Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 14/PP/2023-C

PROCESSO DE PARECER N.º 14/PP/2023-C

 

Declarações de parte prestadas por Advogado constituído em processo judicial como mandatário de pessoa colectiva da qual é igualmente representante legal

 

Por comunicação escrita dirigida a este Conselho, veio o senhor Dr. JJP..., requerer a emissão de parecer, formulando a seguinte conclusão/pedido:

Acho que o senhor juiz andou mal ao considerar que a minha empregada não podia nem devia ser testemunha e que não podia prestar declarações, na qualidade de provedor da Santa Casa da Misericórdia da ….

Submeto assim o assunto à sua consideração e pergunto se um assunto não jurídico mas social, passado no meu escritório, ajudando uma pessoa idosa e quase inconsciente, se a, minha empregada não pode ser testemunha e eu, que o tratei pessoalmente, também não posso falar?”

Ainda relativamente à presente matéria, veio o Exmo. Sr. Juiz de Direito do Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande - Juiz 2, requerer pronúncia deste Conselho Regional, nos termos que aqui se transcrevem:

“Com referência ao mandatário abaixo identificado, solicita-se nos termos do artigo 497.º do C.P.Civil, se o mesmo poderá depor na audiência de julgamento da presente acção, na qualidade de provedor da Santa Casa da Misericórdia da ….”

 

A matéria sobre que versa o pedido de parecer formulado insere-se no âmbito das questões de carácter profissional abrangidas pelo disposto no artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro (doravante designado de modo abreviado por EOA), que se colocam no âmbito da delimitação territorial do Conselho Regional de Coimbra.

 

Na esteira do entendimento acolhido no seio da Ordem dos Advogados, as questões de carácter profissional são todas as que assumam natureza estatutária, resultantes do conjunto de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, emergentes, em especial das normas do Estatuto, bem como, de todo o leque de normas exaradas ao abrigo do poder regulamentar próprio conferido à Ordem dos Advogados.

O Conselho Regional de Coimbra é, assim, material e territorialmente competente, impondo-se a emissão do parecer solicitado.

 

Isto posto, importa consignar que atenta a paridade dos pedidos formulados em ambas as comunicações, e sendo certo que, em ambos os casos, se visa obter esclarecimento relativo à mesma situação, será emitido apenas um parecer.

 

Ora, examinados ambos os pedidos de parecer, cumpre responder à seguinte questão:

 

Um Advogado constituído em processo judicial como mandatário de uma pessoa colectiva, da qual é igualmente legal representante, pode prestar declarações de parte no âmbito do respectivo processo?

Vejamos,

 

O artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 88º do EOA instituem a essencialidade do Advogado à Administração da Justiça, atribuindo-lhe um conjunto de direitos e deveres para cumprimento de tal desígnio.

 

Deste modo, o Advogado enquanto parte integrante e essencial à Administração da Justiça deve assumir “um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem.”

 

A advocacia é, pois, uma actividade de natureza liberal, mas prossegue um notório e preponderante interesse público, circunstância que lhe confere elevada relevância social.

 

Por tal razão, e na senda do aludido interesse público, o EOA preceitua um amplo conjunto de normas que regulam o exercício da profissão (artigos 66º a 87º) e que regulamentam a deontologia profissional (artigos 88º a 113º).

 

Assim, o advogado, por inerência do preponderante interesse público e relevância social da advocacia, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no EOA e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem - artigo 88.º do EOA.

 

A acrescer, artigo 89.º do EOA postula como princípio basilar do exercício da advocacia a independência, prescrevendo que “o Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

 

Daqui decorre a relevância da independência do Advogado em toda e qualquer actuação, independentemente da existência ou não de um concreto conflito, tanto mais que, o Advogado está obrigado a defender a justiça e a boa aplicação do direito, devendo abster-se de incitar os intuitos menos lícitos dos seus clientes e inclusive de aceitar o mandato em causas injustas ou susceptíveis de alcançar resultados ilícitos (artigo 90º do EOA).

 

Por outro lado, ao Advogado impõe-se, ainda, o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos dos seus clientes, pautando sempre a sua actuação pelo estrito cumprimento das regras deontológicas. (artigo 97º nº 2 do EOA)

 

De igual forma, o ponto 2.1 e o ponto 2.7 do Código Deontológico do Advogado Europeu dispõe o seguinte quanto ao dever de independência do Advogado:

 

“2.1 – 1 – A multiplicidade de deveres a que o advogado está sujeito impõe-lhe uma independência absoluta, isenta de qualquer pressão, especialmente a que possa resultar dos seus próprios interesses ou influências exteriores. Esta independência é tão necessária à confiança na justiça como a imparcialidade do juiz. O Advogado deve, pois, evitar pôr em causa a sua independência e nunca negligenciar a ética profissional com a preocupação de agradar ao seu cliente, ao juiz ou a terceiros.

2.1 – 2 – Esta independência é necessária em toda e qualquer actividade do advogado, independentemente da existência ou não de um litígio concreto, não tendo qualquer valor o conselho dado ao cliente pelo advogado, se prestado apenas por complacência, ou por interesse pessoal ou sob o efeito de uma pressão exterior.

2.7 – Sem prejuízo da estrita observância das normas legais e deontológicas o advogado tem a obrigação de agir sempre em defesa dos interesses legítimos do seu cliente, em primazia sobre os seus próprios interesses ou dos colegas de profissão.”

 

E acrescenta no ponto 3.2 - 2 o seguinte:

 

“O advogado deve abster-se de se ocupar dos assuntos de ambos ou de todos os clientes envolvidos quando surja um conflito de interesses, quando exista risco de quebra de confidencialidade, ou quando a sua independência possa ser comprometida.”

Ora, na abordagem do problema que aqui nos ocupa, não podemos ignorar que a parte que se dispõe a prestar depoimento, rectius, “declarações”, é, também, o Advogado subscritor das respectivas peças processuais e a quem se encontra confiada a representação da “parte” - a Santa Casa da Misericórdia da Marinha Grande.

E assim sendo, determinaria que este pudesse intervir no processo em diversas qualidades, o que não seria compatível com os mais basilares princípios da sua própria deontologia, designadamente, mas não só, o principio da Integridade e o princípio da Independência - artigo 88.º e 89.º do E.O.A..

É certo que poderá dizer-se que tais princípios também não poderão deixar de estar presentes quando o Advogado intervém em causa própria.

Porém, na hipótese colocada, não estamos na presença de um “Advogado em causa própria”, na medida em que, o Advogado não é parte no processo, sendo, ao invés, legal representante de uma pessoa coletiva que, por sua vez, é a parte no processo.

A acrescer, na prestação de declarações de parte, ao abrigo do disposto no art.º 467.º do C.P.C., impõe-se ao declarante que preste o seu depoimento com verdade, rigor e isenção.

Ora, se a parte (assim como o legal representante das partes que sejam pessoas coletivas) se encontra obrigada perante o Tribunal a prestar o seu depoimento/declarações naqueles termos, o certo é que, ao Advogado, se impõe, por sua vez, um outro dever: o de defender a parte (o seu cliente) dentro dos limites da Lei e dos princípios deontológicos da profissão, podendo, para o efeito usar da regra da parcialidade em relação ao seu Cliente, desde que respeitada a Lei e aqueles princípios.

Por fim, mesmo que assim não se entendesse, sempre se dirá que o Ilustre Colega, não requereu dispensa de sigilo profissional ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 92.º do E.O.A. que dispõe que: “o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento”.

Sendo que, “a obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.” - n.º 2 do artigo 92.º do E.O.A.

Isto posto, o Colega consulente também não poderia prestar declarações de parte, sob pena de violar o sigilo profissional a que se encontra vinculado, na medida em que, de acordo com o pedido de parecer, as declarações a prestar incidiram sobre factos que o Ilustre Colega tomou conhecimento não só na qualidade de Provedor, mas também por causa do exercício das suas funções e da prestação dos seus serviços de advocacia.

 

Por outro lado, tal como se refere no Parecer n.º 3/PP/2023-C, em que foi relator o aqui signatário, os cargos susceptíveis de gerar mais “conflitos” no seio das organizações são os cargos de gestão superiores, uma vez que tais cargos e funções levam à determinação da forma de gestão e à vinculação de tais organizações perante terceiros.

 

Ora, continuando a prestar apoio jurídico, judicial ou extrajudicial, à organização que representa, o Colega consulente coloca em causa a isenção, a independência e o sigilo profissional.

 

Isto porque, no exercício das suas funções está, naturalmente, sujeito à pressão e envolvimento decorrente do cargo que exerce na direcção da organização que representa.

 

E o Advogado, no exercício das suas funções, não pode estar limitado quanto à forma de tratar uma questão, designadamente quanto ao resultado que deve ser obtido, por ter participado, por exemplo, na tomada de decisão, que resultou no litígio em causa.

 

De igual forma, sem prejuízo do dever de independência e isenção, o Advogado está vinculado à obrigação de sigilo profissional no exercício das suas funções, não podendo tal dever ser afectado, ainda que negligentemente, como consequência da “confusão” de funções que se verifica.

 

Face ao exposto, entendemos que, no caso concreto, também se verifica uma situação de impedimento de exercício da advocacia, nos termos do disposto no artigo 81.º, nº 1 e 2 e no artigo 83.º, n.º e 2 do EOA.

 

E assim sendo, encontrando-se o senhor Advogado consulente a violar os princípios e normas que acabámos de referir, não pode continuar a prestar serviços jurídico-forenses à organização que representa, pelo que deverá cessar, de imediato, o seu mandato no processo judicial em curso.

 

Por fim, questiona, ainda, o senhor Advogado consulente se a sua “empregada” pode ser testemunha.

 

Ora, partindo do pressuposto que a “empregada” em causa se trata de uma funcionária forense, sempre se dirá que ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 92.º do EOA, o dever de guardar sigilo também lhe é extensivo e aplicável, pelo que, para que pudesse prestar depoimento, deveria, de igual forma, ter requerido a dispensa de sigilo profissional o que, tanto quanto nos é dado a conhecer, não sucedeu.

 

 

 

Em conclusão, é nosso entendimento que a prestação de declarações de parte pelo Ilustre Colega - mandatário constituído no processo judicial aqui em causa em representação de pessoa coletiva da qual é igualmente legal representante, violaria a dignidade, o prestígio e o dever de independência a que se encontra adstrito.

 

E assim sendo, entendemos não ser possível deferir a pretensão formulada.

 

CONCLUSÕES

 

I.                    O Advogado constituído em processo judicial como mandatário de pessoa colectiva da qual é igualmente representante legal, não pode prestar declarações de parte.

II.                  O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possam afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão (n.º 2 do artigo 81 do             EOA).

III.                O Advogado que exerça o cargo de Provedor de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, está impedido de a patrocinar, judicial ou extrajudicialmente, uma vez que a prática de tais serviços viola os princípios gerais enunciados no n.º 1 e no n.º 2 do artigo 81.º, aplicáveis por força do nº 2 do artigo 83º do EOA.

IV.                O dever de o Advogado guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, é extensível a todas as pessoas que colaborem com o mesmo no exercício da sua actividade profissional.

 

É este, salvo melhor opinião, o parecer que proponho à apreciação e deliberação do Conselho Regional de Coimbra.

Comunique-se o expediente integral e conteúdo do presente parecer ao Conselho de Deontologia de Coimbra para os fins tidos por convenientes.

 

Sandra Gil Saraiva

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