Pareceres do CRLisboa

Consulta n.º 10/2010

 

Consulta n.º 10/10

Assunto: Livre consulta de processos e pedidos de certidões por Advogados sem necessidade de prévia junção ou exibição de procuração – Artigo 74.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados

 

A questão que ora se coloca é a de saber se pode ser recusada a consulta de processo tributário a advogado sem procuração, ou melhor, está em causa saber se os advogados, mesmo sem procuração nos autos, podem irrestritamente consultar processos de natureza tributária.

Nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da Lei 15/2005, de 26 de Janeiro (Estatuto da Ordem dos Advogados), “no exercício da sua profissão, o advogado tem o direito de solicitar em qualquer tribunal ou repartição pública o exame de processos, livros ou documentos que não tenham carácter reservado ou secreto, bem como requerer, oralmente ou por escrito, que lhe sejam fornecidas fotocópias ou passadas certidões, sem necessidade de exibir procuração”.

Este direito dos advogados consultarem livremente os processos, ainda que sem procuração, prevalece necessariamente sobre qualquer regra geral que determine a restrição da consulta dos mesmos, desde logo, o artigo 30.º do Decreto-Lei 433/99, de 26 de Outubro (Código de Procedimento e Processo Tributário), que dispõe que “os documentos dos processos administrativos e judiciais pendentes ou arquivados podem ser consultados pelos interessados ou seus representantes”.

Isto porque a norma prevista no artigo 74.º do Estatuto da Ordem dos Advogados é uma norma especial face à norma geral contida no artigo 30.º do Código de Procedimento e Processo Tributário.

 

 

Além do mais, a norma contida no artigo 30.º do Código de Procedimento e Processo Tributário não é uma norma proibitiva, mas sim permissiva.

A norma não visa proibir a consulta de processos de natureza fiscal àqueles que não são interessados. Antes visa aquele dispositivo legal - artigo 30.º do Código de Procedimento e Processo Tributário - permitir que os interessados ou os seus representantes possam consultar livremente os processos.

Assim, mesmo perante o artigo 30.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, não seria líquido que houvesse a proibição genérica de consulta dos processos fiscais. E nem se argumente com a ideia de que a proibição ou a restrição do acesso não advém do Código de Procedimento e Processo Tributário, do invocado artigo 30.º, mas antes do artigo 64.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 60-A/2005, de 30 de Dezembro.

O artigo 64.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, sob a epígrafe de “confidencialidade” dispõe, entre outras regras, que “os dirigentes, funcionários e agentes da Administração Tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado”

Não haverá necessidade de tecermos grandes considerações a respeito do afastamento desta norma na discussão que temos agora pela frente, sendo por demais evidente que o artigo 64.º da LGT se refere simplesmente ao sigilo que os funcionários públicos devem manter sobre todos os elementos com que contactam no exercício das suas funções, não estando aqui em causa o acesso ou o não acesso a determinados elementos por determinadas pessoas.

 

 

Voltando ao artigo 30.º do CPPT, pois conforme visto é nele que nos devemos centrar, diríamos que esta ausência de proibição contida em norma geral (Código de Procedimento e Processo Tributário), conjugada com a existência de norma permissiva estabelecida em lei especial (Estatuto da Ordem dos Advogados), leva-nos a concluir, inevitavelmente, pela possibilidade de o advogado consultar livremente processos de natureza fiscal ainda que sem procuração forense, estando naturalmente obrigado a segredo quando ele exista, conforme dispõe, aliás, o artigo 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

O artigo 74.º do Estatuto da Ordem dos Advogados contém norma permissiva, clara e precisa que estipula que o advogado tem direito de solicitar em qualquer tribunal ou repartição pública o exame de processos, livros ou documentos que não tenham carácter reservado ou secreto, oralmente ou por escrito, e ainda que lhe sejam fornecidas fotocópias ou passadas certidões, tudo sem necessidade de exibir procuração.

O raciocínio é elementar. A norma geral (artigo 30.º CPPT) cede perante a norma especial (artigo 74.º EOA). Mais, a norma permissiva (artigo 74.º EOA) versus a norma não proibitiva (artigo 30.º CPPT) não deixa dúvidas sobre qual prevalece, precisamente a primeira. Que outra conclusão tirar?

E nem se tente argumentar em sentido contrário chamando à colação ordens de serviço interno, ofícios circulados, despachos, etc. Tais fontes de direito cedem perante a fonte de direito suprema: a lei. E a lei geral é expressa e muito clara ao permitir ao advogado a consulta irrestrita de processos, salvo se lei especial de algum modo o obste.

E faz sentido que os advogados possam livremente aceder a processos ou formular pedidos de certidões, podendo mesmo fazer-se uma interpretação extensiva, para quem ainda dela necessitar, no sentido de entender o advogado como um interessado na consulta de todo e qualquer processo, criando assim uma perfeita harmonia dogmática e concordância prática entre o disposto no artigo 30.º do CPPT e o previsto no artigo 74.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

 

Até porque, entender que o advogado não pode aceder a processos sem junção de procuração, implica fazer tábua rasa do que vem prescrito na lei. Ignorá-la. Desprezá-la. No fundo, incumpri-la.

Ao contrário, permitir o acesso a qualquer processo por advogado, mesmo sem procuração, em nada fere o artigo 30.º do CPPT, pois continua a norma a ter validade e eficácia para todos os outros casos (leia-se pessoas que não sejam nem interessados, nem advogados, para os quais a lei presume o conceito de interessado).

Várias entidades colocam a tónica da presente discussão na questão de saber se o advogado é ou não considerado um interessado quando não apresente procuração do seu mandante, havendo até quem entenda que a única forma de demonstrar interesse directo na questão é mediante a apresentação de procuração.

Ora, não nos parece que a tónica da questão possa aí ser colocada, sendo certo que, em nosso entendimento, o advogado deve sempre e nestas matérias ser considerado um interessado – por um lado, tem e prossegue o interesse do cliente (um interesse privado), mas, por outro lado, tem e prossegue um outro interesse supremo, e esse sim deve aqui relevar, o da administração da justiça (um interesse público).

Devido a este papel activo de colaborador da justiça, o qual será desenvolvido infra, deve o advogado ser entendido como um eterno e permanente “interessado”, não havendo necessidade de, caso a caso, apurar o seu concreto e efectivo (privado ou público) interesse na questão. E para sustentarmos tal tese não precisamos procurar muito no nosso ordenamento jurídico, uma vez que é indiscutível o manifesto interesse público e social da profissão de advogado e o papel activo desempenhado por este na correcta e adequada administração da justiça.

Não se admite que dúvidas se suscitem/se presumam sobre a idoneidade do advogado para o desempenho das suas funções, e muito menos que sobre ele recaiam desconfianças relativamente à finalidade que pauta a sua busca de informação mediante

 

consulta ou pedido de fotocópia, até porque está o advogado sujeito a um rol de deveres que lhe são impostos pelos estatutos da profissão e que são ou devem ser, até prova em contrário, cegamente respeitados. Desde logo, veja-se o disposto no artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa que dispõe que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.

Decorre do preceito citado, não só que a advocacia é uma profissão de interesse público, sendo o advogado, em pé de igualdade com a magistratura, um elemento essencial à administração da justiça, como a norma em si estipula que a lei ordinária descreverá e assegurará todas as imunidades e prerrogativas de que o advogado necessite no exercício da sua profissão, entre as quais se enquadra a possibilidade conferida ao advogado de consultar processos mesmo sem procuração.

É por isso que também aqui se impõe uma interpretação da lei de acordo com a Constituição da República Portuguesa, e esta exige que ao advogado sejam concedidas todas as imunidades e prerrogativas que necessita para desempenhar as suas funções de elemento essencial à administração da justiça.

A este respeito veja-se também o artigo 6.º, n.º 1, da Lei 3/99 de 13 de Janeiro[1] (L.O.F.T.J.) que dispõe que “os advogados participam na administração da justiça, competindo-lhes, de forma exclusiva e com as excepções previstas na lei, exercer o patrocínio das partes”, conjugado com o artigo 114.º, n.º 1, da mesma lei que dispõe que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.

 

 

 

Veja-se, por fim, o Estatuto da Ordem dos Advogados, em particular os seus artigos 3.º, al. a), e 83.º, onde se acentua mais uma vez a importância do advogado para a administração da justiça e a consequente necessidade de concessão de imunidades, e conjugue-se estes artigos com os pontos 1.1 e 2.2 do Código de Deontologia dos Advogados Europeus[2].

É de igual modo importante atentarmos no disposto no artigo 67.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que dispõe que “os magistrados, agentes de autoridade e funcionários públicos devem assegurar aos advogados, aquando do exercício da sua profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas para o cabal desempenho do mandato”.

O acesso irrestrito aos processos é uma condição mínima “para o cabal desempenho do mandato

Também da leitura deste preceito retiramos a obrigatoriedade de todos os funcionários públicos, sem excepção, assegurarem aos advogados condições para o exercício cabal da profissão.

Os direitos que o referido artigo 74.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados reconhece ao advogado não são direitos subjectivos nem constituem qualquer privilégio decorrente de uma opção legislativa, antes emergem do exercício de uma função pública, tão ou mais nobre do que qualquer outra, que é a administração da justiça.

Além dos argumentos legais e sistemáticos já invocados, há que atentar ainda nas demais fontes de direito e apurar o que a este respeito se tem entendido.

 

Desde logo, deve dizer-se, aproveitando para fazer aqui uma resenha histórica da questão, que mesmo antes da existência do Estatuto da Ordem dos Advogados (inicialmente na versão do Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, que também continha norma semelhante ao actual artigo 74.º do Estatuto da Ordem dos Advogados - veja-se o artigo 63.º, n.º 1, do referido preceito legal), e antes até no domínio do Estatuto Judiciário aprovado pelo Decreto-lei 33 547, de 25 de Fevereiro de 1944, existia já o costume enraizado de os advogados poderem consultar livremente todo o tipo de processos sem para tal necessitarem de entregar ou exibir procuração.

Costume esse que veio depois a ser positivado na primeira versão do Estatuto da Ordem dos Advogados Portugueses (Decreto-Lei 84/84 de 16 de Março), versão que, conforme se disse, ficou intacta na revisão de 2005.

É verdade que a jurisprudência e a doutrina nem sempre foram unânimes nesta matéria, mas não é menos verdade que a tendência maioritária tem sido a de acolher a tese que agora também nós sustentamos, i.e., a de que o advogado pode aceder a quaisquer processos e pedir certidão dos mesmos, ainda que sem procuração.

 

Veja-se, entre muitos outros, o parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados[3], aprovado em 24.04.1987, que se debruçou sobre esta matéria a respeito da consulta de livros nas Conservatórias de Registo Predial, considerando, como nós consideramos, que “o EOA é manifestamente Lei especial, aí se regulamentando especialmente o exercício da Advocacia e a sua inserção jurídica na ordem social”, concluindo então pela prevalência da norma contida no então artigo 63.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados sob a norma contida no artigo 105.º, n.º 1, do Código de Registo Predial.

 

 

Cite-se ainda, mais uma vez a título meramente exemplificativo[4], o parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados[5], datado de 1.02.1991, onde se refere expressamente que “é interpretação uniforme deste Conselho que aquela norma [o à data artigo 63.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 84/84, de 16 de Março] abrange toda e qualquer repartição pública […] Aos advogados, porém, no exercício da sua profissão, é óbvio que a consulta, exame e pedido de passagem de certidões, quer nos tribunais, quer em quaisquer repartições públicas, são possíveis, mesmo sem exibir procuração. Com efeito, o direito à informação perante a actuação da Administração Pública constitucionalmente reconhecido aos cidadãos [cfr. artigo 268.º da CRP] não tem que ser exercido pessoalmente. Poderá sê-lo por outrem em seu nome e representação, não sendo legítima a dúvida de que o Advogado é o profissional especialmente vocacionado e legalmente competente para exercer essa representação”.

Também o Tribunal Administrativo do Círculo do Porto declarou ilegítima a recusa de passagem de certidão fiscal por o advogado não exibir procuração do interessado[6].

 Quanto a esta questão, veja-se ainda Ofício Circulado n.º 311/95, de 6 de Fevereiro, onde se dispôs que “tendo como referência o disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pelo Decreto-lei n.º 84/84, de 16 de Março, como norma especial que é, tem de se concluir que, afastada a hipótese de os dados solicitados serem de natureza reservada ou secreta, nenhum obstáculo legal se verifica que possa impedir que um advogado, no exercício da sua profissão, requeira verbalmente ou por escrito, e sem necessidade de exibir procuração (…) é a norma legal supracitada que lhe confere a legitimidade necessária aliada ao importante papel que desempenha na administração da justiça”.

 

 

Mas, conforme se disse supra, não seria necessário recorrer a fontes de direito mediatas, indirectas ou secundárias, sendo certo que a única fonte de direito imediata esclarece de forma simples e directa a questão, apontando o caminho e a solução justa mais adequada.

Em conclusão, por tudo quanto fica exposto, por uma questão de justiça, de legalidade estrita e de coerência do sistema, somos de PARECER, salvo melhor opinião, que qualquer advogado pode consultar irrestritamente quaisquer elementos constantes de processos tributários sem necessidade de previamente juntar ou exibir procuração.

 

CONCLUSÕES:

 

 

  1. O direito dos advogados consultarem livremente os processos, ainda que sem procuração, previsto no artigo 74º, nº1, do EOA (Lei 15/2005, de 26 de Janeiro) prevalece necessariamente sobre qualquer regra geral que determine a restrição da consulta dos mesmos, desde logo, o artigo 30.º do Decreto-Lei 433/99, de 26 de Outubro (Código de Procedimento e Processo Tributário), que dispõe que “os documentos dos processos administrativos e judiciais pendentes ou arquivados podem ser consultados pelos interessados ou seus representantes”
  2. A norma prevista no artigo 74.º do Estatuto da Ordem dos Advogados é uma norma especial face à norma geral contida no artigo 30.º do Código de Procedimento e Processo Tributário.
  3. A norma contida no artigo 30.º do Código de Procedimento e Processo Tributário não é uma norma proibitiva, mas sim permissiva. Este preceito não visa proibir a consulta de processos de natureza fiscal àqueles que não são interessados, antes visando permitir que os interessados ou os seus representantes possam consultar livremente os processos.
  4. O previsto no artigo 30.º do CPPT, que não é uma norma proibitiva, conjugada com a existência de norma permissiva estabelecida em lei especial (Estatuto da Ordem dos Advogados), leva-nos a concluir, inevitavelmente, pela possibilidade de o advogado consultar livremente processos de natureza fiscal ainda que sem procuração forense, estando naturalmente obrigado a segredo quando ele exista, conforme dispõe, aliás, o artigo 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
  5. Por uma questão de justiça, de legalidade estrita e de coerência do sistema, somos de parecer, salvo melhor opinião, que qualquer advogado pode consultar irrestritamente quaisquer elementos constantes de processos tributários sem necessidade de previamente juntar ou exibir procuração, tanto mais que o mesmo é sempre interessado, desde logo por força das funções de interesse público que exerce.

 

Lisboa, 24 de Março de 2010.

O Relator

Carlos Pinto de Abreu

Aprovado, por unanimidade, em reunião plenária de 24 de Março de 2010

 



[1] Não se refere para já a Lei 52/2008, de 28 de Agosto, uma vez que esta lei (que altera a Lei 3/99 de 13 de Janeiro) não se encontra ainda plena e definitivamente em vigor. No entanto, fica a nota de que neste diploma os artigos citados corresponderiam respectivamente aos artigos 7.º e 144.º.

[2] Cfr. Deliberação n.º 2511/2007 da Ordem dos Advogados publicada no Diário da República, 2.ª série, de 7 de Dezembro de 2007, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, que aprova a tradução na língua portuguesa do Código de Deontologia dos Advogados Europeus, originalmente adoptado na sessão plenária do Conseil des Barreaux Européens (CCBE) de 28 de Outubro de 1988 e subsequentemente alterado nas sessões plenárias do CCBE de 28 de Novembro de 1998, de 6 de Dezembro de 2002 e de 19 de Maio de 2006.

Disponível em http://dre.pt/pdf2sdip/2007/12/249000000/3770837725.pdf.

[3] Disponível na Revista da Ordem dos Advogados, ano 47, II, p. 640 e seguintes.

[4] Vejam-se ainda os pareceres do Conselho Geral da Ordem dos Advogados E/765, E/787 e E/813.

[5] Disponível em Revista da Ordem dos Advogados, Ano 50, III, p. 814 e seguintes.

[6] Veja-se o referido Acórdão no Boletim da Ordem dos Advogados, 2/93, p. 41.

Carlos Pinto de Abreu

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