Pareceres do CRCoimbra

Parecer Nº 8/PP/2023-C

Processo de Parecer 08/PP/2023-C

 

(Requerente: Presidente da Câmara Municipal de A…)

Assunto: Incompatibilidade para o exercício do patrocínio forense

 

Por comunicação escrita datada de 26 de janeiro de 2023, sob o assunto “Exercício de Mandato Forense em acção judicial intentada no TAF de A… por Deputados Municipais em funções na Assembleia Municipal de A…, em representação de trabalhador ao serviço da Autarquia contra o Município de A...”, o Exmo. Senhor Presidente da Câmara de A..., requereu à Senhora Bastonária a emissão de parecer.

Através de ofício dirigido à Exma. Senhora Presidente do Conselho Regional de Coimbra, expedido por carta registada com data de 7 de fevereiro de 2023 a Senhora Bastonária, ao abrigo do preceituado no artigo 83º, nº 6 do Estatuto da Ordem dos Advogados, remeteu todo o expediente integrante do pedido formulado pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de A..., aos Conselhos Regionais da Ordem dos Advogados de Coimbra e do Porto para os devidos efeitos.

Analisado o pedido de parecer formulado pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de A... e toda a documentação que o instrui, cumpre sintetizar a factualidade descrita, prescindindo em face da extensão do pedido e dos elementos disponibilizados da respectiva transcrição integral.

Assim com relevância para a emissão do presente parecer – da competência dos Conselhos Regionais de Coimbra e do Porto como a seguir se demonstrará – temos que:

1 – A Ilustre Advogada SVQ..., titular da cédula profissional …C, com domicílio profissional na Praça F…, em dezembro de 2021 assumiu o patrocínio de um trabalhador do município de A..., no âmbito de processo disciplinar instaurado pela sobredita entidade patronal;

2 – O processo disciplinar culminou com a aplicação ao trabalhador da sanção de multa;

3 – Em 19 de janeiro de 2023 o Município de A... foi citado para os termos da acção administrativa com o nº 7../22….R que corre termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de A…, instaurada pelo trabalhador, com a seguinte descrição sumária: acção administrativa para declaração de nulidade ou anulabilidade de procedimento disciplinar e sanção disciplinar e condenação no pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais e pela prática de assédio laboral.

4 – A sobredita acção judicial é subscrita pela Exma. Senhora Dra. SVQ..., já identificada supra, e pelo Exmo. Senhor Dr. ECM..., titular da cédula profissional nº …P, com domicílio profissional na Rua Dr. …;

5 – Os citados Advogados, são deputados municipais da Assembleia Municipal de A... desde 16 de outubro de 2021, conforme ata da instalação do órgão exarada na mesma data;

Estabelecido o quadro fáctico subjacente ao pedido de parecer, impõe-se, ajuizar da competência deste Conselho Regional de Coimbra para a respectiva emissão.

Dispõe o artigo 54º, nº 1 alínea a) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro (doravante designado abreviadamente por EOA), que compete aos Conselhos Regionais a pronúncia sobre questões de carácter profissional que se insiram na respectiva circunscrição territorial.

Conforme entendimento pacificamente acolhido na jurisprudência da ordem dos advogados, são questões de carácter profissional todas as que assumam natureza estatutária, resultantes de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas dos Estatuto e de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo do poder regulamentar próprio conferido à Ordem dos Advogados.

Ora como proficuamente enquadrada pelo requerente, a questão colocada à apreciação deste Conselho Regional, subsume-se, a temática de carácter profissional que gravita em torno da eventual verificação de um impedimento ou incompatibilidade da Exma. Senhora Dra. SVQ... em patrocinar um cliente numa acção instaurada contra o município de A..., porquanto, desde 16 de outubro de 2021 exerce em simultâneo o cargo de deputada municipal regularmente eleita e empossada na Assembleia Municipal de A....

Os poderes de pronúncia do Conselho Regional de Coimbra encontram-se, ainda, balizados pela respectiva competência territorial, pelo que, a resposta à questão concreta colocada apenas se reportará à mencionada Advogada, inserindo-se na esfera da competência territorial do Conselho Regional do Porto a pronúncia quanto à conduta do Dr. ECM....

Em face do supra exposto, cumpre emitir o parecer solicitado, iniciando esta breve exposição pelo enquadramento jurídico da questão.

Estatutariamente a matéria dos impedimentos e incompatibilidades para o exercício da advocacia encontra-se regulada nos artigos 81º e seguintes do EOA.

A previsão das normas alusivas às incompatibilidades e impedimentos visam, genericamente, a salvaguarda da isenção e dignidade.

Sob a epígrafe “Princípios Gerais”, dispõe o nº 1 do artigo 81º que “o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com a plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável”, prescrevendo o nº 2 do mesmo preceito legal que “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

Da norma citada resulta uma cláusula geral com o intuito de cumprir a dupla finalidade de defesa não só da relação do advogado com o seu cliente (na dimensão da isenção e independência), mas também na imagem da profissão na sociedade (dignidade).

Neste conspecto conclui-se que existirá incompatibilidade sempre que a actividade, cargo ou função que o Advogado se proponha exercer afecte, ou seja susceptível de afectar, a sua isenção e independência e a dignidade da profissão, ou de algum modo contenda com a autonomia técnica, isenção e independência que se exige ao Advogado no exercício da sua profissão de eminente interesse público.

A este propósito e sintetizando, citamos Orlando Guedes da Costa, sendo que, como bem refere o autor “A independência do Advogado traduz-se em plena liberdade perante o poder, a opinião pública, os tribunais e terceiros, não devendo o Advogado depender, em momento algum, de qualquer entidade. A dignidade do advogado tem que ver com a sua conduta no exercício da profissão e no seu comportamento público, com a probidade e com a honra e consideração pública que o Advogado deve merecer.”[1]

O artigo 82º, nº 1 do EOA, elenca a título meramente exemplificativo, como se infere pela utilização do advérbio “designadamente”, alguns cargos, funções e actividades que se consideram incompatíveis com o exercício da advocacia, sendo que, com reporte ao elenco ali plasmado dúvidas não restam quanto à incompatibilidade com o exercício da advocacia.

Da análise minuciosa das várias alíneas do nº 1 do artigo 82º do EOA, afigura-se-nos que nenhuma incompatibilidade existe entre a assunção das funções de deputado municipal e o exercício em simultâneo da advocacia.

Como aliás decorre do parecer deste Conselho Regional com o nº 08/PP/2019-C exemplarmente relatado pelo Ilustre Conselheiro Manuel Leite da Silva, em face da inexistência de lei especial que impeça o exercício da advocacia pelos membros da Assembleia Municipal, e não se podendo extrair da redacção das alíneas a)[2] e j)[3] do artigo 82º, nº1 do EOA, que se pretenda ali englobar tais funções, é forçoso concluir que não existe incompatibilidade para o exercício da advocacia por parte dos deputados municipais e tão pouco pelo presidente da assembleia.

Na verdade os deputados municipais não exercem as suas atribuições a tempo inteiro e apenas auferem senhas de presença aquando da realização das sessões, anotando-se a este propósito que apenas são realizadas cinco sessões ordinárias por ano, pelo que seria no mínimo inconcebível que o deputado municipal estivesse impedido de desenvolver actividade profissional susceptível de lhe gerar proveitos económicos, incluindo a prática da advocacia.

Não obstante, reportando-nos à situação concreta que nos ocupa, antecipamos, desde já, que por decorrência do preceituado no artigo 83º, nº 3 do EOA, que versa sobre os impedimentos, ou seja, incompatibilidades de carácter relativo e cuja verificação se afere com reporte a cada caso em concreto, resulta solução diversa da supra explanada.

Com efeito prescreve o sobredito normativo o seguinte:

“1 – Os impedimentos diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão.

(…)

3 – Os advogados que sejam membros das assembleias representativas das autarquias locais, bem como os respectivos adjuntos, assessores, secretários, trabalhadores com vínculo de emprego público ou outros contratados dos respectivos gabinetes ou serviços, estão impedidos, em qualquer foro, de patrocinar, directamente ou por intermédio de sociedade de que sejam sócios, acções contra as respectivas autarquias locais, bem como de intervir em qualquer actividade da assembleia a que pertençam sobre assuntos em que tenham interesse profissional directamente ou por intermédio de sociedade de advogados a que pertençam.”

Dispõe o artigo 250º da Constituição da República Portuguesa que “Os órgãos representativos do município são a assembleia municipal e a câmara municipal”, sendo que, nos termos do artigo 251º a assembleia municipal é o órgão deliberativo do município constituída por membros eleitos.

De igual molde, dispõe o artigo 5º, nº 2 da Lei nº 75/2013 de 12 de setembro (Regime Jurídico das Autarquias Locais) que os órgãos representativos do município são a assembleia municipal e a câmara municipal.

A assembleia municipal é por definição legal (artigo 251º da Constituição da República Portuguesa e artigo 6º  da Lei nº 75/2013 de 12 de setembro) o órgão deliberativo do município, sendo que, como bem ensina Freitas do Amaral “Os órgãos deliberativos são os órgãos que tomam as grandes decisões de fundo e marcam a orientação ou definem o rumo a seguir pela entidade a que pertencem.”[4]

Aqui chegados e revisitando o caso que nos ocupa, dúvidas não restam que atenta a circunstância da Exma. Senhora Dra. SVQ... exercer funções de deputada municipal no órgão representativo do município de A..., determina que em face do preceituado no nº 3 do artigo 83º do EOA se encontre impedida de exercer o patrocínio forense em acção judicial instaurada contra o mesmo município.

Dispõe o nº 6 do artigo 83º do EOA compete ao respectivo Conselho Regional decidir quanto à verificação dos impedimentos com reporte à situação concreta.

No caso em apreço, sem prejuízo de eventual responsabilidade disciplinar, entendemos que a Dra. SVQ..., deverá cessar de imediato o patrocínio na ação judicial pendente contra o município ou, em alternativa, renunciar ao cargo de deputada municipal.

 

Concluindo,

1 – Em abstracto o exercício da função de deputado municipal em nada contende com a isenção, independência e dignidade do desempenho da advocacia, não existindo, em consequência, qualquer incompatibilidade no exercício simultâneo das duas funções;

2- Não obstante, os advogados que assumam a qualidade de membro das assembleias representativas das autarquias locais, estão impedidos de patrocinar, directa ou por intermédio de sociedades de que sejam sócios, quaisquer acções contra a autarquia;

3 – As assembleias municipais são por definição constitucional órgãos representativos da autarquia local, encontrando-se os seus membros (deputados) impedidos de pleitear contra o município correspondente;

4 – Perante o expendido a Senhora Dra. SVQ..., sem prejuízo de eventual responsabilidade disciplinar, deverá de imediato cessar o patrocínio na acção judicial pendente contra o município ou em alternativa renunciar ao cargo de deputada municipal;

5 – Comunique-se o expediente integral e conteúdo do presente parecer ao Conselho de Deontologia de Coimbra para os fins tidos por convenientes.

É este, salvo melhor entendimento, o nosso parecer.

 



[1] Cit. “Direito Profissional do Advogado”, pág. 153, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

[2] Artigo 82º, nº 1, alínea a) “Titular ou membro de órgão de soberania, representantes da República para as regiões autónomas, membros do Governo Regional das regiões autónomas, presidentes, vice-presidentes ou substitutos legais dos presidentes e vereadores a tempo inteiro ou em regime de meio tempo das câmaras municipais e, bem assim, respetivos adjuntos, assessores, secretários, trabalhadores com vínculo de emprego público ou outros contratados dos respetivos gabinetes ou serviços, sem prejuízo do disposto na alínea a) do número seguinte;”

[3] Artigo 82º, nº 1, alínea j) “ Membro de órgão de administração, executivo ou diretor com poderes de representação orgânica das entidades indicadas na alínea anterior;”

[4] Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2006, pág. 562 e 563

 

Sandra Gil Saraiva

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