Consulta
n.º 19/2010
Questão
A Exma. Senhora
Juiz da ..ª Secção da ..ª Vara Cível de Lisboa (entrada com o número de registo
... de 27 de
Abril de 2010), veio solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa,
nos termos e para os efeitos do disposto nos números 2 e 4 do artigo 135º do
Código de Processo Penal, aplicável ao processo civil por remissão do número 4
do artigo 519º do Código Civil.
Solicita, portanto,
o Tribunal a pronúncia deste Conselho quanto à legitimidade das escusas para
depor apresentadas pelos Senhores Advogados, Dra. A e Dr. B, aos factos
vertidos nos quesitos 1º a 8º da Base Instrutória, com fundamento na existência
de sigilo profissional.
Os factos aos quais
o depoimento dos Senhores Advogados é pretendido são os que passamos a
transcrever:
“1º
Em resposta à carta descrita em H), os ora réus
enviaram à ora autora uma requisição de registo provisório de hipoteca e
informaram que a aquisição se faria em nome do filho dos ora réus .....?
2º
A ora autora enviou à ilustre mandatária dos
réus, e esta recebeu, a carta datada de 28.05.2007, cuja cópia consta a fls. 104 dos
autos, e cujo teor se dá por reproduzido, onde consta, para além do mais, “
(…). 1. No meu fax de 23.05.07
solicitava que me enviasse a requisição de registo provisório para eu a
preencher. Tal registo provisório não está previsto na sentença mas, julgava
eu, que essa requisição se destinava ao pagamento da sisa. Soube depois disso,
que não é preciso fazer qualquer registo provisório para se poder pagar a sisa,
segundo me informaram tal registo destina-se a hipotecar a fracção, o que desde
já, quer na minha posição de comproprietária, quer na de cabeça-de-casal da
herança de José.., não aceito. 2. Não está também prevista na sentença a
cessão de posição contratual, que desde já informo não aceitar (…).
Concedo um prazo adicional de 15 dias para a marcação da escritura, findo o
qual, perco o interesse na prestação e reivindicarei a posse (…)?
3º
A ora autora enviou à ilustre mandatária dos
réus, e esta recebeu, a carta datada de 14.06.2007, cuja cópia consta de fls. 106 dos
autos, e cujo teor se dá por reproduzido, onde consta, para além do mais,” (…)
Pela minha comunicação de 28 de Maio passado, (…), concedi um prazo adicional
de 15 dias para a celebração da escritura de compra e venda, nos termos acordados
no processo ...., da 14ª Vara, 2ª Secção e homologados por sentença. Esgotado
este prazo adicional sem ter sido marcada a escritura, e considerando o longo
prazo decorrido desde que a sentença foi proferida, e as muitas manobras
dilatórias de V.Exa. venho, na qualidade de cabeça de casal da herança de
José... e Maria...., converter a mora em incumprimento
definitivo. Assim sendo, devem V.Exa. e os clientes, proceder
à entrega do local no prazo de 8 dias, findo o qual intentarei acção de
restituição de posse (…)?
4º
À data do acordo referido em D), a ora autora
sabia que a realização da escritura só seria marcada pelos ora réus depois do
cancelamento da acção registada junto da Conservatória do Registo Predial de
Lisboa?
5º
Em 12 de Abril de 2006, os réus enviaram a
todos os vendedores a requisição de registos provisórios a fim de se outorgar a
escritura de compra e venda referida em D)?
6º
E a ora autora nada disse?
7º
Em Maio de 2007, os ora réus diligenciaram
junto dos mandatários dos vendedores a devolução das requisições de registo?
8º
Com excepção da ora autora, os restantes
vendedores enviaram aos ora réus as requisições de registo provisório
assinadas?”.
Entendimento
do Conselho Distrital de Lisboa
A existência da
obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos
e/ou os documentos nos quais esses mesmos factos possam estar contidos, excepto
se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital
respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo
87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de
Janeiro), e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
Ainda que
dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional.
O Advogado é, pois,
nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para
solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.
Existe, no entanto,
na lei processual um regime de excepção, previsto no artigo 519º do Código de
Processo Civil, a que se aplicam as regras do artigo 135º do Código de Processo
Penal.
Segundo o regime
estatuído nas leis processuais civil e penal, a regra continua a ser a de o
Advogado poder (e, à luz do E.O.A., “dever”) escusar-se a depor sobre factos
abrangidos pela obrigação de segredo profissional.
E, deduzida a
escusa perante o Juiz ou a autoridade judiciária, pode acontecer que o Juiz ou
a autoridade judiciária tenham fundadas dúvidas sobre a legitimidade da escusa
– cf. n.º 2 do artigo 135º do CPCP, ex vi,
n.º 4 do artigo 519º do CPC.
Se tal acontecer,
como sucede no caso concreto, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa
depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cf. n.º 4 do artigo 135º do CPP, ex vi, n.º 4 do artigo 519º do CPC.
Teremos, assim, de
aferir se a escusa deduzida é legítima, isto é, se os Advogados em causa estão,
ou não, a invocar criteriosa e correctamente que aquilo sobre que se pretende os
seus depoimentos é matéria sigilosa que lhe imponha o dever de silêncio.
A primeira questão
que se coloca é, portanto, a de saber se, os factos contidos nos quesitos atrás
transcritos, estão cobertos pelo sigilo profissional.
Vejamos então.
Nunca
é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente
basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da
Advocacia.
Mais do que uma condição para o seu desempenho é,
sobretudo, um traço essencial da sua própria existência. Sem o segredo
profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir Advocacia.
Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.
Como se tem escrito sempre que os órgãos desta
Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do
instituto, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e
só para si, o conhecimento de tudo quanto o cliente, directamente ou por via de
terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que
obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.
O segredo profissional é a blindagem normativa, a
garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por
interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de
existência de uma advocacia que para ser autêntica, tem de ser livre e
independente.[1]
Aliás,
e bem a propósito, o Dr António Arnaut, ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia
por nós também partilhada, ao escrever que “O
dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos
mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre
da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade. O cliente, ou
simples consultante, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para
lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo um «sésamo» que nunca se
abre.”[2]
Existem,
segundo entendimento já perfilhado pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem
dos Advogados[3], três
grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do
dever (que é ao mesmo tempo direito) do Advogado guardar segredo profissional
sobre factos e documentos, dos quais tome conhecimento no exercício da
profissão:
a)
A
indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o
Advogado e o cliente.
b)
O interesse
público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da
justiça.
c)
A garantia do
papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a
paz social.
Assim,
pode-se ler no artigo 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional” que:
“1 - O
advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os
factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação
dos seus serviços, designadamente:
a) A
factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por
revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A
factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem
dos Advogados;
c) A
factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual
esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A
factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte
ou pelo respectivo representante;
e) A
factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe
tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao
diferendo ou litígio;
f) A
factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações
malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A
obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido
ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva
ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a
desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os
advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no
serviço.
3 - O
segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se
relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O
advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que
tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses
legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante
prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso
para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.
5 - Os
actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem
fazer prova em juízo.
6 - Ainda
que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o
segredo profissional.
7 - O
dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a
todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade
profissional, com a
cominação prevista no n.º 5.
8 - O
advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do
dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração”.
Em primeiro lugar, diz-nos esta norma, no seu número
1 que “O advogado é obrigado a guardar
segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe
advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços (...)”.
Com efeito, sob esta fórmula, encontra-se aquela
que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos.
Pode-se até dizer que, em certa medida, as demais regras previstas nas alíneas
da mesma, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão
sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior
dificuldade de interpretação.
De acordo com as premissas anteriormente
elencadas, é nosso entendimento que os factos aos quais os depoimentos dos
Senhores Advogados, Dr. B e Dra. A, são pretendidos estão abrangidos pelo dever
de sigilo profissional.
E desde logo
porque estão em causa factos que chegaram ao conhecimento dos Senhores
Advogados por força do exercício da profissão, por força da relação de
confiança estabelecida com os seus clientes e, como tal, tais factos caem
directamente na factispecie do n.º 1 do artigo 87º do EOA.
Assim sendo, entendemos
que as escusas
para depor apresentadas pelos Senhores Advogados são legítimas, nos termos e
para os efeitos no disposto no n.º 4 do artigo 519º do Código de Processo
Civil.
Para que os
Senhores Advogados possam legitimamente depor aos factos vertidos nos quesitos 1º
a 8º da Base Instrutória exige o n.º 4 do artigo 87º do EOA que estejam munidos
de uma autorização prévia do Presidente do Conselho Distrital.
CONCLUSÕES:
- A existência
da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos
sigilosos e/ou os documentos nos quais esses mesmos factos possam estar
contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do
Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos
exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado
pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro), e pelo artigo 4º do Regulamento
de Dispensa de Segredo Profissional.
- Ainda que
dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo
profissional.
- O Advogado é,
pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa
para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar
segredo.
- Existe, no
entanto, na lei um regime de excepção previsto no artigo 519º do Código de
Processo Civil, a que se aplicam as regaras do artigo 135º do Código de
Processo Penal.
- Segundo o regime
estatuído nas leis processuais civil e penal, a regra continua a ser a de
o Advogado poder (e, à luz do E.O.A., “dever”) escusar-se a depor sobre
factos abrangidos pela obrigação de segredo profissional.
- E, deduzida a
escusa perante o Juiz ou a autoridade judiciária, pode acontecer que o
Juiz ou a autoridade judiciária tenham fundadas dúvidas sobre a
legitimidade da escusa – cf. n.º 2 do artigo 135º do CPP, ex vi, n.º 4 do artigo 519º do CPC.
- Se tal
acontecer, como sucede no caso concreto, o Juiz decide sobre a
legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cf. n.º 4 do artigo
135º do CPP, ex vi, n.º 4 do
artigo 519º do CPC.
- Ora, no caso
concreto, entendemos que os factos aos quais os depoimentos dos
Senhores Advogados, Dr. B e Dra. A, são pretendidos estão abrangidos pelo
dever de sigilo profissional.
- Precisamente porque estão em causa factos que
chegaram ao conhecimento dos Senhores Advogados por força do exercício da
profissão, por força da relação de confiança estabelecida com os seus
clientes e, como tal, tais factos caem directamente na factispecie do n.º
1 do artigo 87º do EOA.
- Pelo exposto, entendemos que, no caso
concreto, as escusas em depor apresentadas pelos Senhores Advogados são legítimas,
nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 135º do Código de
Processo Penal, aplicável por força do disposto no n.º 4 do artigo 519º do
Código de Processo Civil.
- O depoimento dos Senhores Advogados à matéria
de facto em causa pressupõe uma autorização prévia do Presidente do Conselho
Distrital, conforme exigido pelo n.º 4 do artigo 87º do EOA.
Notifique-se.
Lisboa, 9 de Junho
de 2010.
A Assessora
Jurídica do C.D.L.
Sandra Barroso
Concordo e homologo o despacho anterior, nos
precisos termos e limites aí fundamentados,
Lisboa, 9 de Junho de 2010.
O Vice-Presidente do C.D.L.
(por delegação de poderes delegados de 4 de
Fevereiro de 2008)
Jaime Medeiros
[1] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa
nº 2/02, aprovado em 6.2.2002,
e no qual foi relator o Dr José Mário Ferreira de Almeida.
[2] “Introdução à Advocacia: História – Deontologia,
Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996, p. 65
[3] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa
nº 02/01, no qual foi relator o Dr José Ferreira de
Almeida, e aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003
Sandra Barroso
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