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11-11-2008
Intervenção do General Ramalho Eanes na Conferência de Encerramento
 

Olhando o mundo actual, poder-se-á falar, como Edgar Morin, de um angustiante tempo “policrísico”.
No século presente entrámos, mal refeitos ainda da destruição das grandes muralhas ideológicas que separaram a humanidade da humanidade. As certezas de mobilizadora esperança no futuro, do século passado, o século passado as desmoronou e o presente não foi ainda capaz de substitui-las. Pelo contrário, às crises do século passado, novas crises vem adicionando.
Nesta noite nebulizada por muitas e cumulativas crises, ameaçada está não só a democracia, que, consabidamente, “representa a forma e o fim da sociedade moderna”, e que não é “só uma forma de governo”, mas ameaçada está a Sociedade Civil, que é, para a democracia, a sua fonte e motor.
E, neste mar de crises, vulnerabilidades e ameaças decorrentes, em risco estão a qualidade de vida e também a própria liberdade, quer a individual, quer a colectiva.
Neste angustiante quadro policrísico, poderá ainda haver espaço, lugar, para a esperança de uma aurora de renovação, de liberdade, de modernização económica sustentada, de solidariedade, de participação activa, enfim, de cidadania?
A resposta, em minha opinião, não poderá deixar de ser afirmativa, mesmo repudiando um certo providencialismo de traço tocquevilliano.
A crise é sempre, mas não só, situação com ameaça de perigo, pois encerra em si mesma a oportunidade (probabilidade lhe chamou Edgar Morin) de encontrar soluções.
Da probabilidade se pode passar ao caminho das soluções efectivas, empenhando a vontade e a inteligência, realizando acções bem sustentadas na situação e nos recursos disponíveis, bem norteadas pelo propósito de perfectibilidade individual, social e política, e bem executadas, com estratégias inteligentemente realistas.
É evidente que só no homem, na Sociedade Civil (na sua tradição) e no Estado – Estado que eles, homem e Sociedade Civil, bem saberão ajustar à sua situação, interesses e propósito – se encontrará a solução para ultrapassar com sucesso as vagas crísicas com que o mundo se vem confrontando.
É por esta razão, e na perspectiva que gera, que entendo convir abordar, muito sucintamente embora, o Homem – o Homem de sempre –, a Sociedade, o Estado e, obviamente, a Sociedade Civil, e, nesta, o seu imprescindível papel na redefinição de uma nova e mais exigente responsabilidade social e, decorrentemente, uma cidadania activa de aproximativa «libertação» (na feliz expressão de Alain Touraine).
O ser humano – sujeito pessoal pela razão – é um ser activo e comunicante; um ser social, portanto. É-o sempre, intra e intersubjectivamente. Exigem-lho a natureza exterior e a sua própria natureza, que fazem dele um tomador de decisões, isto é, um ser capaz de proceder à eleição deliberada da acção para alcançar um determinado resultado.
Estas acções, que lhe permitem resolver os problemas que o existir levanta, constituem um contínuo processo de interacção com o meio circundante. A interactuação é, pois, inevitável e indispensável porque o homem é um ser cívico, social. A sociedade – e a única sociedade, em sentido estrito, é a humana – é, como diz Leonardo Polo, em última instância, a manifestação do interior aos demais, em regime de reciprocidade. É pois, ela própria, a pluralidade de sujeitos, de pessoas, interactuando.
E é na sua interacção com outros seres humanos, em sociedade, que o ser humano processa o seu existir activo: a liberdade. Mas, a sociedade, como diz Rafael Alvira, não é, para cada um, uma opção possível, ou uma ajuda para a vida, mas antes uma necessidade e uma obrigação. Esta dualidade, subjectivamente inabdicável, deve implicar o empenhamento do ser humano na preservação e desenvolvimento da sua sociedade.
E, na preservação e no desenvolvimento de qualquer sociedade democrática – no seu presente e devir – implícita está, também, a necessidade de justiça. Justiça que constitui alicerce genético, indispensável, portanto, ao virtuoso exercício da liberdade de iniciativa e acção dos indivíduos, e a uma certa igualdade (“pois só os iguais podem [livremente] colaborar”, com análoga motivação transcendente, com empenhadora responsabilidade social, para levar por diante a sociedade). E implica, também, “uma solidariedade ou «fraternidade» entre os construtores [cidadãos] da dita sociedade”.
Apesar dos significados diversos que são atribuídos ao conceito de Sociedade Civil, comum a todos eles é a convicção da necessidade de as sociedades humanas se organizarem através de uma pluralidade de instituições autónomas, independentes, de diversa índole, não dirigidas pelo Estado ou pelo mercado, o que lhes permite questionar e estabelecer reclamações e exigências de legitimação à esfera estatal e económica.
Este conceito, o de Sociedade Civil, está na origem do pensamento democrático autêntico porque permite harmonizar a liberdade política e a cidadania, entendida, esta, sobretudo como a participação activa (informada, competente e responsável) nas diferentes associações que constituem a Sociedade Civil.
Para responder às exigências políticas deste novo conceito, e às aspirações que suscitou – em especial no que se refere ao modo de funcionamento da organização política e do seu governo, e da interacção deste com a cidadania activa –, se chegou à democracia na sociedade actual.
Como diz Manfred Spieker, de uma Sociedade Civil se espera que seja “uma sociedade de cidadãos conscientes e activos, que se auto-organizam, em relação ao Estado, numa esfera relativamente livre, na economia, na política, na cultura e na solidariedade; de cidadãos que se articulam em associações, partidos e meios de comunicação livres, que participam na formação da vontade política e não só toleram o Estado subsidiário, como o apreciam como condição do bem comum”.
A democracia “representa [pois] a forma e o fim da sociedade moderna” e é, assim, bem mais do que uma mera forma de governo. Efectivamente, a democracia tem na ideia da Sociedade Civil a sua imprescindível imaginação, “fonte e motor.”
E a democracia só o é realmente quando consegue ser intransigente e genuinamente pluralista, cosmopolita, historicamente informada e universalista, i.e., quando não confunde patriotismo (identificação cultural) com nacionalismo (que implica uma parte de autismo, enfraquecimento da interacção com outros povos, preconceitos e, por vezes, conflito).
Só é intransigente e genuinamente pluralista se atenta à realidade social, se “defende a pluralidade e variedade qualitativa das instâncias sociais” para fazer progredir a sociedade. Situação que só acontece quando se consegue utilizar o Estado de maneira correcta, levando-o a ser um meio que respeite todas as necessidades reais e expectativas razoáveis.
E a sociedade só é verdadeiramente civil, isto é correcta, tolerante, pacífica e solidária, quando dispõe de real capacidade de juízo da realidade e quando exige exemplaridade pessoal, também, tanto no quotidiano dos cidadãos quanto no das suas organizações, o Estado inclusive.
Aliás, e como diz Joseph Stiglitz, prémio Nobel da Economia em 2001, importante é “uma cidadania informada”, até para travar “os abusos dos interesses corporativos particulares e financeiros que tanto têm dominado o [próprio] processo de globalização”.
Papel importante pode e deve ser, também, o da Sociedade Civil, da cidadania responsavelmente informada e exigente, a que é capaz de bem e oportunamente pensar o que diz e exige, e consentaneamente actuar.
Dificuldade ciclópica, esta, dada a situação a que chegou o mundo europeu, em grande parte devido à globalização. Dificuldade que só será possível ultrapassar se, olhando as lições da Sociedade Civil – nomeadamente as recentes, nos países de Leste – a própria Sociedade Civil retomar o seu papel responsável e responsabilizante de todas as suas instituições, do Estado, instituição sua também. Protagonismo, este, possível, que encerra revitalizante papel da Sociedade Civil, isto é, nova e mais completa compaginação da liberdade com a cidadania activa.
Trata-se, afinal, de devolver às Sociedades Civis a dimensão civil interveniente, o papel que, em democracia – em democracia deliberativa, na acepção de Alain Touraine –, lhe deve caber, e que implica primaciar a ética através do valor da liberdade, da iniciativa e da acção, quer individual, quer em organização, e que atenção especial dedique à igualdade, pois, além do mais, só os iguais – relativamente iguais – podem, pacificamente, colaborar para tornar a sociedade unida, eficaz, tolerante e pacífica – civil, portanto.
Importa, pois, que a Sociedade Civil não volte costas à política e aos políticos, mas antes desperte politicamente e exija completa informação, esclarecimento e participação. Importa, também, que os políticos não esqueçam, nem temam a Sociedade Civil e que retomem a sua função principal: interessar-se – com verdade, competência e assumido risco – pelas mudanças que a situação exige, e que tudo façam, com sistemática preocupação de mobilização e responsabilização, também, da população.
Só com esta difícil, mas imperativa, conjugação, em que Estado e Sociedade Civil se situam frente a frente, como dois conjuntos diferenciados de actores e instituições, em constante, atenta e equilibrada, mas dinâmica, inter-relação, poderemos definir um projecto e um futuro de actualizados Estados-nação e de uma unidade real europeia, que a globalização e as decorrentes nova geoeconomia e geopolítica determinam, e estabelecer as estratégias para os atingir, ultrapassando a crise que tudo e todos pantaniza, tornando a política, de pensamento e acção, novamente uma aventura em que Estado e Sociedade Civil sintam vontade de participar.
Na perspectiva enunciada de virtuosa interacção entre a Sociedade Civil e o Estado, papel de relevo tem tido, entre nós, a Ordem dos Advogados.
Organização sólida da Sociedade Civil, criada em 1926, em muito contribuiu para a sua personalização dinâmica, através de um diálogo exigente e responsável com a Sociedade e o Estado, e com este não só na defesa – que institucionalmente lhe cabe – dos interesses e dos valores deontológicos da profissão, mas também, da Justiça em Portugal.
Ciente, bem ciente, que o êxito de qualquer estratégia de desenvolvimento (modernização económica e desenvolvimento social) assenta num tripé, em que importância igual, e interactiva, devem ter Mercado, Estado e Indivíduos e suas organizações (Sociedade Civil), muito se tem empenhado para que o último pilar bem consciencialize os seus direitos e deveres, e para que o Estado e o Mercado obrigados sejam a conceder-lhe o devido respeito e legal direito.
Empenhado se tem, também, em propiciar condições ao estabelecimento de uma cultura profissional de mérito, de mérito republicano.
E atenção vem concedendo, e esforços envidando, para robustecer e conferir unidade ao terceiro pilar, nomeadamente através do tratamento de tantos e tão actuais temas, como são os que foram debatidos ao longo desta semana – a “Cidadania, Desenvolvimento e Participação Cívica”, a “Justiça, Igualdade e Direitos Humanos Fundamentais” e o “Futuro, Bem-estar e Responsabilidade Ambiental”.
E esquecido não tem a fragilidade que ao terceiro pilar confere a tradicional falta de unidade verificada no País e que Eduardo Lourenço retrata dizendo: o “divórcio profundo entre a minoria «cultivada», que vive em estado de guerrilha perpétua e só pode exercer a sua vontade de poderio com o recurso dessa efracção em fractura da produção portuguesa (…) e a massa anónima do povo português que não participa nesse debate”, e que surpreende Unamuno, que a atribui à “falta de um elevado ideal colectivo” que, unificando a vida de um homem e de um povo, “lhes dão [aquela] personalidade”.
E têm-no feito através de gestos, proporcionais, de solidariedade, com o propósito de contribuir para que todos sintam e saibam que recorrer à justiça é, deve ser, uma oportunidade real para todos, independentemente da sua condição económica, nomeadamente.
A atestar esta questão, realizou-se o Dia da Consulta Jurídica gratuita, cuja terceira edição atesta a receptividade que a população lhe dispensou e o êxito que alcançou. Interessante e meritório é, também, a sua dimensão que, nesta terceira edição, se estendeu a 17 comarcas do Distrito Judicial de Lisboa.
Solidariedade democrático-pedagogicamente interessante, aliás, na sequência da discreta assistência jurídica gratuita que muitos advogados vêm prestando aos mais carenciados, nas suas bancas.
E, a propósito, esquecer se não pode, nem deve, a defesa corajosa de tantos presos políticos por advogados, membros notáveis desta Ordem. Permitam-me que relembre três, bem ilustres, já falecidos, e que refiro para esta especial ilustração, e porque tive o privilégio de com eles contacto estreito e, mesmo, amizade, ter mantido: Salgado Zenha, Palma Carlos e Ângelo D’Almeida Ribeiro.
Pelo que disse, em especial nesta última parte, deixar não podia de felicitar vivamente, na pessoa do Sr. Presidente, Dr. Pinto de Abreu, o Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, pela acção que vem desenrolando em prol da advocacia, da justiça, da personalização da Sociedade Civil, nomeadamente através desta tão interessante e pluriparticipada iniciativa.

 

 

António Ramalho Eanes – 7 de Novembro de 2008
Intervenção final na cerimónia de encerramento da “II Semana Advogar pela Cidadania”, que decorreu de 3 a 7 de Novembro, organizada pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados (a convite do seu Presidente Dr. Carlos Pinto de Abreu)


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