente,

1.2.1.   em sede de conflito de interesses (Artº 99º/1 do EOA),

1.2.2.   de proteção do sigilo profissional (Artos 99º/5 e 92º do EOA),

1.2.3.   de proibição de contactos com testemunhas (Artº 109º do EOA),

1.2.4.   e do dever de lealdade, na sua vertente de não prossecução de vantagens ilegítimas ou indevidas (Artº 112º/1d) do EOA).

1.3.    pretendendo, assim, o Exmo. Colega Dr. NC... que este Conselho Regional se pronuncie e emita “Parecer quanto à conformidade dos deveres deontológicos do comportamento” da Exma. Colega Dra. ACA....

2.     Nos termos do disposto no Artº 54º, nº 1, alínea f), do EOA, compete aos Conselhos Regionais da Ordem dos Advogados “Pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional”, pelo que cumpre emitir o solicitado parecer,[1]

3.     importando, desde logo, recordar o teor do invocado Artº 99º do EOA (com a epígrafe “Conflito de Interesses”): “O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária” (nº 1) e “… deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente” (nº 5).

4.     A problemática suscita-se, pois, ao nível da aceitação do patrocínio, o que o Exmo. Colega Dr. NC... refere ter ocorrido em 13/01/2023, através de substabelecimento sem reserva a favor da Exma. Colega Dra. ACA...; já o arrolamento da testemunha em causa, por sua vez, terá ocorrido em 18/01/2023 e a sua inquirição em 08/02/2023, pelo que os factos que concitam dúvidas ao Exmo. Colega Dr. NC... (o arrolamento e a inquirição como testemunha de cunhado daqueloutra Exma. Colega) serão posteriores à aceitação do patrocínio e, por conseguinte, à data dessa aceitação não poderiam relevar para o efeito,

5.     até porque, mesmo que porventura devessem relevar (e nas situações abrangidas pelo nº 5 assim poderia acontecer), sempre se trataria, aí, de recusar um “novo cliente” em atenção a um “anterior cliente”, o que manifestamente não parece ser a circunstância em apreço, cujos contornos são unicamente delineados entre uma Exma. Advogada e uma testemunha, sem convocar, sequer aludir, implicitamente que fosse, a qualquer cliente (novo ou anterior) suscetível de ver perigar o sigilo profissional relativamente aos seus assuntos (no caso do “anterior cliente”) ou vir a beneficiar de vantagem ilegítima ou injustificada por força do co­nhecimento de tais assuntos pela Exma. Advogada (no caso do “novo cliente”).

6.     Por outro lado, mesmo que do Artº 109º do EOA decorresse uma proibição terminante e absoluta de os Advogados contactarem com testemunhas, como o Exmo. Colega Dr. NC... parece referir, o certo é que não é apontado nem um único contacto entre a Exma. Colega Dra. ACA... e a testemunha em causa, limitando-se a exposição a aludir à “relação de proximidade familiar” entre ambos, por serem cunhados (para mais, quando é sabido que há, amiúde, familiares e afins que nem sequer se falam).

7.     Aliás, do Artº 109º do EOA não decorre propriamente que esteja “vedado aos advogados, por si ou por interposta pessoa, estabelecer contactos com testemunhas”, mas que lhes é vedado, isso sim, “estabelecer contactos com testemunhas ou demais intervenientes pro­cessuais com a finalidade de instruir, influenciar ou, por qualquer outro meio, alterar o de­poimento das mesmas, prejudicando, desta forma, a descoberta da verdade” (sublinhado não constante do original),

8.     pelo que, para se poder convocar a aplicação de tal preceito estatutário (Artº 109º do EOA), sempre seria indispensável, não só a ocorrência de contacto entre a Exma. Advogada e a testemunha, coisa que nem referida foi, como também que esse contacto tivesse visado “instruir, influenciar ou, por qualquer outro meio, alterar o depoimento …, prejudicando, desta forma, a descoberta da verdade”, o que muito menos foi referido.

9.     Por último, supondo o dever de lealdade que não se procurem “vantagens ilegítimas ou indevidas” para o cliente (Artº 112º/1d) do EOA), a sua observância ou inobservância demanda o conhecimento de factualidade (concreta) suscetível de integrar aqueles conceitos, não podendo bastar-se com a pura e simples citação (genérica e/ou abstrata) dos mesmos; acresce que, se o Advogado deve lealdade ao seu Colega (e a epígrafe do Artº 112º do EOA é, justamente, “Deveres recíprocos dos advogados”), também a deve ao seu cliente (Artos 97º/2 e 100º do EOA), pelo que a análise da observância de um dever terá quase sempre de concatenar-se com a análise da observância do outro dever (pois é do equilíbrio entre ambos que se apura a justa proporção, concretamente determinada, da lealdade para com o Colega e da lealdade para com o cliente).

10.  Sucede que nada nos foi trazido que possa concretizar as “vantagens ilegítimas” supos­tamente procuradas pela Exma. Colega Dra. ACA... e, mesmo que porventura possa conjecturar-se que o Exmo. Colega Dr. NC... faça radicar a “vantagem” numa suposta facilidade de contacto com a testemunha, propiciada pela relação familiar, e a “ilegitimidade” na possibilidade que Exma. Colega Dra. ACA... assim teria de influenciar o depoimento da testemunha, com prejuízo para a descoberta da verdade, o certo é que, não só aquele Exmo. Colega nem sequer o afirma, como muito menos refere qualquer factualidade a partir da qual pudesse, eventualmente, extrair-se tais conclusões e proceder-se à concatenação entre essa suposta deslealdade para com Colegas e a lealdade para com clientes.

11.  Em conclusão, a factualidade relatada (no fundo, apenas e tão só que a Exma. Colega Dra. ACA... é cunhada de uma testemunha) não permite, por si só, entrever qualquer desconformidade entre o comportamento imputado à Exma. Colega Dra. ACA... e os deveres deontológicos a que, enquanto Advogada, se encontra sujeita.

 



[1] Ainda que contra o entendimento do relator, para quem aquela competência dos Conselhos Regionais não deverá deixar de compaginar-se com as competências atribuídas a outros órgãos da Ordem, nome­adamente em matéria disciplinar, pelo que, pretendendo-se a apreciação, sob o ponto de vista deon­tológico, de um certo e determinado compor­tamento por uma certa e determinada Exma. Colega e com­petindo aos Conselhos de Deontologia “Velar pelo cumprimento … das normas de deontologia profissional” e “Exercer o poder disciplinar em primeira instância”, conforme disposto no Artº 58º, alíneas a) e b), do EOA, este Conselho Regional deveria abster-se de emitir o parecer solicitado, sob pena de interferência nas atribuições legalmente cometidas a outro órgão da Ordem (o Conselho de Deontologia de Coimbra).

 

Miguel Garrido

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