Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 22/PP/2023-C

Processo de Parecer n.º 22/PP/2023-C

Assunto: Conflito de Interesses

 

Por comunicação datada de 28 de outubro de 2023 remetida ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, através de correio eletrónico, o Exmo. Senhor Dr. ASC..., Advogado, titular da cédula profissional 5…L, com escritório profissional no Largo …, requer a emissão de parecer que formula nos seguintes termos:

 

“1. No dia 27 de Setembro de 2023 foi o ora signatário nomeado patrono de MJPN..., para intervir no inquérito criminal autuado sob o n.º 110/23... que corre termos nos Serviços do Ministério Público de I..., da Procuradoria da República da Comarca de CB..., conf. doc. 1.

2. Processo no qual a sra. MJPN... ocupa a posição de ofendida.

3.Tendo apresentado queixa contra a sua filha SPN..., conf. doc. 2.

4. Sucede que, no passado dia 18 de Outubro de 2023 foi o ora signatário nomeado para efeitos de consulta jurídica a NMCR.... 

5. Ora, sucede que, tanto quanto apurou junto do sr. NMCR..., este vive maritalmente com SPN.... 

6. Que se encontra em litígio com a sua mãe MJPN....

7. Tanto quanto apurou telefonicamente junto do sr. NMCR... o pedido de consulta pública prende-se com a análise da viabilidade de impugnação de um concurso público. 

8. Esta situação cria dúvidas ao ora signatário, relativamente à admissibilidade do cumprimento do mandato em representação da sra. MJPN... em simultâneo com o mandato/consulta do sr. NMCR....

Termos nos quais, mui respeitosamente se requer a v. Exa. se digne a determinar a emissão do respectivo parecer sobre uma eventual situação de incompatibilidade deontológica do ora signatário, por força do estatuído no artigos 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, ou qualquer outro artigo que vos pareça relevante para a presente questão. Junta: 3 documentos”

 

O pedido formulado encontra-se instruído com o ofício de nomeação do Exmo. Advogado à Requerente MJPN..., Requerimento (Participação Criminal) apresentada por MJPN..., dirigido à Exma. Procuradora do Ministério Público da Comarca de CB..., acompanhada por 10 documentos, e que deu origem ao inquérito criminal autuado sob o n.º 110/23..., que corre os seus termos nos Serviços do Ministério Público de I..., da Procuradoria da República da Comarca de CB....

 

Nos termos do estatuído no artigo 54º nº 1, al. f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, porque o Conselho Regional de Coimbra tem competência territorial e material para a emissão do parecer solicitado, atento o facto de ter por objeto questão de carácter profissional, procede-se à emissão de parecer nos termos que seguem:

 

A questão colocada pelo Exmo. Advogado tem enquadramento na disciplina do conflito de interesses, regida estatutariamente sob o artigo 99.º do E.O.A, e que resulta da consagração dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, tendo-se por entendimento pacífico que a respetiva regulação deriva expressamente do princípio geral da independência, consagrado no artigo 89.º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

 

Com efeito, no exercício da profissão, o Advogado está vinculado ao cumprimento de um vasto leque de deveres estabelecidos no Estatuto da Ordem dos Advogados, impondo-se-lhe uma observância escrupulosa e contínua, indispensável a assegurar e a garantir a dignidade e o prestígio da profissão.

Sendo pacífico o entendimento de que para aferir da (in)existência de um conflito de interesses se revela fundamental a análise do caso concreto, optou o legislador por, ainda assim, consagrar um universo de situações em que o dever de recusa do patrocínio se impõe, não porque em concreto e no imediato se verifique um conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações se apresentam como potenciadoras desse conflito.

 

E resulta do teor do artigo 99.º do EOA o seguinte:

Artigo 99.º

Conflito de Interesses

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

À luz das enunciadas previsões normativas contidas sob os números 1 e 2 temos que, o advogado deve recusar o patrocínio:

- De questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;

- De questão conexa com outra em que represente ou tenha representado a parte contrária;

- De questão contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

 

Resulta, ainda, do nº 3 do citado artigo que o Advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

 

Por outro lado, dispõe a norma vertida sob o nº 4 que se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, ou se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito; e sob a que compõe o n.º 5, que o advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente.

 

Da relação de tais normas resulta que uma tal disciplina visa, em primeira linha, defender a comunidade em geral e os clientes em particular de eventuais atuações ilícitas de advogados menos escrupulosos - conluiados, ou não, com outros clientes.

 

Importa, igualmente e de forma congruente com o entendimento vindo de expressar, realçar o facto de a matéria do conflito de interesses ser, também, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe, sempre que colocado numa concreta situação suscetível de conformar um tal quadro, avaliar se o mandato cuja atribuição se perspetiva não esbarra/esbarrará noutro conferido, ao ponto de se verificar um objetivo impedimento ao exercício livre e sem constrangimentos da sua atividade, e tal como exigido pelas normas que compõem o Estatuto Profissional.

 

Da factualidade constante extraiu-se que, o Senhor Advogado Dr. ASC..., foi nomeado (em 27.09.2023) no âmbito do apoio judiciário, à beneficiária MJPN..., para intervir no processo criminal n.º 110/23... que corre os seus termos nos Serviços do Ministério Público de I... – Procuradoria da República da Comarca de CB....

 

No âmbito do identificado processo, a beneficiária do apoio judiciário, ocupa a posição de ofendida (denunciante) tendo apresentado queixa-crime contra a sua filha - SPN..., com os fundamentos insertos na participação criminal junta ao presente pedido de parecer, e que em termos genéricos se consubstancia na denúncia por alegada alteração de informações pessoais (email e contactos telefónicos) da ficha de utente MJPN..., sem a sua autorização.

 

O Exmo. Advogado foi posteriormente (em 18.10.2023) nomeado para efeitos de consulta jurídica ao requerente NMCR..., que mantem uma relação marital com Silvia Nogueira, filha de MJPN....

 

O Exmo. Senhor Advogado apurou que o pedido de consulta jurídica formulado pelo Requerente NMCR... tem como propósito o esclarecimento técnico sobre questões de Direito Administrativo (designadamente a análise da viabilidade de impugnação de concurso público).

 

Ora, o que importa ajuizar no caso concreto é se, o Exmo. Advogado ao assumir a representação de NMCR..., se coloca numa situação de conflito de interesses, nos termos da previsão contida no artigo 99.º do EOA.

 

Conforme resulta da cronologia normativamente estabelecida, qualquer situação de conflito de interesses deverá ser sempre analisada por reporte a uma ação/causa ou assunto anteriormente tratado, e no qual o Senhor Advogado tenha tido já intervenção (qualquer intervenção), como frisa a lei, ou, conforme estatui o segundo segmento da norma contida no n.º 1 do artigo 99.º do EOA, quando se esteja perante uma questão que seja conexa com aquela em que tenha intervindo anteriormente.

 

Constitui entendimento jurisprudencial da Ordem dos Advogados que “conexão” significa “relação evidente entre várias causas, de modo que a decisão de uma dependa das outras ou que a decisão de todas dependa da subsistência ou valoração de certos factos.”

 

Importa, ainda, anotar que a emissão de juízo sobre a (in)existência de conflito de interesses decorre da apreciação concreta da conexão da matéria em causa e da natureza litigiosa dos interesses que cada uma das partes/ clientes pretende acautelar.

 

O artigo do 99º EOA proíbe o patrocínio de causas em que o Advogado já tenha intervindo em qualquer qualidade ou que sejam conexas com outras em que tenha representado a parte contrária, contra quem seja por si patrocinado noutra causa pendente e em causas que possam por em crise o sigilo profissional relativamente a assuntos de um anterior cliente, ou, ainda, se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

 

Analisando a situação concreta, temos que, a questão cujo esclarecimento técnico se impõe no âmbito da consulta jurídica - onde se pretende a análise da viabilidade de impugnação de um concurso público - não tem conexão e/ou qualquer relação evidente com os factos que integram o processo de inquérito – processo criminal.

 

Por outro lado, as partes cuja representação se pretende acautelar, não detêm interesses antagónicos ou conflituantes, considerando que não existe qualquer conexão ou relação entre os assuntos em causa, e a mera verificação de uma relação familiar entre o requerente da consulta jurídica e a parte contrária (alegadamente arguida) no âmbito do processo-crime, não se reputa como potenciadora para convocar a existência de conflito nos interesses.

 

Assim, da subsunção da facticidade do caso concreto em análise às normas vigentes, não resulta a verificação do preenchimento de qualquer dos pressupostos que o legislador estabelece no artigo 99º do EOA para aferição da existência de conflito de interesses.

 

Em consequência, formulam-se as seguintes conclusões:

 

1.      A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente no artigo 99.º do E.O.A, resulta da confluência e consagração dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, tendo-se por entendimento pacífico que a respetiva regulação deriva expressamente do princípio geral da independência, consagrado no artigo 89.º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

2.      No caso vertente, a questão cujo esclarecimento técnico se impõe no âmbito da consulta jurídica - onde se pretende a análise da viabilidade de impugnação de um concurso público - não tem conexão e/ou qualquer relação evidente com os factos que integram o processo-crime e, por outro lado, as partes cuja representação se pretende acautelar, não detêm interesses antagónicos ou conflituantes.

3.      Da subsunção da facticidade do caso concreto em análise às normas vigentes, não resulta a verificação do preenchimento de qualquer dos pressupostos que o legislador estabelece no artigo 99º do EOA para aferição da existência de conflito de interesses.

 

É este o nosso parecer.

 

Luísa Peneda Cardoso

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