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04-07-2006
Ciclo de Conferências - "O Tribunal de Família e Menores na Administração da Justiça"
 

No âmbito do Ciclo de Conferências “A Justiça em Números” decorreu, no dia 5 de Julho, a conferência “O Tribunal de Família e Menores na Administração da Justiça”.

A conferência realizou-se no Auditório Angelo d' Almeida Ribeiro e expôs o actual cenário vivido no Tribunal de Família e Menores de Lisboa. O Dr. António Raposo Subtil deu início à conferência, seguido do Vogal do Conselho, Dr. Luís Silva, que apresentou os dados estatísticos relativos ao Tribunal de Família e Menores de Lisboa. O Prof. Doutor Diogo Leite Campos discorreu sobre “A administração da justiça em matéria de Direito da Família no começo do século XXI” e a Juíza Maria Gomes Bernardo Perquilhas analisou a “Jurisdição de menores: seu enquadramento na jurisdição voluntária”.

Esta é a quinta conferência integrada no ciclo “A Justiça em Números”, integrado no Relatório sobre a Administração da Justiça na área da jurisdição do CDL, iniciado em 2005.

Consulte aqui a apresentação dos dados estatísticos do Tribunal de Família e Menores de Lisboa e do Tribunal de Família e Menores da comarca de Sintra.


 

Leia algumas notícias publicadas na Comunicação Social.

Lusa
Portugal Diário
Rádio Renascença
TSF
TVI
Jornal de Notícias


Consulte a intervenção do Professor Doutor Leite Campos.






 

 

 

 













Intervenção do Professor Doutor Leite Campos



O Juiz, os direitos e o Direito da família

Ao bastonário Dr. José Miguel de Alarcão Júdice

A afirmação de que a Administração da justiça está carente de meios, é corrente na generalidade dos países. Mas não pode ser analisada só enquanto problema de administração de justiça, mas também enquanto problema de sociedade. Com efeito, há que saber se as dificuldades crescentes da administração da justiça nas sociedades contemporâneas não decorrem também, e sobretudo, de um novo modelo de sociedade, e se este modelo não é variável conforme os sectores sociais em causa, e, portanto, segundo o ramo do Direito implicado.

Lembrarei, para acentuar que me parece ser, antes do mais, um problema de sociedade, que no Japão, país desenvolvido sob todos os aspectos, os juízes, os tribunais, os advogados e os juristas são escassos, não havendo exigência social de mais; enquanto que noutros países, como o Brasil e o México, os juristas, por muitos que sejam, e são sempre mais, a multiplicação dos tribunais, a independência do poder judicial, a atribuição de cada vez mais verbas a este, não têm resolvido os problemas de administração de justiça que, pelo contrário, se vêm agravando. Na Argentina, a introdução da mediação e da conciliação obrigatórias, permitiu que os assuntos apreciados pelos tribunais tivessem decrescido consideravelmente; enquanto que, em outros Estados, como em Portugal, a mediação/conciliação e a arbitragem ainda constituem fenómenos marginais na administração da justiça.

 

Há, assim, que rejeitar desde inicio a ideia demasiado simplista de que atribuir mais verbas à administração da justiça vem resolver todos os problemas. Não virá resolver os problemas da sociedade, e não resolverá todos os problemas da administração da justiça.

Como o nosso tema de hoje é a justiça em números no que se refere aos tribunais de família, vamos centrar-nos no Direito das pessoas e, mais precisamente, no Direito da Família.

 

O Direito da família, aqui compreendido o direito da filiação e da procriação, sofreu uma evolução muito profunda a partir dos anos sessenta, sobretudo pela recepção dos direitos da personalidade, no entendimento que lhes foi dado e ainda hoje é mantido.

A introdução dos direitos da pessoa no âmbito do direito da família teve aspectos claramente benéficos que ainda hoje não estão totalmente adquiridos. Mas também a recepção dos direitos da personalidade em termos individualistas (diria que em termos anglo-saxónicos), basicamente como liberdades ou direitos contra os outros, não é inocente e tem de ser entendida na verdadeira dimensão. O chamado Direito da família contemporâneo, modelado pela introdução dos direitos das pessoas enquanto liberdades ilimitadas, contém uma ideia de “não-modelo” das relações familiares, abandonadas à vontade dos familiares, vontade eticamente neutral. Nem sequer se aceita, em obediência à vontade livre do sujeito, em homenagem ao direito subjectivo e absoluto, que a ética, a antropologia, a biologia, a própria família se determinem em normas (gerais e abstractas), se positivem em Direito.

O dogma da vontade, extraído do domínio neutro do comércio das coisas, foi transferido para o domínio das pessoas. Excluindo-se qualquer interesse que não seja o interesse subjectivo absoluto; nomeadamente, a solidariedade, o interrelacionamento, o nós, a favor do eu absoluto, predador do tu.

 

A sociedade e o legislador, em muitos campos do Direito da família, têm vindo a destruir este, negando qualquer interesse público na relação da família, deixada à vontade de cada um dos intervenientes.

 

Parece-me ser possível distinguir duas grandes zonas: uma deixada livremente aos interesses de cada um: divórcio, esterilização, alteração de sexo, fecundação heteróloga. Onde, nas relações de força que se estabelecem, a parte mais fraca sai normalmente prejudicada. Em negação à própria ideia de Direito que tem como ponto de partida a promoção da igualdade entre os interessados. O referido conceito de direito da personalidade leva a que qualquer norma externa à vontade das partes, criando limites externos, seja considerada intolerável para a liberdade do sujeito. A vontade de cada um estaria legitimada em si mesma, sem precisar de qualquer outra referência. Ou, se quisermos, a vontade individual e absoluta positiva-se em direito (do caso concreto) na situação concreta. A ética, a genética, a fisiologia, a biologia, etc., são talhadas livremente pela omnipotente vontade do sujeito.

Assim, se vem negando não só o Direito positivo, como a própria positivação das “normas” referentes à pessoa humana, à sociedade e ao seu interrelacionamento.

 

Noutro sector em que aparecem demasiadamente visíveis as diferenças de poder entre os sujeitos – e trata-se caracteristicamente do Direito da filiação e do Direito dos menores – continuam a existir obrigações recíprocas, sobretudo a cargo da parte mais forte, que compete ao Estado e à sociedade, através dos tribunais, assegurar.

 

Assim, quanto ao Direito e à administração do Direito, há que distinguir, segundo as concepções dominantes, dois grandes campos no Direito da família.

 

O primeiro campo é o das relações entre pessoas iguais, entre os cônjugues, não só no que se refere às suas relações pessoais como às suas relações patrimoniais. Nesta matéria, a função do Estado através do juiz, do notário, do conservador, etc., não será dizer o Direito, por este ser criado livremente pela vontade das partes. A função do juiz não será a de subsumir as situações nos quadros normativos (cada vez mais escassos e flexíveis). Será fundamentalmente, reconhecer, avalizar ou publicitar as consequências das vontades das partes. Estas escolheram o regime de bens que mais lhes convinha ou não escolheram regime nenhum, caminhando para a separação absoluta; constituirão e dissolverão a relação conjugal à sua vontade, e o casamento valerá quanto ao seu conteúdo o que as partes quiserem, caminhando-se de modalidades mais densas e tradicionais para meras situações de facto.

 

Aqui, e estou a fazer um simples juízo de facto, haverá que adequar as concepções à realidade social, diminuindo o peso da administração judiciária.

 

Nas relações em que há uma profunda desigualdade de poder, de força, quando estão implicados menores (embora o problema não se refira só a estes) a ética, a biologia, a antropologia, etc., devem positivar-se em Direito. E positivar-se em Direito através da justa solução concreta dita pelo juiz. Este deverá apoiar-se nas ciências humanas através de peritos. E dizer, filtrando tais ciências pelos valores da sociedade necessariamente conformados pelos direitos das pessoas, o Direito do caso concreto.

 

Neste sector, as normas jurídicas, gerais e abstractas, continuarão a existir, mas serão escassas. Visarão estabelecer a protecção do sujeito mais fraco, o menor, no Direito dos menores, da filiação, da procriação, etc. Na generalidade das situações, o juiz não irá aplicar uma regra do Direito, indagando a situação pressuposta e a sua “ratio”, e comparando-a com a situação em análise. Terá necessidade de, com o apoio de peritos das ciências sociais, criar a sua norma para o caso concreto – embora em termos de valer para todos os casos idênticos.

Neste domínio, a administração da justiça necessitará de apoio técnico e de diferente formação de juízes. Estes, sem deixarem de dizer o Direito do caso concreto, com a sua especial autoridade, terão uma larga autonomia criativa.

 

Nos outros sectores, sobretudo no domínio do Direito do casamento e dos regimes de bens, o Direito terá como função assegurar a igualdade dos sujeitos. E, depois (na actual circunstância) deixá-los atingir um equilíbrio que, depois, o juiz, como acontece no Direito dos contratos, ratificará, compondo os litígios.

Nestas matérias, a administração estadual da justiça será cada vez menos presente, esperando-se que as partes se componham cada vez mais por meio de arbitragem – mesmo nas relações pessoais - a reflectir a assunção pela sociedade civil das suas responsabilidades.

 

Concluo, pois, que a justiça em números é um problema de interpretação destes; de qualidade, que não só de quantidade; de prescrutar a sociedade; de entender a evolução social. Adequando a administração da justiça a uma sociedade e a um Direito, e a uns direitos, novos.



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