Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 21/PP/2023-C

Processo de Parecer n.º 21/PP/2023-C

 

Conflito de Interesses

 

Por requerimento dirigido à Exma. Presidente do Conselho Regional de Coimbra, a Ilustre Advogada BM..., titular da cédula profissional nº 5…C, com domicílio profissional na Rua Castro …, requereu a emissão de parecer quanto à eventual existência de conflito de interesses na situação que a mesma profusamente relata e que se reconduz à seguinte síntese fática:

1 – No período compreendido entre os anos de 2018 e 2020 a Consulente prestou serviços administrativos (designadamente inserção de documentação de prédios no programa informático da empresa e elaboração de atas de condomínio) em regime de trabalho a tempo parcial à empresa JMM…, Lda., cujo objecto social se reconduz a “prestação de serviços de manutenção e reparação de edifícios, pichelaria, electricidade, construção civil e administração de condomínios.

2 – A partir do ano de 2019 a Requerente, ao serviço e em representação da entidade patronal, passou também a enviar cartas de cobrança aos condóminos faltosos e a instaurar ações de cobrança, sempre mandatada pelos condomínios em procuração assinada por JMMM... que outorgava na qualidade de sócio gerente da sociedade com a firma JMM…, Lda., que representou, ainda no âmbito de um processo de contraordenação.

3 – Com relevância para o caso em análise refere, ainda, que “foi administrativa da empresa, não advogada, e as suas funções foram atualização do programa de condomínios com os documentos dos condomínios.”

4 – A título pessoal a Consulente representou JMMM... numa acção (AECOPEC) instaurada pela NOS para cobrança de valores respeitantes a contrato de prestação de serviços na respetiva casa de habitação.

5 – Refere, ainda, que em 16 de novembro de 2021 JMMM... cedeu a quota que detinha na sociedade JMM..., Lda., à sociedade EM... & MM... – Administração de Condóminos, Lda.

6 – A Consulente informa não ter tido qualquer intervenção na celebração do sobredito contrato de cessão de quotas celebrado entre as partes em conflito.

7 – Em setembro de 2022 a Advogada Consulente celebrou contrato de avença para respetivo acompanhamento jurídico, com a sociedade EM... & MM... – Administração de Condomínios, Lda.

8 – Mantendo a representação judiciária dos condomínios por aquela administrados sempre que são requeridos os seus serviços.

9 – O sócio gerente da avençada solicitou a Advogada Consulente que respondesse à uma interpelação para pagamento do preço da cessão de quotas que lhe foi dirigida pelo cedente da quota, JMMM..., no sentido da recusa de qualquer pagamento até apresentação de todas as faturas reportadas à administração dos condomínios.

10 – Refere que no âmbito dos serviços administrativos prestados à empresa JMM…, Lda, de que era sócio gerente JMMM..., não tratava da faturação dos serviços aos condomínios, reconhecendo que, “(…) sabia e sabe, por ter acompanhado as assembleias que esses valores eram cobrados e apresentados em assembleia, mas não sabia se efetivamente havia ou não faturas do serviços de administração, nunca tendo sequer questionado o anterior administrador nesse âmbito, por não ser a sua função enquanto administrativa de auxílio na elaboração de atas.”

 

No quadro exposto, pretende a Consulente a título preventivo, aferir junto deste Conselho Regional, se ao aceitar o patrocínio do sócio gerente da sua avençada EM... & MM... – Administração de Condomínios, Lda., contra JMMM... anterior titular único da quota cedida à aludida sociedade, incorre na violação de algum dever deontológico e mormente se se coloca numa situação de conflito de interesses.

Delimitado o objeto do pedido formulado, importa, aferir da competência deste Conselho Regional para a emissão do parecer.

Ora, nos termos conjugados nos artigos 54º, nº 1, alínea f) e artigo 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro de 2015 (doravante designado abreviadamente EOA), o pedido de parecer em análise, versa sobre matéria para cuja apreciação é territorialmente competente o Conselho Regional de Coimbra, no âmbito das suas atribuições de pronúncia sobre questões de carácter profissional, pelo que, cumpre assim, emitir o parecer solicitado.

O quadro fáctico enunciado pela Advogada Requerente, supra transcrito, insere-se na problemática atinente ao conflito de interesses no exercício da advocacia, regulada no artigo 99º do EOA.

O Advogado, no exercício da respectiva profissão está vinculado ao rigoroso cumprimento dos deveres plasmados no EOA, impondo-se a sua zelosa observância de molde a assegurar e garantir a dignidade e prestígio da profissão.

A propósito dos deveres impostos ao Advogado nas relações estabelecidas com os seus clientes, dispõe o artigo 99º do EOA, as situações concretas em que este deve recusar o patrocínio face à iminência ou mera possibilidade de ver diminuída a respectiva independência, confiança, lealdade ou mesmo contender o dever de sigilo profissional.

O referido normativo, dispõe no nº1 que “O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária”. Numa primeira leitura do preceito, parece poder antecipar-se, desde já que a situação exposta se enquadra nesta previsão, sendo ainda, reforçada pelo consignado nº 5 do mesmo preceito legal onde se pode ler que “O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.”

Também o Código Deontológico dos Advogados Europeus versa no seu ponto 3.2 sobre a temática do “conflito de interesses”, dispondo o seguinte:

“3.2 – 1 – O Advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes relativamente ao mesmo assunto, se existir um conflito de ou um risco sério de conflito entre os interesses desses mesmos clientes.

3.2 – 2 – O advogado deve abster-se d se ocupar dos assuntos de ambos ou de todos os clientes envolvidos quando surja um conflito de interesses, quando exista risco de quebra de confidencialidade, ou quando a sua independência possa ser comprometida.

3.2 – 3 – O advogado deve abster-se de aceitar o patrocínio de um novo cliente se tal colocar em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente ou se do conhecimento desses assuntos resultarem vantagens injustificadas para o novo cliente. (…)”

O artigo 208º da Constituição da República Portuguesa e artigo 88º do EOA, encerram a essencialidade do Advogado à Administração da Justiça, conferindo-lhe um conjunto de direitos e deveres para alcançar tal desiderato. O Advogado enquanto participante essencial à Administração da Justiça deve assumir um “comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem”. De entre as obrigações profissionais do Advogado, ressaltam a honestidade, probidade, retidão, lealdade, cortesia e sinceridade.

A advocacia é uma atividade de natureza liberal, mas que prossegue um notório e determinante interesse público o que lhe confere uma grande relevância social.

Na senda do interesse público da Advocacia, surge o instituto do conflito de interesses, como imperativo de defesa da comunidade em geral da irrefutável independência do Advogado no exercício da profissão, mesmo em relação ao cliente e aos seus próprios interesses, da defesa do sigilo profissional na medida em que algumas situações proibidas poderiam fazê-lo perigar e na confiança, decoro e lealdade que tem de existir entre Advogado e cliente, pressupostos do exercício do mandato forense.

O conflito de interesses, como já se referiu, radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão de Advogado, apelando, numa primeira linha, à consciência profissional do Advogado, ao seu decoro e dignidade profissional, devendo em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de conflito de interesses dos seus clientes.

A este propósito consigna Manuel Ramirez Fernandes[1] que o “instituto do conflito de interesses é dos que, no nosso entender, mais apela à consciência do profissional do advogado, ao seu decoro e dignidade profissional. (…) cabendo ao próprio advogado ser o garante de que não age em situações de incompatibilidade por existência de conflito de interesses.”

Como bem refere António Arnaut “(…) seria altamente desprestigiante para a classe que o Advogado pudesse intervir a favor de outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás no lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio.”[2]

Retomando o caso que nos ocupa, temos que, a Advogada Consulente entre 2018 e 2020 prestou serviços administrativos (designadamente inserção de documentação de prédios no programa informático da empresa e elaboração de atas de condomínio) em regime de trabalho a tempo parcial à empresa JMM..., Lda., sendo que, como a mesma refere “foi administrativa da empresa, não advogada, e as suas funções foram atualização do programa de condomínios com os documentos dos condomínios.”

Embora a Advogada Consulente não tenha concretizado as atividades efetivamente desenvolvidas enquanto administrativa na empresa de administração de condomínios, adianta que procedia a atualização do programa informático com a inserção dos documentos dos condomínios.

A prossecução do escopo social de uma empresa de administração de condomínios terá, em princípio, como contrapartida o pagamento de uma remuneração adequada e concretamente fixada em cada um dos condomínios, sendo que, a documentação correspondente terá necessariamente que fazer parte integrante do processo individual do condomínio a que respeita, tanto mais que, a dita retribuição é suportada pelos condóminos através das suas quotizações e, nessa medida, deverá constar das deliberações tomadas em assembleia de condóminos e, bem assim, dos orçamentos e prestações de contas apresentadas nessa sede.

Por maioria de razão, cremos que os documentos justificativos dos pagamentos das remunerações efetuadas pelos condomínios são indissociáveis do processo individual de cada um dos condomínios geridos.

Considerando as funções administrativas desenvolvidas pela Requerente ao serviço da sociedade JMM…, Lda., designadamente de atualização informática da documentação reportada aos condomínios, bem como, de acompanhamento das assembleias de condóminos e elaboração das correspondentes atas, verifica-se que a mesma possui um conhecimento privilegiado relativamente aos procedimentos administrativos adotados pela sociedade em causa para o pagamento e quitação das quotas de condomínio e outras despesas.

Assim, existe uma clara conexão entre a factualidade que previsivelmente adveio ao seu conhecimento por decorrência do exercício das funções administrativas e que ora constituiu elemento nuclear do dissidio que opõe o potencial novo cliente ao sócio gerente da sua antiga entidade patronal, circunstância que, de per si, se configura potenciadora de um conflito de interesses tal como configurado pelo artigo 99º, nº 5 do EOA.

Sendo certo que a pessoa do sócio cedente da quota não se confunde com a sociedade e nessa medida, como bem refere, a Consulente, não existe qualquer identidade de sujeitos, não se pode ignorar que o conteúdo do objeto controvertido e em discussão procede da atividade da sociedade e, nessa medida, existe uma inequívoca conexão do ponto de vista material entre o conhecimento apreendido pela Requerente no exercício das suas funções administrativas e os interesses do novo cliente que agora é chamada a defender.

Assim, tendemos para concluir que no caso concreto se verifica um conflito de interesses, ademais aferido pela disposição contida no nº 5 do artigo 99º do EOA, pelo que a Advogada Requerente se deve abster de aceitar o novo cliente, porquanto no caso em apreço se verifica o iminente risco de colocar em causa o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos em que outrora interveio, mesmo naqueles em que interveio noutra qualidade, sem ignorar que em tese certamente disporá de conhecimentos que poderão acarretar vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

 

Na situação em análise e face aos factos apresentados para a emissão de parecer e tendo em consideração o referido no nº 5 do artigo 99º do EOA, entendemos que existe conflito de interesses, caso a Advogada Requerente venha a assumir o patrocínio do sócio gerente da EM... & MM... – Administração de Condomínios, Lda., na defesa da causa de oposição ao pagamento do valor remanescente do contrato de cessão, condicionada à entrega de toda a documentação respeitante à faturação dos condomínios.

Com efeito, para se concluir pela existência de um conflito de interesses à luz do preceituado no artigo 99º do EOA, não se impõe a sua efetiva verificação, bastando-se, a comprovação da conexão do assunto em causa e a mera suscetibilidade de abstratamente a situação relatada se afigurar potenciadora de violação dos deveres deontológicos do advogado, pois que, a mera possibilidade da existência de um conflito de interesses é, a nosso ver, inaceitável para a Advocacia.

 

Em consequência, formulam-se as seguintes conclusões:

 

        I.            A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente sob o artigo 99.º do E.O.A, resulta da confluência e consagração dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, tendo-se por entendimento pacífico que a respectiva regulação deriva expressamente do princípio geral da independência, consagrado no artigo 89.º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

      II.            Ainda que para aferir da (in) existência de um conflito de interesses se revele fundamental a análise do caso concreto, o legislador optou por, ainda assim, consagrar um universo de situações em que o dever de recusa do patrocínio se impõe, não porque em concreto e no imediato se verifique um conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

    III.            Existindo conexão entre questões apreendidas ou não no exercício da atividade forense, o Advogado está impedido de patrocinar um novo cliente sobre o mesmo assunto;

    IV.            Donde se conclui pela existência de um potencial conflito de interesses no caso vertente, ao abrigo do estatuído no nº 1 e nº 5 do artigo 99º do EOA;

 

É este o nosso parecer.

 



[1] In Advocacia e Deontologia Profissional do Advogado, Quid Juris, Sociedade Editora, 2019, pág. 391;

[2] in Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág.111;

 

 

Sandra Gil Saraiva

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