Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 20/PP/2023-C

Parecer n.º 20/PP/2023-C

Assunto: Correspondência entre Advogado e a parte contrária - sigilo profissional

 

Por expediente dirigido ao Conselho Regional de Coimbra, no dia 19 de setembro de 2023, foi por ordem do Mmº Juiz junto do Juízo de Competência Genérica da S…, do Tribunal Judicial da Comarca de C…, solicitada a emissão de parecer no âmbito do Procedimento Cautelar 249/23.8T8… a correr termos naquele Tribunal, cujo pedido foi efetuado com a redação que se transcreve:

Parecer sobre se o e-mail cuja cópia de junta, remetido por advogado à parte contraria, referente a negociações malogradas, se está sujeito ou não ao Segredo Profissional, nos termos do art. 92.º da Lei n.º 145/2015 de 9 de setembro, e quais as consequências daí resultantes.”

 

Acompanha o mencionado pedido a documentação pertinente, nomeadamente, cópia das comunicações eletrónicas em causa, e que, para melhor perceção do presente parecer, se procede à sua transcrição:

 

De: JMLP... <p...206@gmail.com>

Enviado: 4 de agosto de 2023 15:47

Para: pl…@adv.oa.pt

Assunto: Fwd: FW: resposta ao e-mail

Boa tarde Sra. Doutora P…, envio também este e-mail de umas conversas trocadas em data assinalada com esta suposta advogada da M… (foi estranho).

 

De: MM... <mm...@adv.oa.pt>

Date: quarta, 27/04/2022, 15:30

Subject: FW: resposta ao e-mail

To: JMLP... <p...206@gmail.com

Exmo. Senhor JMLP...,

Acuso a recepção do seu email o qual agradeço.

Sem duvida alguma que no caso em concreto o recurso à via judicial deverá ser a ultima decisão e o recurso à resolução extra judicial o mais adequado.

A pretensão da M/Cliente consubstancia-se no seguinte: ser retirada a sua titularidade dos respetivos mútuos com hipoteca existentes, ficando em exclusivo ao Senhor José Manuel atribuída a propriedade das fracções bem como a titularidade dos mútuos com hipoteca existentes sobre as mesmas.

Decerto que conseguiremos resolver esta questão e chegar a bom porto célere.

Aguardo noticias, com os meus cumprimentos

MM...

 

De: JMLP... (mailto:p...206@gmail.com)

Enviada: Tuesday, 8 de March de 2022 10:48

Para: MM... mm...@adv.oa.pt

Assunto: Resposta ao email

Exma. Senhora Dra. MM..., recebi o se e-mail e dando resposta ao mesmo dentro do prazo pela Sra. Dra. estipulado, informo ser óbvio julgar pouco provável que qualquer uma das partes tenha interesse em recorrer às vias judiciais, não que da minha parte exista qualquer receio, mas por achar que tal facto apenas e só iria acrescentar custos desnecessários a ambos os intervenientes.

Agradecia portanto que a Sra. Dra. Me informasse qual a intenção da sua cliente e do que a mesma agora pretende para além do anteriormente acordado por ambos ainda que apenas verbalmente na base do respeito e da confiança aquando da nossa separação e posterior divórcio que recordo ter sido resolvido por mútuo acordo.

Sendo minha intenção de que tudo se resolva o mais rapidamente possível, de uma vez por todas e de forma a que nenhuma das partes saia prejudicada das suas supostas pretensões, fico a aguardar a sua prezada resposta a este meu e-mail.

Com os melhores cumprimentos:

JMLP...

 

A quarta, 2/3/2022, 18:20, MM... <marilinemarçal-139421l@adv.oa.pt >escreveu:

Exmo. Senhor JMLP...,

Represento M....

É pretensão da M/cliente proceder a apresentação judicial de acção de divisão de coisa comum no que respeita às fracções A e G acima identificadas das quais é comproprietária, colocando assim termo à compropriedade existente.

Vislumbra-se, no entanto, que a respectiva questão em causa é passível de resolução extrajudicial o que parece totalmente adequado evitando-se assim o recurso a meios judiciais, que naturalmente será desagradável para ambas as partes.

Pelo exposto, solicito que me informe via email no prazo de 10 dias da eventual disponibilidade de procedermos à resolução extrajudicial da questão em apreço.

Caso dentro do prazo estabelecido V. Exa. nada manifestar procederei à apresentação da competente acção judicial.

Aguardo noticias,

Cumprimentos,

MM...

 

A questão submetida à apreciação deste Conselho Regional para emissão de parecer, versa sobre a temática do Segredo Profissional do Advogado.

O Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro de 2015 (doravante designado de modo abreviado por EOA), trata o Segredo Profissional no seu Título III, referente à Deontologia Profissional, integrando-o no Capítulo I – Princípios Gerais, com previsão no artigo 92.º.

 

O Conselho Regional de Coimbra tem competência para a emissão do parecer solicitado, não apenas por estar em causa situação verificada em local pertencente à sua área de competência territorial, mas ainda, porque a matéria ora colocada à apreciação deste Conselho Regional pelo Mmº Juiz junto do Juízo de Competência Genérica da Sertã do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, configura uma questão de caráter profissional, nos termos da previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo 54º do EOA, pelo que, se considera ter esta entidade competência para a requerida pronúncia.

Tem sido entendido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados, que questões de carácter profissional são todas as que assumem natureza estatutária, resultantes do conjunto de princípios, regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, decorrentes, em especial, das normas do Estatuto, bem como, de todo o leque de normas regulamentares exaradas ao abrigo de poder regulamentar próprio, conferido pelo Estado à Ordem dos Advogados.

 

Nestes termos, a matéria do presente parecer cingir-se-á à apreciação da questão concreta que nos é colocada – “o e-mail cuja cópia de junta, remetido por advogado à parte contraria, referente a negociações malogradas, se está sujeito ou não ao Segredo Profissional, nos termos do art. 92.º da Lei n.º 145/2015 de 9 de setembro, e quais as consequências daí resultantes.”

 

A questão que se suscita no presente parecer consiste em saber se o email, rectius, os factos que nele se referem, cujo conteúdo acima se reproduziu, deve ou não, considerar-se abrangido pelo sigilo profissional que decorre do Estatuto da Ordem dos Advogados.

 

Partindo da factualidade apurada, para a devida apreciação da questão colocada, entendemos pertinente efetuar o enquadramento teórico do tema.

O segredo profissional do advogado está regulado no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), e preceitua o seguinte:

 

“Artigo 92.º

Segredo profissional

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo em infração disciplinar a violação daquele dever.

 

A conduta, objeto da estatuição da citada norma, consistente na obrigação do advogado em guardar segredo sobre certos factos, ou seja, não revelar factos que advenham ao seu conhecimento por força da relação profissional que estabelece com os seus constituintes, mantendo sobre eles absoluto silêncio.

O dever de guardar segredo corresponde, por conseguinte, a uma proibição de revelar tais factos, que têm, genericamente, natureza sigilosa.

Consideram-se abrangidos pelo dever de segredo, os factos objeto da conduta a que se refere a norma do artigo 92.º do EOA, que impõe ao advogado o dever de guardar segredo, cujo conhecimento é adquirido nas circunstâncias e pelas vias de aquisição que encontram previsão na norma enunciada no seu preâmbulo e no elenco das sub-previsões específicas que constituem as várias alíneas do n.º 1 do artigo 92.º do EOA.

 

A consagração estatutária do sigilo profissional dos advogados visa essencialmente salvaguardar o princípio da confiança, de interesse e de ordem pública, dada a natureza social da função do advogado.

 

Nas palavras de Rodrigo Santiago (in considerações acerca do Regime Estatutário do Segredo Profissional dos Advogados, pág. 239), o segredo profissional tem como matriz o princípio da confiança, sem confiança não há confidencias, e sem estas, não pode haver por natureza segredos. O advogado está obrigado a guardar segredo profissional no tocante aos factos confidenciais de que tenha tido conhecimento no exercício da sua profissão, relativamente aos quais seja de presumir que quem lhos confiou tinha um interesse objectivo em que se mantivessem reservosos.

 

O segredo profissional é assim reconhecido como direito e dever fundamental e primordial do advogado, como se consagra no número 2.3 - 1 do Código de Deontologia dos Advogados Europeus - Deliberação n.º 2511/2007 OA (2.ª série), de 27 de dezembro de 2007 / Ordem dos Advogados/Conselho Geral,“ É requisito essencial do livre exercício da advocacia a possibilidade do cliente revelar ao advogado informações que não confiaria a mais ninguém, e que este possa ser o destinatário de informações sigilosas só transmissíveis no pressuposto da confidencialidade. Sem a garantia de confidencialidade não pode haver confiança (…).

A obrigação do advogado de guardar segredo profissional visa garantir razões de interesse público, nomeadamente a administração da justiça e a defesa dos interesses dos clientes. Consequentemente, esta obrigação deve beneficiar de uma proteção especial por parte do Estado. “

E como forma de salvaguardar e proteger esse dever de segredo profissional, acrescenta o número 2.3 - 2 que, “O advogado deve respeitar a obrigação de guardar segredo relativamente a toda a informação confidencial de que tome conhecimento no âmbito da sua atividade profissional. “

 

O advogado está, pois, obrigado a guardar segredo dos factos de que tenha tomado conhecimento ou de confidência que lhe tenha sido feita, no exercício da sua profissão, tal como se refere no Acórdão do STJ de 15.02.2018, proferido no âmbito do proc. 1130/14.7TVLSB.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt, “Radicando no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a OA e a comunidade em geral.

Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.”

 

O segredo profissional está, em estrita conexão com a lealdade e a confiança devidos ao cliente e também aos colegas. O Advogado, no exercício da sua relação profissional, é o depositário de muitas revelações confidenciais. O segredo profissional, é, pois, a regra de ouro da profissão de Advogado. (CARLOS MATEUS, obra citada - Deontologia Profissional – Contributos para a Formação dos Advogados Portugueses, pág. 168).

 

Estão assim abrangidos pelo segredo profissional os factos que se reportam a assuntos profissionais que o advogado tomou conhecimento, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste, ou, ainda, no âmbito de negociações que visem pôr termo ao litígio, tenham essas negociações obtido o almejado acordo de interesses (judicial ou extrajudicial) ou não tenham obtido esse acordo (negociações malogradas), pois que o princípio da confiança, essencial e imprescindível ao exercício dessa função, exige confidencialidade relativamente aos factos e informações reveladas pelo seu cliente e que, não fora essa garantia, o mesmo não os revelaria a mais ninguém (cfr. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, de 17-12-2020, proc. 1823/16.4T8PDL-C.L1-6, acessível in www.dgsi.pt).

 

E importará referir que o dever de segredo abrange também os documentos ou outras coisas que se relacionem com factos sujeitos a sigilo, tal como se encontra consagrado no n.º 3 do referido artigo 92.º do EOA.

 

No mesmo sentido, o Ac. do Tribunal da Relação Lisboa, de 29.04.2021 proferido no proc. 439/16.0T8LRS-A.L1-2, acessível in www.dgsi.pt se refere que, “O dever de segredo profissional do advogado abarca, entre outras situações, os factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio e os factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo, sendo que o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.”

 

No entanto, refira-se ainda que, o dever de sigilo não é um dever absoluto, o n.º 4 do artigo 92.º do EOA, prevê que o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do seu cliente.

A dispensa do segredo profissional tem, assim carácter de excecionalidade, e está condicionado aos pressupostos materiais da absoluta necessidade, essencialidade, atualidade, exclusividade e imprescindibilidade, tal como resulta do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Dispensa de Sigilo Profissional - Regulamento n.º 228/2019, de 15 de março.

 

De acordo com o n.º 4 do artigo 92.º do EOA, os advogados podem revelar factos abrangidos por segredo profissional “mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”, remetendo o EOA para o Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.

 

Existem ainda factos excluídos do âmbito do sigilo, como é o caso dos factos de conhecimento público, referindo a este propósito António Arnaut que, “não estão, contudo, incluídos no dever de sigilo, os factos notórios ou de domínio público, os que se destinam a ser invocados ou alegados em defesa do cliente, os constantes de documento autêntico e os que estiverem provados em juízo (…) se os factos são notórios ou já foram divulgados, o fundamento do sigilo perde o conteúdo e objecto (…).”

 

Delineados os termos gerais da questão e tendo presentes as considerações expendidas, importa reverter ao caso concreto:

A nossa análise versa sobre o conteúdo da correspondência eletrónica enviada pela Exma. Senhora Advogada Dr.ª MM..., em representação da sua constituinte, M..., à contraparte JMLP....

Da análise cronológica efetuada à referida correspondência temos que:

A 02.03.2022, a Exma. Advogada, através de correspondência eletrónica, comunica à parte contrária, e em síntese, que a sua constituinte pretende proceder a apresentação judicial de ação de divisão de coisa comum relativamente a duas frações das quais é comproprietária, solicitando a disponibilidade da contraparte para uma solução extrajudicial da questão.

A 08.03.2022, JMLP... (contraparte), em resposta á Exma. Advogada, solicita informação sobre a intenção da sua constituinte.

A 18.3.2022, a Exma. Advogada em resposta ao solicitado informa a pretensão da sua constituinte (…) “ser retirada a sua titularidade dos respetivos mútuos com hipoteca existentes, ficando em exclusivo ao Senhor José Manuel atribuída a propriedade das frações bem como a titularidade dos mútuos com hipoteca existentes sobre as mesmas”.

A 27.4.2022, a Exma. Advogada, solicita à parte contraria informação sobre o ponto de situação, por ausência de resposta.

A 04.08.2022, JMLP..., encaminha para a Exma. Advogada Dra. Paula Lopes email de conversas trocadas com a Exma. Advogada MM....

 

A pronúncia de parecer solicitado pelo Mmº Juiz no âmbito do identificado procedimento cautelar, versa, essencialmente, sobre o conteúdo da correspondência eletrónica datada de 18.03.2022 enviada pelo Exma. Advogada à contraparte, uma vez que, a correspondência eletrónica de 02.03.2022 tem natureza meramente interpelatória, um convite a negociar dirigido pela Exma. Advogada à contraparte, em representação da sua constituinte, sem relevância do ponto de vista do segredo profissional, e portanto, excluída do seu âmbito de aplicação.

Por outro lado, a correspondência com data de 08.03.2022 subscrita pela contraparte e dirigida à Exma. Advogada, não se encontra abrangida pelo segredo profissional a que se reporta o artigo 92.º do EOA, pois que, o dever de guardar segredo e o cumprimento das regras deontológicas, apenas vinculam os Advogados.

 

Procedendo à apreciação do conteúdo da correspondência eletrónica de 18.3.2022, decorre que a Exma. Advogada transmitiu (à contraparte) a posição da sua constituinte, naquilo que pode ser configurado como uma proposta de transação, um primeiro passo para a negociação com a finalidade de dirimir o diferendo sobre a divisão dos bens.

 

Ora, os factos que na previsão da norma estatutária impõe ao advogado o dever de guardar segredo, são aqueles cujo conhecimento é adquirido nas circunstâncias e pelas vias que constituem o citado nº 1 do artigo 92.º e que se reportam aos segmentos normativos contidos nas várias alíneas em que este se divide.

Interessa para o presente caso, em particular, o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 92.º do EOA, e que abrange “(…) os factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.”

Esta norma é clara no seu sentido, os factos que um Advogado tenha tido conhecimento no decurso de quaisquer negociações malogradas, estão vinculados à obrigação de guardar segredo.

 

No entanto, a obrigação que resulta deste preceito, não é genérica, pois nem todas as comunicações recebidas e enviadas entre Advogados e as respetivas partes, estão sujeitas a segredo profissional, antes dependendo da verificação, em concreto, da materialidade de cada comunicação.

 

Como ensina ORLANDO GUEDES DA COSTA, a correspondência dirigida por Advogado, em representação, do cliente, à contraparte ou ao Advogado desta, como seu representante, para a produção de determinado efeito jurídico, como a interpelação ou notificação para preferência ou para caducidade de contrato a termo, ou a prática de um acto jurídico, designadamente a emissão de uma declaração negocial perante eles ou de outra declaração durante a fase preliminar da formação da vontade negocial não estão, porém, abrangidas pelo segredo profissional e terão valor probatório (Direito Profissional do Advogado, Almedina, 2015, 8.ª Edição).

 

Em causa está assim a verificação da eventual revelação, de factos sigilosos conhecidos em sede de negociações que se frustraram.

No entanto, não vislumbramos que do texto da comunicação colocada à nossa consideração, constem quaisquer factos merecedores da tutela do sigilo profissional, tal como acima os definimos.

 

Através da comunicação de 18.03.2022, a Exma. Advogada transmite à contraparte a pretensão /vontade, da sua constituinte para a concretização da operação de divisão de bens, cuja posição se consubstancia “em ser retirada a titularidade dos mútuos com hipoteca existentes, ficando em exclusivo à contraparte atribuída a propriedade das frações bem como a titularidade dos mútuos com hipoteca existentes sobre os imóveis”. Com esta comunicação, a Exma. Advogada não se refere a factos obtidos no âmbito de uma negociação para a resolução do litígio, outrossim, levou ao conhecimento da contraparte uma declaração negocial, sem que, no entanto, da mesma resultasse qualquer resposta/contraproposta, pelo que, no caso concreto, não subsistiu uma plena operação de negociação, no sentido útil da palavra.

 

Como refere Carlos Mateus (in Deontologia Profissional – Contributo para a Formação dos Advogados Portugueses), a correspondência trocada após a primeira comunicação/interpelação/reclamação é que consubstancia uma negociação, a qual pode ser cumprida ou malograda.

 

Acresce que, do conteúdo material de tal comunicação, não se fazem constar quaisquer factos em relação aos quais seja de presumir que existisse um interesse objetivo em que se mantivessem reservados, pelo contrário, os factos transmitidos à contraparte tiveram como objetivo, marcar posição relativamente aos direitos e interesses da cliente que a Exma. Advogada representa, em relação à contraparte, na tentativa de obter uma resolução extrajudicial do diferendo.

 

Por outro lado, não será despiciendo assinalar que a menção efetuada na comunicação eletrónica em relação à titularidade de contratos de mútuo com hipoteca sobre os imóveis, ou a sua propriedade, são factos que se encontram excluídos do segredo profissional, pois integram documentos autênticos ou autenticados.

 

Aqui chegados, do que se deixou supra definido, forçoso é de concluir que a comunicação eletrónica sob apreciação, enviada pela Exma. Advogada Dra. MM... à contraparte não se encontra abrangida pelo segredo profissional do advogado, não integrando, por conseguinte, a previsão da alínea f) do n.º 1 artigo 92.º do EOA.

 

Em consequência, formulam-se as seguintes Conclusões:

i.                     A consagração legal no Estatuto da Ordem dos Advogados do sigilo profissional dos advogados visa salvaguardar o princípio da confiança, de interesse e ordem pública, dada a natureza social da função do advogado.

ii.                    Os factos que na previsão da norma estatutária impõe ao advogado o dever de guardar segredo, são aqueles cujo conhecimento é adquirido nas circunstâncias e pelas vias que constituem o nº 1 do artigo 92.º do EOA e a que se reportam aos segmentos normativos contidos nas várias alíneas em que este se divide.

iii.                  A comunicação dirigida por Advogado à contraparte, não representada por Advogado, por via da qual seja veiculada apenas e só a pretensão da cliente, não constitui facto abrangido pela obrigação de segredo, prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 92.º do EOA.

 

É este o nosso parecer.

 

 

Luísa Peneda Cardoso

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