Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 26/PP/2023-C

Parecer n.º 26/PP/2023-C

 

Requerente: Juízo de Competência Genérica de Sa…

Assunto: Conflito de Interesses

(exercício do mandato forense em representação dos Réus em ação que versa sobre compra e venda celebrada por Documento Particular Autenticado pela mesma advogada)

 

Em 7 de dezembro de 2023 o Conselho Geral da Ordem dos Advogados foi notificado do conteúdo do douto despacho proferido no processo judicial nº 48/23.7T8SAT, que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Competência Genérica de Sátão, que consigna o seguinte:

“Atento o alegado conflito de interesses suscitado pela mandatária Manuela Ferreira em relação à advogada Isabel Santos, julgamos que deverá ser a Ordem dos Advogados a tomar posição quanto á existência do mesmo e até lá consideramos que não há condições para prosseguir a lide.

Dispõe o art. 272º, nº 1 do Código de Processo Civil que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão em causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.

Em face do exposto, forçosa é a conclusão de que existe causa para a suspensão da instância, no momento, razão pela qual a determino.

Oficie á Ordem dos Advogados, juntando cópia da Pi, contestação e documentos que as instruem e bem assim os dois requerimentos que antecederam, para emitir parecer sobre o a existência ou não do conflito de interesses suscitado.

Notifique”

 

I – Da Competência para emissão do parecer

 

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro (doravante designado abreviadamente por EOA por uma questão de facilidade de exposição), compete aos Conselhos Regionais a pronúncia abstrata sobre questões de caráter profissional que se suscitem em casos concretos inseridos na respetiva área de competência territorial.

Como pacificamente aceite na Ordem dos Advogados, as questões de caráter profissional são todas as que assumam natureza estatutária, resultantes do conjunto de regras, usos e costumes que regulam o exercício da profissão decorrentes, em especial, das normas do Estatuto e demais normas regulamentares exaradas ao abrigo do poder regulamentar próprio da Ordem dos Advogados.

As Ilustres Advogadas intervenientes no processo têm domicílio profissional na área territorial do Conselho Regional de Coimbra e a assunto concreto em análise, versa sobre questão de caráter profissional, circunstância que determina a competência territorial e material deste Conselho Regional para emissão do parecer solicitado, razão pela qual, por via do ofício datado de 12 de dezembro de 2023 o Conselho Geral determinou a remessa de todo o expediente a este Conselho Regional para os devidos efeitos.

 

II – Enquadramento

 

Aferida a competência material e territorial para o efeito, impõe-se emitir o parecer solicitado.

O pedido foi devidamente instruído com toda a documentação a que alude o douto despacho judicial acima transcrito, sendo que, em face da dimensão dos articulados e documentação junta, importa, antes de mais, concatenar a facticidade relevante para a presente pronúncia.

Assim, temos que:

A.      A Ilustre advogada Manuela Ferreira, em representação dos Autores Manuel de Almeida e Maria Francelina Amaral Lopes de Almeida, propôs no Juízo de Competência Genérica de Sátão, Ação de processo Comum, contra os Réus Fausto José da Silva Xavier de Sá e mulher Maria Isabel Castilho Mamede Lopes Xavier, daqui em diante designados apenas por primeiros réus ou vendedores e contra Hélder Martins da Costa e mulher Ana Margarida da Campos Batista Costa (segundos réus ou compradores), formulando o pedido que se transcreve:

“Nestes termos, e sempre com mui douto suprimento de V.Exa., deve a presente acção se julgada provada e procedente e, em consequência:

II – Condenar todos os Réus a reconhecer que os Autores são donos, e legítimos possuidores e proprietários do prédio identificado no art. 1º da presente Petição Inicial, e bem assim a reconhecer o direito à servidão de passagem que onera o prédio identificado no artigo 18 º da PI a favor do prédio identificado em 1º da PI, constituída pelo direito de os Autores acederem do seu prédio à via pública, passando de carro, trator ou a pé pelo prédio descrito em 18º da PI, utilizando para o efeito a faixa de terreno descrita de 18º a 20º da PI;

III – Que se condene os RR a absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou dificultem a passagem dos AA pelo referido caminho de servidão.

IV – Condenar todos os Réus a reconhecer que o prédio identificado em 17º da PI, possui a área real de 1752 m2, e não a área constante na sua inscrição nas finanças e descrição na Conservatória de Registo Predial do Sátão, de 2400 m2 e que a extrema ponte do prédio identificado em 17.º. desenvolve-se perpendicularmente, e em linha recta, de norte para sul, do limite nascente do muro aí existente e que se divide este prédio na sua extrema norte, e bem assim serem condenados a respeitar tal extrema;

V – Réus condenados a reconhecer os Autores ao direito de preferir na compra do prédio rústico identificado no art.º 18º - sito também em Vale Rodeiro, com inscrito na matriz rústica com o artigo 7316 da freguesia e concelho do Sátão, descrito na Conservatória de Registo Predial do Sátão com o n.º 3919, - substituindo aos 2.º Réus no documento particular autenticado do contrato de compra e venda supra identificado pelos Autores;

VI – Condenar os Réus a entregar o referido prédios aos Autores livre de ónus ou encargos e desocupado de pessoas, bens, no mesmo estado em que se encontrava aquando da outorga daquela venda;

VII – Ordenar a substituição dos 2.ºs Réus pelos Autores em todos e quaisquer registo que aqueles hajam efetuado a seu favor, em consequência da compra e venda em análise e da competente descrição na Conservatória do Registo Predial do Sátão sob p nº 3919/ 20060608 da freguesia e concelho do Sátão.

VIII – E assim, ordenar o cancelamento de qualquer eventual registo desse  prédio a favor dos 2.º s. Réus, que os próprios ou quaisquer terceiros hajam feito ou venham a fazer lavrar a seu favor, antes ou depois da data de entrada da presente ação em juízo.

Para tanto,

Devem todos os Réus ser citados para, querendo, contestarem, com as cominações legais.”

B.      A Ilustre Advogada Isabel Santos, em representação de todos os Réus, contestou a ação peticionando a respetiva improcedência com a consequente absolvição dos Réus de todos os pedidos, mais requerendo a condenação dos Autores como litigantes de má fé e indemnização condigna a favor de todos os Réus;

C.      Com relevância, na contestação oferecida os Réus excecionam que nos termos legais os Autores beneficiem de direito de preferência na aquisição do prédio rústico composto por terra de pinhal, com 2400 m2, sito em Vale Radeiro, freguesia e concelho de Sátão, a confrontar a norte com Dr. Hilário Almeida Pereira, a nascente com a estrada, a sul com Artur de Almeida e a Poente com Carlos de Almeida, inscrito na matriz predial rústica respetiva sob o artigo 7316 e Descrito na Conservatória do Registo Predial de Sátão com o número 3919, da mesma freguesia;

D.      Alegam para tanto que o imóvel foi adquirido para implantar uma moradia e que nessa conformidade se encontra abrangido pela exceção prevista na alínea a) do artigo 1381º do Código Civil;

E.       A compra e venda do mencionado imóvel dos segundos aos primeiros Réus foi titulada por Documento Particular Autenticado, elaborado em 23 de janeiro de 2023, perante Isabel Maria Rodrigues dos Santos Figueiredo, advogada, portadora da cédula profissional 3420C, do Conselho Regional de Coimbra, contribuinte 199 318 522, no respetivo domicílio profissional sito na Praça Paulo VI, lote 6, 1º Esquerdo, 3560-154, Sátão.

F.       A Ilustre Advogada Isabel Santos interveio na elaboração do sobredito Documento Particular Autenticado na qualidade de entidade autenticadora.

G.      O registo da aquisição a favor dos segundos Réus foi lavrado na Conservatória do Registo Predial de Sátão através da Ap. 2490 de 2023/01/24.

H.       No articulado de resposta às exceções invocadas pelos Réus na Contestação oferecida, a Ilustre Mandatária dos Autores alvitra a existência nestes Autos duma situação de conflito de interesses, na medida em que, como a mesma alega, a Advogada visada “exerce o patrocínio, em ação, defendendo, vendedores e compradores, em que há um título de transmissão da propriedade que a própria minutou, elaborou, lavrou, leu em voz alta, fez constar o que ali os outorgantes lhe transmitiram.”

I.        A Ilustre Advogada visada pronunciou-se pela inexistência de qualquer conflito de interesses decorrente da circunstância de ter elaborado o contrato de compra e venda e correspondente Termo de Autenticação  e representar nesta ação declarativa sob a forma de processo comum, todos os Réus, referindo que: “na qualidade de advogada e no exercício de um ato próprio de advogado que a Lei, nessa qualidade de advogada, lhe atribuiu, a pedido de todos os réus, elaborou, com o cumprimento de todos os formalismos legais, que nos termos da Lei foram sujeitos ao crivo Senhor Conservador, o termo de autenticação do contrato de compra e venda entre eles celebrado.”

 

                Perante as posições processuais assumidas pelas partes, designadamente, no que concerne à potencial existência de um concreto conflito de interesses que poderá afetar o mandato forense conferido à Ilustre Advogada constituída por todos os Réus, a meritíssima Juiz do Processo proferiu o despacho acima transcrito, com vista a obtenção da correspondente pronúncia da Ordem dos Advogados.

 

III – Conflito de Interesses

 

Ora, sem necessidade de maiores considerações, temos que, a questão concreta submetida à cognição deste Conselho Regional, se subsume, à temática de caráter profissional atinente à eventual existência de conflito de interesses, tratada no título III do EOA, sob a epígrafe “Deontologia Profissional”, no capítulo II que versa sobre a relação entre advogados e clientes, sendo à luz da disposição legal contida no artigo 99º do mencionado diploma que deve ser analisado e enquadrado o caso vertente.

A consagração estatutária do instituto do “Conflito de Interesses” radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade e constitui expressa manifestação do principio geral previsto no artigo 89º do EOA, segundo o qual “O Advogado, no exercício da profissão mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”

O Advogado no exercício da profissão está irremediavelmente vinculado ao rigoroso cumprimento dos deveres plasmados no EOA, impondo-se a sua escrupulosa observância de molde a garantir a dignidade e prestígio da advocacia.

O Advogado é parte integrante e essencial à Administração da justiça, conforme consagração constitucional no artigo 208º da Constituição da República Portuguesa, replicado no artigo 88º do EOA, devendo assim assumir “um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem.”

Na configuração da advocacia como uma atividade de natureza liberal, que prossegue um notório e preponderante interesse público, é lhe conferida uma elevada relevância social.

E é precisamente na senda do interesse público da advocacia que surge a consagração do instituto do conflito de interesses, com o objetivo de prosseguir a tripla função: a) de defesa da comunidade em geral e dos clientes das atuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um qualquer advogado, conluiados ou não com algum ou alguns dos seus clientes; b) de defesa do próprio advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de atuar, no exercício da profissão, visando qualquer outro interesse que não seja o da defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes; c) de defesa da dignificação da própria profissão.

Como bem ensina António Arnaut “(…) seria altamente desprestigiante para a classe que o Advogado pudesse intervir a favor de outra parte, numa questão conexa ou noutro processo como se fosse “uma consciência que se aluga”. Aliás no lato sentido do segredo profissional sempre o impediria de assumir tal patrocínio”. [1]

 A propósito dos deveres impostos ao Advogado nas relações estabelecidas com os seus clientes elenca o artigo 99º do EOA as situações em que este deve recusar o patrocínio face à iminência ou mera possibilidade de ver diminuída a respetiva independência, confiança, lealdade ou mesmo suscetíveis de contender com o mais caro dever de guardar sigilo profissional.

Neste conspecto o artigo 99º do EOA estabelece algumas das situações em que se impõe o dever de recusa do patrocínio, não porque concreta e imediatamente se verifique a existência de conflito de interesses, mas porque, objetivamente, tais situações são potenciadoras de gerar esse conflito.

O artigo 99º do EOA sob a epígrafe “Conflito de Interesses” preceitua o seguinte:

“1- O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 – O Advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os seus clientes, no âmbito desse conflito.

5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 – Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer a associação quer a cada um dos seus membros.” Itálico Nosso

O referido normativo, dispõe no nº1 que “O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária”. Numa primeira leitura do preceito, parece poder antecipar-se, desde já que a situação exposta se enquadra nesta previsão.

O conflito de interesses, como já se referiu, radica dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, apelando, numa primeira linha, à consciência profissional do advogado, ao seu decoro e dignidade profissional, devendo o advogado, em permanência e a todo o tempo formular um juízo sobre a existência ou não de conflito de interesses entre os seus clientes.

Com efeito, a matéria do conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe ajuizar em permanência, se a assunção de dois mandatos, não o impedirá de exercer, de forma livre e sem quaisquer constrangimentos, a sua atividade, conforme erigido das normas ínsitas no seu estatuto profissional. 

O Advogado deve estar, sempre e em qualquer circunstância, acima de qualquer suspeita, garantindo o cumprimento dos deveres de isenção, independência, salvaguarda do dever de sigilo profissional, decoro, probidade e salvaguardar a dignidade da profissão, razão pela qual se impõe com especial acuidade que os Advogados pugnem sempre e, em qualquer circunstância pelo cumprimento dos deveres deontológicos a que estão adstritos.

 

IV – Da prática de atos notariais pelos advogados

 

A distinção legal dos documentos autênticos e autenticados, decorre do preceituado no artigo 363º do Código Civil, com a seguinte redação:

“1. Os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares.

2. Autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares.

3. Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais.”

Do disposto no nº3 do citado preceito legal decorre inevitavelmente uma exigência de os documentos particulares serem “confirmados pelas partes perante o notário, nos termos prescritos nas leis notariais”, para que possam ser havidos como autenticados.

Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 76-A/2006 de 29 de março, introduziram-se medidas de simplificação e eliminação de atos e procedimentos registrais e notariais, das quais se destaca, desde logo, a introdução da alínea f) ao nº1 do artigo 1º, que prevê “O alargamento das entidades que podem reconhecer assinaturas em documentos e autenticar e traduzir documentos, permitindo que tanto os notários como advogados, os solicitadores, as câmaras de comércio e indústria e as conservatórias possam fazê-lo;”

Nesta senda, veio o artigo 38º do mencionado diploma legal, conferir, entre outros, aos advogados e solicitadores, a competência para reconhecimentos de assinaturas, autenticação e tradução de documentos e conferência de cópias, nos seguintes termos:

“1 – Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-Lei, nº 244/92 de 29 de outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, (…)

2 – Os reconhecimentos, as autenticações e as certificações efetuados pelas entidades previstas nos números anteriores conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais atos tivessem sido realizados com intervenção notarial.”

Mais consigna o aludido artigo 38º do Decreto-Lei nº 76-A/2006 de 29 de março que para os atos notariais, designadamente, dos advogados, se considerarem validamente praticados, é necessário proceder ao seu registo informático.

Ora no caso particular dos documentos que titulem a compra e venda de imóveis – que está sujeita a forma legal prescrita no artigo 875º do Código Civil – além do cumprimento dos requisitos legais inerentes aos negócios jurídicos sobre imóveis, a respetiva validade está sujeita ao depósito eletrónico (artigo 24º, nº 1 a 3º do Decreto-Lei nº 116/2008 de 4 de julho, regulamentado pela Portaria 1535/2008 de 30 de dezembro).

No caso que nos ocupa desconhece-se se tal requisito de validade foi cumprido, na medida em que, não resulta das peças processuais e documentos de instrução do pedido de parecer qualquer código de identificação e acesso ao documento depositado eletronicamente. A eventual (in)existência do cumprimento de tal condição de validade do ato é suscetível de influir no desfecho dos Autos, porém, tal circunstância é manifestamente inócua no que tange a apreciação da situação de conflito de interesses, que a título antecipatório, consideramos existir.

Importa, assim, esclarecer que os requisitos legais respeitantes ao formalismo da autenticação se encontram previstos nos artigos 150º a 152º e 46º do Código do Notariado.

Do cotejo dos aludidos preceitos legais, temos que, os documentos particulares adquirem a natureza de documentos autenticados se encerrarem, cumulativamente, as seguintes exigências:

a)      As partes confirmem o seu conteúdo perante o notário (ou qualquer uma das entidades identificadas no artigo 38º do D.L. 76-A/2006) (conforme artigo 150º, nº 1 do Código do Notariado);

b)      A autenticação estiver reduzida a termo (artigo 150º nº 2 do Código do Notariado);

Por seu turno, o termo de autenticação pressupõe:

a)      O cumprimento dos requisitos previstos no artigo 46º, nº 1, alíneas a) a n) do Código do Notariado, aplicável por remissão do artigo 151, nº 1 do mesmo diploma;

b)      Que contenha a declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade (artigo 15º, nº 1, alínea a) do Código do Notariado);

c)       Ressalva das emendas, entrelinhas, rasuras ou traços contidos no documento e que neste não estejam devidamente ressalvados (artigo 151º, nº 1, alínea b) do Código do Notariado).

Efetuada esta breve explanação quanto ás funções notariais legalmente conferidas aos advogados, é evidente que, neste âmbito o advogado atua nos termos prescritos no artigo 1º do Código do Notariado, cumprindo a dupla função de dar forma legal e conferir fé pública aos atos extrajudiciais, podendo, ainda, ao abrigo do nº 2 prestar a acessória necessária às partes na forma de exposição da sua vontade negocial.

Como, em jeito de síntese, bem refere o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/01/2017, proferido no processo nº 4871/14.5T8LOU-A.P1, disponível em www.dgsi.pt “(…) num primeiro momento esse documento é outorgado e assinado pelas respetivas partes, sendo que o advogado – enquanto entidade autenticadora – não outorga nem subscreve o documento. Poderá, quando muito, não como entidade autenticadora, mas enquanto profissional habilitado e no exercício da sua função de aconselhamento técnico-Jurídico, auxiliar as partes na redação do documento ou redigir ele próprio o documento que depois será assumido e assinado apenas pelas partes. Num segundo momento, o documento particular assinado pelas partes é apresentado ao advogado para autenticação, sendo que no exercício dessa função exige-se, como se notou, que as partes confirmem perante ele o conteúdo do documento particular, devendo subsequentemente o termo de autenticação ser lavrado com observância dos requisitos estabelecidos nos citados artigos 150º e 151º do Código do Notariado, contendo, nomeadamente, a declaração das partes de que procederam à leitura do documento ou estão inteiradas do seu conteúdo e que o mesmo exprime a vontade nele declarada. Finalmente, num terceiro momento, deve ser efetuado o registo informático em conformidade com o que se mostra estabelecido na citada Portaria nº 657-B/2006 de 29.06”

 

Vejamos,

Retomando a situação concreta em análise, entendemos que se encontra invariavelmente preenchida a previsão contida no nº 1 do artigo 99º do EOA, que impõe ao advogado o dever de recusar o patrocínio do cliente em questões onde já tenha intervindo em qualquer outra qualidade.

Com efeito, é pacificamente adquirido que a advogada Isabel Santos, interveio na formação do Documento Particular Autenticado que titula a transmissão do imóvel que fundamenta a ação declarativa de reconhecimento da violação e do direito de preferência arrogado pelos Autores.

Naturalmente que, neste quadro, a advogada visada, ao assumir o patrocínio de todos os Réus, vendedores e compradores, estará por certo, condicionada pela defesa intransigente da validade e legalidade do ato notarial por ela praticado e autenticado, circunstância que lhe diminui a isenção e independência na defesa cabal dos interesses dos constituintes.

Com efeito, precisamente com o intuito de prevenir as situações em que a isenção do advogado possa ficar afetada em virtude das respetivas intervenções anteriores, ainda que, em qualquer outra qualidade e nessa medida assumir a condição de potenciar a existência de conflito de interesses é que o legislador, consagrou no artigo 99º nº 1 do EOA, o dever de o advogado se abster de aceitar o patrocínio de questões em que já tenha tido alguma intervenção.

No mais, sempre se saliente a título meramente acessório que se nos afigura que na eventualidade da ação em causa vir a ser julgada procedente, sempre será credível a ocorrência de um latente conflito de interesses entre as próprias partes ora representadas pela advogada visada.

                Pelas razoes expostas e sem necessidade de maiores considerandos, entendemos existir um conflito de interesses atual da advogada visada no exercício do mandato forense em representação de todos os Réus na ação, motivado pela atuação antecedente no mesmo assunto, na qualidade de entidade autenticado do Documento Particular Autenticado em dissídio nos Autos.

                Assim, na consideração de que o advogado deve estar, sempre e em qualquer circunstância, acima de qualquer suspeita, garantindo o cumprimento dos deveres de isenção, independência, salvaguarda do dever de sigilo profissional, decoro, probidade e dignidade da profissão, deve a Ilustre Colega Isabel Santos, cessar de imediato o patrocínio de todos os Réus, no processo a que respeita e se destina a presente pronúncia.

 

Conclusões:

1 – A questão do conflito de interesses, no que ao exercício da Advocacia diz respeito, encontra-se regulada no artigo 99º do EOA, que elenca situações concretas em que o Advogado deve recusar o patrocínio, por se afigurar que naqueles casos concretos a independência, confiança, lealdade e dever de guardar sigilo profissional, podem ficar irremediavelmente comprometidos.

2 – A previsão da referida norma, que numa primeira linha remete sempre para a consciência individual do advogado, visa assegurar a protecção da comunidade em geral, defender o próprio advogado e dignificar a profissão, por via da preservação dos valores da lealdade, isenção, independência, confiança e decoro, tão caros ao exercício da advocacia.

3 – Com efeito, a advogada que interveio na qualidade de entidade autenticadora na formação do Documento Particular Autenticado que titula a venda de um prédio rústico, com eventual violação do dever legal de preferência, cujo reconhecimento se peticiona em ação declarativa instaurada para o efeito, deve abster-se de ali exercer o mandato forense em representação de qualquer dos intervenientes processuais, mormente dos intervenientes processuais que assumiram a qualidade de vendedores e compradores;

4 – Conquanto é indubitável a respetiva intervenção anterior no mesmo assunto, ainda que, noutra qualidade, circunstância que o legislador prevê no nº 1 do artigo 99º do EOA como potenciadora de conflito de interesses;

5 – Assim, a advogada visada, deve cessar de imediato o mandato que lhe foi conferido pelos Réus na ação a que respeita a presente pronúncia;

6 – Verificando-se que, no caso concreto, a violação do dever contido no artigo 99º do EOA se encontra consumado, propõe-se a remessa de certidão do presente parecer ao Conselho de Deontologia de Coimbra para os fins tidos por convenientes.

 

 

É este o nosso parecer.

Que se submete à apreciação e votação na sessão do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados de 1 de março de 2024.

 



[1] António Arnaut, Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, Coimbra Editora, 9ª Edição, pág. 111

 

Sandra Gil Saraiva

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