Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 23/PP/2023-C

Processo de Parecer n.º 23/PP/2023-C

 

Assunto: Incompatibilidade no exercício simultâneo da advocacia e de qualquer actividade ao serviço de empresa leiloeira.

 

Mediante comunicação de correio eletrónico datada de 30 de novembro de 2023 dirigida à Exma. Senhora Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Ilustre Advogada-estagiária Dra. VMP, titular da Cédula Profissional nº 50…C, com domicílio profissional na Rua do Mun…, solicitou a emissão de parecer quanto à eventual incompatibilidade de funções no exercício da advocacia enquanto advogada estagiária e a função de empregada administrativa numa leiloeira ao abrigo da medida de apoio ao emprego sustentável, colocando a questão nos termos que por uma questão de fidelidade se transcreve:

 

“(…) vem solicitar a emissão de Parecer no sentido da apreciação de eventual incompatibilidade decorrente da melhor interpretação do artigo 82º, nº 1, al. n) do Estatuto da Ordem dos Advogados quanto a situação concreta que se coloca à requerente por via de oferta de emprego. Isto é:

Se a sua admissão como funcionária administrativa numa leiloeira, ao abrigo da medida de apoio ao emprego sustentável, tendo como funções o arquivo de documentação, expediente corrente e preparação da documentação necessária à feitura das escrituras, não sendo em nenhum momento coincidentes com as actividades características de um leiloeiro enquanto profissional responsável pela intermediação na compra e a venda de bens, efetua visitas e recebe propostas de aquisição.

Considerando que as funções descritas não preenchem qualquer actividade própria como as definidas e reguladas no Decreto-Lei nº 155/2015 de 10 de agosto, enquanto “actividade de venda de bens móveis e imóveis, corpóreos e incorpóreos, mediante mandato conferido pelo proprietário dos mesmos ou decorrente de decisão judicial” nem, tão pouco, as dos advogados e solicitadores e advogados-estagiários, nomeadamente a prática dos atos próprios a que alude a Lei 49/2004, dos artigos 67º e 68º do E.O.A., e que em nenhuma situação no desempenho estrito das funções de empregada administrativa de leiloeira é susceptível de afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão de advocacia que pretendo honrar, solicita-se a V.Ex.ª: se digne proferir Parecer fundamentado sobre a questão da compatibilidade da sua eventual contratação como funcionária administrativa numa leiloeira.(…)”

 

A questão colocada pela Ilustre Advogada-Estagiária encontra-se perfeitamente delimitada e insere-se na problemática da eventual existência de incompatibilidade no exercício da advocacia no âmbito da realização do estágio de acesso a profissão em simultâneo com o desempenho de actividade profissional em regime de subordinação jurídica enquanto administrativa de uma leiloeira.

Considerando que a questão submetida à cognição deste Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados se subsume a questão de carácter profissional, atinente à verificação das incompatibilidades para o exercício da profissão, encontram-se cumpridos os pressupostos formais de competência material e territorial, de que depende a emissão do parecer, conforme preceituado na alínea f) do nº 1 do artigo 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro (doravante designado abreviadamente por EOA).

Na esteira do entendimento pacificamente acolhido no seio da Ordem dos Advogados, as questões de carácter profissional são todas as que assumam natureza estatutária, resultantes do conjunto de regras, usos e costumes que regulam o exercício da advocacia, emergentes, em especial das normas do Estatuto, bem como, de todo o leque de normas exaradas ao abrigo do poder regulamentar próprio conferido à Ordem dos Advogados.

Neste conspecto cumpre emitir o parecer solicitado, razão que determinou a respectiva distribuição à aqui Relatora.

As disposições que regulam o estágio encontram-se previstas nos artigos 186º e seguintes do EOA e no Regulamento nº 913-A/2015 de 22 de dezembro de 2015.

Prescreve o artigo 196º, nº 4 do EOA que “São deveres do advogado estagiário durante todo o seu período de estágio e formação:

a)      Observar escrupulosamente as regras, condições e limitações admissíveis na utilização do escritório do patrono;

b)      Guardar respeito e lealdade para com o patrono;

c)      Submeter-se aos planos de estágio que vierem a ser definidos pelo patrono;

d)      Colaborar com o patrono sempre que este o solicite a efectuar os trabalhos que lhe sejam determinados, desde que se revelem compatíveis com a actividade do estágio;

e)      Colaborar com empenho, zelo e competência em todas as actividades, trabalhos, acções de formação que venha a frequentar no âmbito dos programas de estágio;

f)        Guardar sigilo profissional;

g)      Comunicar ao serviço de estágio competente qualquer fato que possa condicionar ou limitar o pleno cumprimento das normas estatutárias e regulamentares inerentes ao estágio;

h)      Cumprir em plenitude todas as demais obrigações deontológicas e regulamentares no exercício da actividade profissional”

Em face do teor do preceito legal citado, o advogado estagiário está adstrito ao cumprimento de todos os comandos deontológicos, impondo-se-lhe a observância, designadamente, das disposições relativas aos impedimentos e incompatibilidades.

Estatutariamente a matéria dos impedimentos e incompatibilidades para o exercício da advocacia encontra-se regulada nos artigos 81º e seguintes do EOA.

As regras referentes às incompatibilidades e impedimentos visam, genericamente, a salvaguarda da isenção, independência e dignidade da profissão e encontram previsão legal nos artigos 81º e seguintes do EOA.

 Sob a epígrafe “Princípios Gerais”, dispõe o nº 1 do artigo 81º que “o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com a plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável”, prescrevendo o nº 2 do mesmo preceito legal que “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

Da norma citada resulta uma cláusula geral que visa prosseguir a dupla finalidade de defesa não só da relação do advogado com o seu cliente (na dimensão da isenção e independência), mas também da imagem da profissão na sociedade (dignidade).

Neste conspecto conclui-se que existirá incompatibilidade sempre que a atividade, cargo ou função que o Advogado se proponha exercer afete, ou seja suscetível de afetar, a sua isenção e independência e a dignidade da profissão, ou de algum modo contenda com a autonomia técnica, isenção e independência que se exige ao Advogado no exercício da sua profissão de eminente interesse público.

A este propósito e sintetizando, citamos Orlando Guedes da Costa, sendo que, como bem refere o autor “A independência do Advogado traduz-se em plena liberdade perante o poder, a opinião pública, os tribunais e terceiros, não devendo o Advogado depender, em momento algum, de qualquer entidade. A dignidade do advogado tem que ver com a sua conduta no exercício da profissão e no seu comportamento público, com a probidade e com a honra e consideração pública que o Advogado deve merecer.”[1]

O artigo 82º, nº 1 do EOA, elenca a título meramente exemplificativo, por decorrência da utilização do advérbio “designadamente”, alguns cargos, funções e atividades que se consideram incompatíveis com o exercício da advocacia, concluindo-se, assim que, no que respeita ao elenco ali consignado, dúvidas não restam quanto à incompatibilidade com o exercício da advocacia.

Dispõe a alínea n) do nº 1 do artigo 82º do EOA que são, designadamente, incompatíveis com o exercício da advocacia, a actividade de “Mediador mobiliário ou imobiliário, leiloeiro e trabalhadores com vínculo de emprego público ou contratados do respectivo serviço.”

Nos exactos termos informados pela Consulente, as pretensas funções a exercer ao serviço da leiloeira são de carácter administrativo, designadamente, de arquivo e preparação de documentação para a outorga de escrituras, que na definição prevista no artigo 2º, alínea f) do Decreto-Lei nº 155/2015 de 10 de agosto, integram as funções de Técnicos de Leilão, sendo “os colaboradores das empresas leiloeiras que coadjuvam os leiloeiros, executando tarefas necessárias à preparação e ao cumprimento dos contratos celebrados no âmbito de um leilão”.

Embora as funções dos Técnicos de Leilão não se confundam com as funções do leiloeiro[2], o certo é que, a citada alínea n) do nº 1 do artigo 82º do EOA, não se limita a estabelecer uma incompatibilidade no exercício simultâneo da advocacia e da actividade de leiloeiro, estendendo os efeitos de tal incompatibilidade, designadamente, aos contratados ao serviço da empresa leiloeira.

  Neste conspecto, conclui-se que é incompatível o exercício da advocacia em simultâneo com o desempenho de quaisquer funções, seja de que natureza for, ao abrigo de um contrato de trabalho celebrado com uma empresa leiloeira.

O regime das incompatibilidades estabelecido pelo EOA visa proteger a isenção, independência e dignidade do exercício da advocacia, prevenindo a ocorrência de situações de violação do dever de segredo profissional, conflito de interesses ou angariação de clientela pelo próprio ou interposta pessoa.

Ora o Estatuto da Ordem dos Advogados fixa expressamente que a actividade do leiloeiro e dos contratados ao seu serviço é incompatível com o exercício da advocacia por entender que tal actividade é susceptível de diminuir a isenção, independência e dignidade do advogado.

Como bem decorre do Parecer nº 47/2008 do Conselho Regional de Lisboa, Relatado pelo Ilustre Colega Jaime Medeiros “esta incompatibilidade é fixada no EOA por se entender que a duplicidade de actividades é susceptível de geral uma promiscuidade contaminadora da independência e dignidade da profissão”.

Em suma, perante os elementos descritos pela Requerente, no cotejo com as disposições estatutárias dúvidas não restam de que por decorrência expressa e inequívoca do estatuído no artigo 82º, nº 1, alínea n) do EOA, não pode a mesma cumular o respectivo estágio em advocacia com o exercício de quaisquer funções, ainda que de natureza administrativa, ao serviço de uma leiloeira.

 

Em conclusão,

 

a)      O elenco das funções que por natureza são incompatíveis com a advocacia encontra-se plasmado a título exemplificativo no artigo 82º, nº 1 do EOA;

b)      À luz do disposto no nº 2 do artigo 82º do EOA, toda e qualquer actividade que possa afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão é incompatível com o exercício da profissão;

c)      A consagração do regime das incompatibilidades visa proteger a isenção, independência e dignidade do exercício da advocacia, prevenindo a ocorrência de situações de violação do dever de segredo profissional, conflito de interesses ou angariação de clientela pelo próprio ou interposta pessoa;

d)      Por decorrência expressa e consequente consagração estatutária o exercício da advocacia em simultâneo com qualquer actividade, mesmo que de natureza administrativa, ao serviço de uma leiloeira é incompatível; (artigo 82, nº 1, alínea n) do EOA)

 

É este, salvo melhor entendimento, o nosso parecer,

 


[1] Cit. “Direito Profissional do Advogado”, pág. 153, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

[2] Na definição presente no artigo 2º alínea e) da Lei 155/2015 de 10 de agosto Leiloeiro é “a pessoa singular que dirige o leilão, por conta ou em nome da empresa leiloeira”.

 

Sandra Gil Saraiva

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